U ma lembrança me tirou dos pensamentos inúteis. “Minha vida inteira eu fui uma fraude. Não estou exagerando”, é a abertura do conto O bom e velho neon, de David Foster Wallace, traduzido informalmente por uma alma caridosa e disponível no blog Cadela Eslava. “Praticamente tudo que eu fiz o tempo todo foi tentar criar uma certa impressão de mim nas outras pessoas. Sobretudo para ser apreciado ou admirado. É um pouco mais complicado que isso, talvez”, continua a voz do homem enforcado, no estilo verborrágico e autoconsciente que lhe consagrou como um dos maiores. “Mas quando você vai direto ao ponto é ser apreciado, amado. Admirado, aprovado, aplaudido, tanto faz. Você pegou a ideia”, pode apostar que sim. Satanás e Jesus Cristo são as vozes que estiveram em minha mente desde que me entendo por gente, o que aconteceu um pouco cedo demais – no mesmo período em que me tornei ateu convicto, quase militante no princípio, com cerca de 12 anos. Recorro à mitologia para explicar minha postura errática. Se eu gostava tanto de deixar sua pia limpinha, dobrar suas calcinhas e do cheirinho do seu cangote em noites frias, seu corpo quentinho e pequenino aninhado ao meu, como é que fui capaz de gritar tanto contigo, Maria? De passar noites em claro, sem dar notícias, e voltar para casa – fedendo – com a mente cheia de ideias perturbadoras? Há quem opte pela explicação que fala em mimetização, herança comportamental. A explicação dos ímpios que consideram a análise uma ciência. Escolho o mais óbvio: um encosto – de aparência simiesca – achou morada em meu peito, e nele fez ninho. Eu diria novamente que sinto muito, Maria, se achasse que isso mudaria sua ideia de partir. Se soubesse que estaria agindo realmente com o coração, e não a partir da civilidade impostora – a que pede que, por educação, nos retratemos com almas que maltratamos. Se soubesse que faria tudo diferente, e não exatamente tudo igual, diria que sinto muito. Entre ir pela esquerda ou pela direita, cavei um buraco no meio, usando uma colher de chá, e tentei rir disso, escondendo as lágrimas em meus olhos. Porque meninos não choram.

O fim da música do The Cure me tirou dos pensamentos inúteis. Encostei o carro em uma vaga chancelada pela lei e coloquei-a para tocar de novo – em volume moderado, já sem animação para barulheira. É correto culpar meu pai pelo resto da vida pelas minhas más escolhas, pela minha postura agressiva? Isso não me rende nada além de literatura e tristeza, que são a mesma coisa. Nada além do riso solitário do palhaço sem plateia, aposentado precocemente por falta de habilidade. Tento dar cambalhotas hilariantes e acabo esmurrando paredes até que meus punhos fiquem em carne viva. Só assim suspiramos aliviados – eu e o Diabo, que para de zombar de mim por um tempinho quando alimento-o com sangue. Eu realmente diria que te amei, Maria, se achasse que isso impediria você de ir embora. As pessoas se afastam de mim e, dentro do personagem perpétuo, vejo-me incapaz de tentar recuperá-las. Meu roteiro é guiado por um diretor rígido, fã de ultraviolência e aniquilação. Se eu pudesse driblar os olhares atentos do tirano, faria quase qualquer coisa para ter você de volta ao meu lado. Mas só continuo rindo, e dançando conforme a música do hospício, enquanto escondo as lágrimas em meus olhos. Porque meninos não choram.

Uma ideia divertida me tirou dos pensamentos inúteis. Pensei na resiliência de Carl Sagan e em como ele foi capaz de sustentar – com otimismo – opiniões tão dolorosamente racionais sobre a vida do ser humano na Terra: saber-se pequeno e descartável, mas, justamente por saber-se pequeno e descartável, tentar fazer de toda essa absurda experiência de existir a melhor possível. É uma abordagem produtiva e conversa com a possibilidade de se usar a ideação suicida como uma forma de continuar vivo: imaginar-se morto, preferencialmente de uma maneira violenta, cheia de sangue, faz com que o correr do relógio se torne um pouco mais tolerável – será sempre a saída possível para os meninos loucos e confusos. Não deixo de pensar que houve muito cinismo quando a NASA lançou a Voyager para reproduzir no infinito inabitado todos aqueles sons do planeta e também os dos humanos; e, principalmente, para fazer um registro que entraria para a História. Para que o homem não sentisse com escândalo o fato de ter sido tirado do pedestal, oficialmente deposto da posição de centro do universo, Sagan contornou a situação com classe – argumentou que o pálido ponto azul que se vê na foto tirada pelo satélite não representa nada para o Universo, é verdade, mas, para nós, é simplesmente tudo – nossa estranha e ínfima morada. Nossos amores, desafetos, alegrias e dores estão todos contidos nesse minúsculo bloco sólido que flutua na escuridão, cercado por corpos hostis e impossibilidades. Dentro da atmosfera acolhedora, porém, levando em conta uma série de absurdos que culminou na existência da vida pluricelular e pensante, temos todas nossas confortáveis ilusões. E assim vencemos, com alguma sorte, um dia por vez – ensolarado ou chuvoso, normalmente nublado por dentro. A percepção profunda do mundo traz consigo um cheiro podre há muito tempo – pelo menos desde que os ídolos começaram a cair, um a um, sem misericórdia; mesmo assim, reféns de um impulso cujo sentido me escapa, permanecemos vivos.

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João Lucas Dusi é autor do romance O diabo na rua (2022) e do livro de contos O grito da borboleta (2019). Passou pelas redações dos jornais de literatura Cândido, veiculado pela Biblioteca Pública do Paraná, e Rascunho, editado há mais de 20 anos. Vive em Curitiba (PR).

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