C erta vez, uma cela de prisão foi construída por um artista no topo de uma montanha pouco visitada, não muito distante da cidade. O artista era como inúmeros outros artistas. Ele queria expressar o que jamais havia sido expressado.

A cela de prisão se assemelhava a outras celas de prisão. Tinha piso de concreto, barras verticais de ferro, vaso sanitário, uma cama estreita e uma pia. Claro que, como era arte e não prisão, não havia necessidade de água corrente, teto, guardas, cerca de arame farpado, câmeras de segurança ou torre de vigia.

O que distinguia essa cela de prisão de outras era o fato de que, uma vez concluída, ela passou a ser consciente do fato de que era arquitetada, isolada e imóvel, incapaz de escolher seu próprio caminho e experimentar o que estava além da vista das copas das árvores e do pôr do sol.

Como o artista nunca ouviu nenhuma palavra ou grito emitido pela cela de prisão, abandonou sua criação.

Quando as gotas de chuva começaram a escorrer pelas barras de ferro da cela, formando uma poça e penetrando o solo, a cela de prisão ficou com inveja da água e perguntou: “Você gosta da fluidez?”

A água não respondeu.

Os espectadores, ao percorrerem a trilha e chegarem ao cume, eram confrontados com a estrutura imponente e mal localizada da cela de prisão.

Uns faziam selfies. Outros choravam. Outros meditavam.

Alguns estendiam tapetes de ioga e começavam a contorcer seus corpos.

Outros sentavam-se à distância, encostavam-se nas rochas, inclinavam a cabeça, semicerravam os olhos, pegavam bloquinhos de anotações para esboçar a cela de prisão, seduzidos pela justaposição da cela com as nuvens e o céu que constantemente exibia aviões, tudo pontuado pela presença ocasional de um falcão.

Um casal esperou escurecer, depois que as trilhas foram fechadas, e subiu com duas câmeras de cinema, dois tripés, dois pares de algemas, equipamentos de iluminação e som, um manequim e algumas cordas para trabalhar em um filme abstrato. As tomadas envolviam o casal se revezando em pintar um na pele do outro citações aleatórias, enquanto o manequim, ao fundo,  apoiava-se contra a porta da cela. Ao final da cena, quase ao amanhecer, examinaram minunciosamente seus corpos a procura de insetos.

“Um carrapato”, gritou um, pinçando o inseto de trás do joelho do outro com as unhas.

“Tudo culpa sua”, disse o outro. “Eu bem que avisei que seria melhor termos construído a cela dentro do nosso apartamento mesmo. Você é um idiota, um porco com ideias de porco. E ainda falou que não tinha carrapatos e pernilongos nesta época do ano. Agora tenho pelo menos umas trinta picadas de mosquito no corpo. Você sempre está errado.”

Quando a cela de prisão falou, perguntando se deveria temer carrapatos e pernilongos também, eles não responderam.

Nos meses seguintes, a cela de prisão percebeu que cada vez menos pessoas estavam interessadas nela. Um mochileiro insinuou que era um desperdício de espaço e material, que havia outras destinações com vistas igualmente belas que também conduziam a reflexões interessantes. Outro comentou que a razão pela qual a cela de prisão não conseguia comover as pessoas é que, devido à abundância de tecnologia e entretenimento de fácil acesso, ninguém mais pensa criticamente. Mais tarde, no mesmo dia, um músico usou uma colher de metal para tocar nas barras, criando uma batida sincopada enquanto cantarolava algo sobre espíritos e a insurreição dos números que se aproximava. “É uma maldição,” sentenciou ele.

A cela de prisão não sabia como entender o que ouvia das pessoas. Teria ela algum significado ou não? Contribuiria com algo de novo para o mundo? Ou era simplesmente algo sem propósito, completamente irrelevante?

Tudo o que entendia era que ninguém respondia à sua voz, nem grilos, nem esquilos, nem as estrelas nostálgicas, nem as nuvens hesitantes que se arrastavam ao redor, nem as árvores, nem pedras, musgos, raízes salientes, nem cogumelos selvagens. Mas um dia, quando a cela de prisão estava prestes a desistir de falar, um pardal, que havia saído da cidade e seguido por uma trilha escondida e estreita até o cume da montanha, ouviu a cela de prisão reclamar que as pessoas se recusavam a escutá-la, que se negavam a envolver-se em discussões sobre o propósito de uma cela de prisão como aquela.

“Você jamais deveria desejar que alguém a escutasse”, disse o pardal, empoleirado num galho próximo. “Nunca se preocupe com o que está fora do seu controle.”

“Eu não disse que necessitava ser escutada”, balbuciou a cela, fingindo estar aborrecida, embora aliviada por alguém finalmente a ter escutado e respondido.

O pardal voou por entre as barras de ferro e pousou no chão de concreto. “Mesmo que você fale”, disse o pardal, “e planeje o que tem a dizer, mesmo que cuidadosamente permita que as palavras avançarem em direção à superfície áspera do significado, você nunca será escutada de verdade.”

“Talvez as pessoas não pensem criticamente”, disse a cela.

“Isso é ridículo”, disse o pardal.

“Outro dia mesmo alguém disse, ‘As pessoas não pensam mais criticamente. Culpa da tecnologia.’”

“Não acredite em tudo que você ouve”, disse o pardal. “As pessoas sempre pensaram criticamente. Sentado nos galhos sobre bancos de parque, olhei muitas vezes por cima dos ombros das pessoas e li o que elas liam, observei os destaques e as anotações nas margens de suas densas páginas. A verdadeira questão é que muitos têm olhos, mas não veem e muitos têm ouvidos, mas não ouvem”.

O pardal começou então a expor o conhecimento que adquiriu das pessoas através da leitura e das brincadeiras casuais que ouviu, coisas sobre as quais as pessoas tiveram pensado criticamente ao longo dos anos – invenções como a roda, a lâmpada, linhas de montagem, mercados financeiros, de aviões à internet, telefone celular e todos os seus aplicativos.

“Mesmo que as pessoas tenham provado pensar criticamente”, disse o pardal, “desejar sua atenção não é a melhor forma de viver. Estar sozinho e sem interrupções é a resposta.”

“Se estar sozinho é a resposta”, disse a cela, “então por que você está falando comigo?”

O pardal não teve resposta e olhou para o topo da montanha. “Há muito o que viver. O mundo está aqui, de braços abertos para nós. Não vou me sentir derrotado, pelo menos não por pardais que só pensam em um bom ninho em um bom quarteirão. Eles me excluem e me descartam, só porque eu não quero o que eles esperam que eu queira.”

“Pelo menos você pode voar”, acrescentou a cela de prisão. “Se você não estiver satisfeito, tem como fugir. Eu preciso de uma Declaração do Artista. Quero sentir que as pessoas me entendem. Este lugar é tudo o que tenho.”

“Você não precisa que pessoas a ‘entendam’”, disse o pardal, “você está preocupada é com o fato de não ser especial. Este é o seu problema.”

“Eu não penso em ser especial”, disse a cela de prisão, ferida pela acusação. “Fique aqui por mais um tempo. Veja por si mesmo as respostas que as pessoas dão. Aí você vai ver.”

“Eu vim para a montanha para ficar sozinho”, disse o pardal, “não para descobrir o que as pessoas pensam sobre você. Seja o que for que elas acreditem ou não acreditem, isto não será decidido por um pardal e uma cela de prisão.”

A cela ficou em silêncio e recuou para seu eu estático.

O pardal, reconhecendo que tinha sido um pouco duro demais com uma ingênua cela de prisão, optou por ficar no local até que as pessoas chegassem. Não tinha obrigações de estar em outro lugar, não tinha mesmo destino, pois já vagava sem rumo por semanas.

Algumas horas depois, alguns caminhantes chegaram, olharam para a cela por alguns minutos, cruzaram os braços, coçaram a cabeça, bateram nas barras de ferro e um deles declarou, “Não entendi nada.”

“Você nunca entende nada.”

“Parece-me um pouco excessivo e forçado, não estou muito certo do propósito.”

“É marxista”, disse o outro, “é sobre lucro e extração”.

“Pare de citar Marx o tempo todo. E, por favor, tire o pôster de Lenin do banheiro. Me deixa nervoso. Não vou pedir duas vezes.”

O pardal gorjeou e riu.

Os passantes, no impasse sobre a cela de prisão ser marxista ou não, combinaram que deveriam ir embora antes que o sol desaparecesse, depois então discutiriam sobre como lidar com a infestação de ratos em seu apartamento de aluguel estável. Ratoeiras? Pasta de amendoim? Gato? Veneno? Quem sabe comer em restaurantes para evitar farelos e cheiro de comida?

“Você os ouviu”, disse a cela de prisão. “Eles discordam em tudo. A Declaração do Artista lhes daria algo para concordar, e ainda os distrairia de seus problemas.”

“Os problemas deles não serão contornados por uma Declaração do Artista”, disse o pardal. “Eles vão continuar discutindo. Seus sistemas de crenças são opostos. Não há resolução. Você não entende.”

“Então me explica. Eu quero entender. E por que você riu deles?”

“Da próxima vez eu conto”, disse o pardal, percebendo que isso implicaria em futuras expectativas de interações com a cela de prisão.

Envergonhado, o pardal saiu sem dizer mais nada.

A cela da prisão passou os dias cogitando a possibilidade de uma longa amizade com o pardal, que incluiria discussões aprofundadas sobre as viagens do pardal, e onde existiam e não existiam significados e entendimentos.

Sem poder saber o que era ter um amigo verdadeiro, a cela de prisão imaginou que os dias se confundiriam com outros dias, com semanas, com meses e anos. Décadas desapareceriam.

A cela de prisão sentiu-se inchada, embora suas dimensões de seis por oito fossem fixas. Ansiava por aprender não apenas sobre este pardal, mas sobre outras criaturas, até mesmo as pessoas e suas histórias repletas de realidades complexas. Durante as noites, depois da cela de prisão passar horas imaginando como seriam as formas da sociedade do lado de fora de sua janela estreita, despertada de vez em quando pelo barulho do suspiro prolongado dos aviões voando no céu, ela se perguntava sobre aquele pardal e sobre os pardais em geral. Quantos deles moravam na cidade? Teriam seus ancestrais compartilhado estórias com outras gerações de pardais sobre viagens em florestas densas, entre corujas e falcões? Teria sido fácil encontrar pardais com os quais se pudesse sentir conectados? Por que o desejo de ficar sozinho?

No final de semana seguinte, o pardal não apareceu. A cela de prisão, sentindo-se entediada, começou a expressar suas perguntas sobre a sociedade e as pessoas para as formigas, para as nuvens, e até mesmo para o confiável sol.

As formigas estavam muito dedicadas ao seu papel dentro de uma organização estrita para ficar formando opiniões sobre as pessoas.

As nuvens eram passivas, aceitando os aviões que brutalmente dilaceravam e perfuravam seus corpos precários.

O sol não falava. A responsabilidade universal pelo calor e pela luz significava que não poderia ser capturado pelo tédio da cela de prisão.

Uma tarde, porém, um pedregulho, que acabara de escapar da sola de borracha da bota de alguém, rolou e foi parar no chão de concreto da cela.

“Estou livre”, gritou o pedregulho. “Parecia uma eternidade. Devo ter ficado na escuridão daquele armário sufocante dentro de uma caixa de papelão por vários anos. Era como estar numa cela de prisão.”

Insultada pela facilidade com que o pedregulho ligava o que não era uma cela de prisão à uma verdadeira cela de prisão, convencida de que apenas celas de prisão são celas de prisão, ela disse, “Estou bem aqui.”

“Não fique chateada”, disse o pedregulho, “Eu estava sendo figurativo. Isto não foi um ataque pessoal a você.”

A cela da prisão não respondeu.

Nos dias que se seguiram, houve muito pouco vento e nenhuma chuva.  O pedregulho não se moveu. A cela de prisão explicou o que havia aprendido com o pardal, como deveríamos confiar mais nas pessoas, ao que a pedregulho indicou que as pessoas, ao contrário do diz o otimismo pouco convincente do pardal, não pensam profundamente e se você quiser que elas entendam alguma coisa, precisa dar uma explicação bem clara, sem nenhuma sombra de dúvida.

“Não podemos lhes dar desculpas para que interpretem mal uma única palavra”, disse o pedregulho. “O propósito, o significado das coisas tem que ser declarado, berrado, imposto a elas como um desastre devastador, deixando-as alteradas e subordinadas a você. As pessoas não deveriam ser admiradas por seu poder de invenção e criatividade. Quando se fala, as palavras têm que ser lançadas em movimento com certeza e tenacidade.  Só assim as pessoas são capazes de aprender e sentir.

“As pessoas são capazes de entender, embora raramente. O problema é que se tornam egoístas, mesquinhas, materialistas e controladoras. Compreender não ajuda. Elas tem problemas não resolvidos e estressantes, como o mau humor quando falta cafeína, a internet que não funciona, o vicio da pornografia, noites de insônia, as paredes finas dos apartamentos vizinhos e cobranças inesperadas em seus cartões de crédito.”

A cela de prisão ouviu o pedregulho falar por horas sobre a infinidade de aparatos algorítmicos conectados com sistemas de opressão – desde as celas de prisão escondidas em notas de crédito até as celas de prisão da linguagem, dos gestos corporais, do gênero, e de uma longa lista de perversões, como por exemplo, alguém de quem o pedregulho ouviu falar que só se excitava decepando cabecinhas de camarão. A coisa chegou a tal ponto que a figura só comprava camarões de cabeça erguida.

Passadas três semanas, quando o pardal retornou, explicou que optou por voltar apenas porque havia dado a entender que retornaria. “Eu valorizo a honestidade. Sou um pássaro que cumpre a palavra, sem falar que tive a oportunidade de observar as pessoas muito mais atentamente. Posso confirmar que a razão pela qual ninguém responde a você não é a ausência de uma Declaração do Artista. Já presenciei enxurradas de pessoas fotografando grafites que não exibiam explicação nenhuma. E todos adoraram.”

“Com grafite é diferente”, disse o pedregulho.

“Quem é você?” disse o pardal, surpreso com a interrupção.

“O pedregulho estava me contando tudo o que sabe sobre o mundo.”

“Você estava falando de uma cela de prisão”, continuou o pedregulho, “no final de uma trilha no topo da montanha. Você vai precisar de uma Declaração do Artista ou então ninguém vai levar nada a sério. E será também mal interpretado.”

“Precisamos é de Wi-Fi “, disse o pardal. “Quando as pessoas ficam esperando em cafés e museus, elas sempre verificam se há Wi-Fi disponível. É por isso que as pessoas ficam decepcionadas aqui.”

“Mas uma Declaração do Artista não vai fazer mal”, disse a cela de prisão, “sinto que as pessoas irão parar e refletir, se as ideias forem arrojadas.”

“Pare de se fixar na declaração”, disse o pardal. “Essa ideia é sua ou do pedregulho? As pessoas são capazes de uma infinidade de coisas. Ouvir e compreender não estão entre elas.”

“Ninguém precisa de Wi-Fi durante uma caminhada”, falou o pedregulho. “Você é um idiota. O que você ficou fazendo na cidade? Colidindo com vidraças e perdendo as células cerebrais?”

“Vivenciei muito mais coisas do que você.”

“Que mentira”, resmungou o pedregulho. “Estou aqui há muito mais tempo do que você imagina. Mais recentemente, estive preso dentro da bota de um estudioso de prestígio por pelo menos três anos, sem mencionar os tumultuados anos de antes. Independentemente disso, tive o privilégio de escutar discussões sobre uma variedade enorme de tópicos – de filosofia à literatura, física quântica, sobre o tempo, o nada e até encarceramento em massa. Se eu soubesse digitar, se tivesse acesso a um computador, poderia, em algumas semanas, escrever um manifesto bastante detalhado provando que todas as instituições contemporâneas são espelhos do aparato carcerário. Esqueça publicações. Esqueça elogios de críticos. Eu ganharia é o Prêmio Nobel”.

Ao se dar conta que o pardal se tornou reticente, e intimidado por uma conversa tão audaciosa sobre o Nobel, a cela de prisão disse, “Pardal, nos conte um pouco mais sobre sua lógica de como o Wi-Fi melhoraria a situação atual.”

“Se houvesse Wi-Fi”, gaguejou o pardal, “todos poderiam usar a internet. As pessoas ficam nervosas se não tem internet por perto. É como uma asa invisível para eles. Um apêndice. Ou um órgão.”

“Não nos relacionamos com apêndices e órgãos”, disse o pedregulho.

A cela de prisão suspirou.

“Então”, disse o pardal, “se você é um pedregulho tão inteligente assim, como pode afirmar que as pessoas não são dependentes da internet?”

“As pessoas são dependentes”, confessou o pedregulho. “Sem internet, o mundo moderno entraria em colapso. As pessoas estão constantemente reclamando de internet de baixa qualidade. Havia um roteador no armário ao lado da caixa de sapatos. Eu ouvi tudo. Uma pessoa, que tossia forte e persistentemente por anos de tanto fumar cigarros de palha e sem filtro, desligou o roteador da tomada e o arrebentou a marteladas.”

Todos então reconheceram que acesso à internet seria uma solução desejável. O problema era que pardais e celas de prisão não poderiam colaborar com a realização dessa visão, mesmo que confiassem em um venerável pedregulho para ajudá-los a tomar decisões. A cela prisão não tinha braços nem pernas. O pedregulho era apenas um pedregulho. O pardal só conseguia manusear objetos leves.

“As pessoas precisariam ajudar”, deu-se conta o pardal.

“Isso significa que precisaríamos de dinheiro”, disse o pedregulho.

“Se eu tiver sorte”, disse o pardal, “posso recolher com o bico uma nota ou outra de dinheiro acidentalmente largada na calçada, mas isso não nos levará a lugar nenhum”.

“O que eu descobri”, disse a cela de prisão, desejando contribuir para a conversa, “é que as pessoas estão sempre andando de um lado para o outro tentando obter sinal em seus celulares. Ficam frustradas porque não há sinal de uma operadora em toda a montanha.”

Para haver sinal, precisariam de uma torre de celular. Não havia nenhuma torre de celular, então uma torre de celular precisaria ser construída, uma que fosse totalmente operacional. Esse processo não apenas exigiria tempo, coordenação e trabalho organizado, mas havia muitos obstáculos no caminho a serem considerados, principalmente as pessoas que não apreciariam as torres perturbando a natureza. Também havia leis. Portanto, tudo estava bastante improvável.

“Impossível”, disse o pardal.

“A única opção é uma Declaração do Artista”, disse o pedregulho. “Eu sei exatamente o que deve ser dito.”

“Você não é o artista”, disse o pardal. “Você não tem o direito de falar pelo artista.”

A cela de prisão entrou em conflito. Por um lado, queria respeitar o artista que passou dias longuíssimos construindo-a meticulosamente. Por outro lado, se o artista intencionasse que houvesse uma Declaração do Artista, teria escrito a Declaração do Artista desde o início. A única coisa plausível a fazer agora seria desconsiderar o artista e produzir a declaração eles mesmos.

“Não vejo outra opção”, disse a cela de prisão.

“Faremos a Declaração do Artista”, disse o pedregulho. “A resolução é óbvia.”

“Isto seria enganoso”, disse o pardal. “Não me incluam. Já disse que eu sou honesto. Mantenho meus princípios.”

“Você veio até aqui e resolveu ajudar”, falou o pedregulho. “Agora não quer ajudar? Você não é confiável. Pelo menos eu sou consistente.”

“Eu vim aqui”, disse o pardal, “porque era isto o que precisávamos, escapar da indecisão, começar de novo, e testemunhar coisas que nenhum outro pardal havia testemunhado ainda”.

“O que?” O pedregulho odiava locuções vagas. “Fale com clareza. Seja específico.”

O pardal ignorou o pedregulho. E a cela de prisão admitiu que não sabia qual era a motivação do artista, conhecia apenas o processo pelo qual sua presença física tomou forma. Isto é, o derramar e o moldar do cimento úmido em uma plataforma achatada. O aparafusamento do vaso sanitário e das barras de ferro. As noites longas e frias. Como o artista a construiu sozinho, sem ajuda contratada, e chorou lágrimas frias na noite escura, com nada mais que algumas lanternas o auxiliando.

“O artista chorou”, disse a cela de prisão. “Me lembro bem. Ele chorou.”

“Muitos artistas choram”, disse o pardal. “Isso não é motivo suficiente para uma Declaração do Artista. O que iriamos dizer, ‘o artista chorou enquanto construía essa cela com suas mãos calejadas?’”

“Está correto”, disse a cela. “Melhor que nada.”

“Ficou muito,” o pedregulho interveio, “num nível superficial. Certa vez, em um dia chuvoso, fui arrastado para uma exposição. Fiquei preso na sola do sapato de um renomado professor de Harvard ou do Instituto de Tecnologia de Massachussetts. Esperei ser desalojado, mas isso não aconteceu. Temos que usar pelo menos ‘aparato’ na declaração. Um escritor, com quem o professor conversou, usava continuamente a expressão “prisão de pixels”. Seria como se houvesse fórmulas sobre o infinito universo digital espalhadas por aí e a cela de prisão fosse a metáfora final.”

“Este artista não se interessa por pixels”, observou o pardal. “Ele nunca disse nada sobre a internet. O artista nunca falou.”

“Não podemos ignorar”, acrescentou o pedregulho, “o fato de que a história das celas de prisão é horripilante e perturbadora. Mas a caminhada pela trilha é agradável, certo? Precisamos lembrar os espectadores de que milhares de pessoas com pulso, com pensamentos, com expectativas, ficam temporariamente subjugadas a uma cela, colocadas em uma caixa, transformadas em um Outro, ajustas convenientemente em números que satisfaçam fórmulas privilegiadas, e desprovidas de, por assim dizer, vida.”

A cela da prisão tornou-se reticente.

O pardal balançou a cabeça.

“O pedregulho sempre tem algo a dizer”, disse o pardal. “É logico que descrever um artista chorando no frio seria impactante. Mas chorar pode significar muita coisa. Se escolhermos descrever o artista como quem chora, como vamos diferenciar o choro dele do choro de um irmão que encontra um ovo quebrado, um ninho despedaçado ou um pombo egoísta negando-lhe acesso a migalhas de pão? Além disso, as pessoas podem me achar culpado apenas porque não chorei…”

“Mas isso não tem nada a ver com você”, retrucou o pedregulho.

Houve silêncio.

A cela de prisão refletiu sobre suas limitadas opções. “Pardal, você falou de ninhos. Ninhos são feitos de galhos, correto?

“Isso é óbvio”, disse o pedregulho.

“Esse negócio de ninho não é comigo”, disse o pardal.

“Estou pensando em galhos”, disse a cela, “não em ninhos. Você poderia juntar um monte galhos e organizá-los em letras e palavras e formar a Declaração do Artista.”

“Estou impressionado”, disse o pedregulho. “Isso faz sentido.”

O pardal sabia que a Declaração do Artista feita de galhos no final de uma trilha sem Wi-Fi não iria atrair tantas pessoas quanto uma Declaração do Artista em um ambiente mais controlado, bem iluminado e com ar-condicionado, como uma exposição em um renomado museu, que exigira a compra antecipada de ingressos para se ter acesso. Ainda assim, eles precisavam ser pragmáticos.

“Não há escassez de galhos por aqui”, acrescentou a cela de prisão. “Temos um arsenal deles”.

“Acho que poderíamos colocar por escrito”, disse o pedregulho, “‘O gênio alcoólatra acordou de sonhos vívidos e atormentadores como em ‘Vigiar e Punir’ de Foucault’. Então incluiremos ‘abjeto’ em algum momento, ou coisas como ‘a areia movediça dos algoritmos, na qual almas torturadas se afogam’. Abjeto é uma das minhas palavras favoritas. Aí é só conectar com a natureza infinita do universo digital que é, na verdade, diremos, ‘o buraco negro do desejo’”.

“Pare,” exigiu o pardal impacientemente. “Precisamos pesquisar. Se vamos falar pelo artista, precisamos entendê-lo”.

“Eu não acabei de dizer que, desde que digamos qualquer coisa e façamos com que o texto soe sofisticado, o público receberá bem. Trata-se aqui da cela de prisão, não do artista. Que amigo você, hein? Um verdadeiro idiota.”

“Você bem que poderia procurar o artista”, disse a cela de prisão. “Você é pássaro. Pode voar. Se o vir de perto, talvez ele explique o que quiz dizer comigo assim, desse jeito. Ele tem olhos fundos e um rosto longo e caído. Talvez isso ajude.”

“Que estupidez” disse o pedregulho. “O artista e seus olhos fundos são irrelevantes. Eu sei muito bem o que dizer.”

O pardal ignorou o pedregulho e disse à cela de prisão que iria procurar o artista.

Para tanto, começou a acompanhar de perto os caminhantes na descida da montanha para ver se descobria, em suas reações, qualquer menção ao artista e seu possível paradeiro. Mas mesmo aqueles que viram ou apenas ouviram falar da cela de prisão nada sabiam sobre o artista. Não havia nenhuma página oficial na internet com a biografia do artista, nem fotografias e nem listas de trabalhos anteriores. Assim como nenhum inventário de artigos acadêmicos que pudessem elucidar a relação das prisões com a vida cotidiana.

O pardal nunca mais deixou a montanha. Permaneceu sempre a um curto voo de distância da cela de prisão. Descobriu que as pessoas tinham muito a dizer sobre a cela de prisão, que a instalação era significativa e instigante, mesmo sem uma Declaração do Artista. Além disso, observou que muitas pessoas comentaram que aquela instalação havia mudado a ideia que elas tinham sobre prisão, sobre a natureza, e sobre as discretas pontes que conectam as duas, inspirando-as a apoiar movimentos a favor da abolição do sistema penitenciário.

“A condição humana é realmente uma condição anti-humana”, disse um passante, saltando sobre um tronco de árvore coberto de musgo caído pelo caminho.”

“É estranho que isso tenha me deixado excitado?” disse um outro.

“Você é patético”, concluiu o outro.

Enquanto a cela de prisão esperava pelo pardal, cada vez menos pessoas vinham visitá-la. A cela de prisão começou a acreditar que, durante caminhadas, as pessoas procuram trilhas que dão a espaços abertos, como uma visão em primeiro plano do que se encontra longe, não um recinto localizado desprovido de qualquer significado irrefutável.

O pardal nunca descobriu quem era o artista. Não teve escolha, a não ser juntar fragmentos do que as pessoas diziam sobre a cela de prisão para potencialmente chegar a algum significado. Então, ao longo de um dia inteiro, tendo revirado cada fio incongruente da lógica dentro de sua cabeça, o pardal organizou vários galhos formando uma declaração que ficou no chão como um capacho, do lado de fora da porta da cela de prisão. A declaração dizia:

UMA CELA DE PRISÃO NÃO É UMA CELA DE PRISÃO. É APENAS UMA ÂNSIA POR CONTROLE COMPLETAMENTE VAZIA. O ARTISTA BUSCA CONTRASTAR NATUREZA E APARELHO PENITENCIÁRIO. AO COLOCAR O LAZER NO MESMO ESPAÇO OCUPADO POR UMA CELA DE PRISÃO, O ARTISTA PROPRÕE UM CONFRONTAMENTO ENTRE PRVILÉGIO E REALIDADE CARCERÁRIA, COLOCANDO CONCEITOS MUITAS VEZES OPOSTOS NA MESMA ESFERA FÍSICO-TEMPORAL.

“Prolixo demais, disse o pedregulho. Eu teria dito: ‘É impossível existir digital e fisicamente. Agradeça. Afogue-se na areia movediça algorítmica. A cela de prisão é uma reflexão sobre a catástrofe não natural e anti-humana que chamamos de internet. E daí.”

A cela não sabia o suficiente para desaprovar a ideia.

O pardal não tinha energia para falar-piar sua melodia de uma nota só. Passou a noite ali, dormindo profundamente ao lado do pedregulho e da cela de prisão.

No dia seguinte, uma brisa forte e repentina havia destruído algumas linhas do texto, tornando-o indecifrável.

“Você deveria ter usado galhos mais pesados”, disse o pedregulho.

O pardal voou em direção aos galhos espalhados para reescrever o que havia sido estragado, mas o vento era forte demais, persistente demais, indiferente à variedade de significados pré-construídos deles.

À noite, o vento se acalmou e o pardal trabalhou lentamente, esforçando-se para reescrever a declaração.

Esgotado, seus movimentos tornaram-se imprecisos e suas asas não conseguiam mais bater. O pardal não terminou as frases e esqueceu as que já tinham sido aprovadas. Terminou com UMA CELA DE PRISÃO NÃO É UMA CELA DE PRISÃO. ELA ANSEIA PELA NATUREZA. LAZER INTERROMPIDO PELA PROXIMIDADE DA ESTRUTURA CARCERÁRIA.

O pedregulho disse: “Está melhor do que antes, mas está faltando alguma coisa”.

“Não anseio pela natureza”, disse a cela de prisão. “E nunca vi uma prisão. Talvez eu não seja o que vocês pensam que eu sou.”.

“Não posso agradar a todos”, disse o pardal. “Estou exausto.”

Mais tarde, enquanto o pardal descansava em um galho próximo, um jovem casal chegou ao topo da montanha e soltou o cachorro que traziam da coleira.

O cachorro disparou em direção à cela de prisão. Antes que as pessoas pudessem confrontar a Declaração do Artista em destaque, o cachorro escorregou na terra, destruindo todas as palavras. O cachorro pegou um galho grosso que contribuía para o P e o prendeu com a mandíbula, abanando o rabo, babando como uma cachoeira.

“Ele quer brincar de puxa-puxa com você”, alguém disse.

“Como pode o cão não estar cansado? Toda aquela escalada”, disse outra pessoa, ofegante. “Cada pauzinho que ele vê, ele ou destrói ou abocanha. Que bicho ganancioso.”

“Outro dia ele trouxe um esquilo morto e largou em cima na minha poltrona favorita.”

“Cachorro malvado”, disse uma pessoa.

Depois daquele dia, o pardal não falou. A pedra não falou. A cela da prisão não falou.

 

Não passou muito tempo, o pedregulho foi levado por uma forte tempestade, foi enterrado debaixo de outros pedregulhos, terra e folhas caídas, com a voz abafada demais para poder se diferenciar entre os muitos sons que pertenciam à montanha.

O pardal não aguentou mais a viajem de ida e volta a cidade nos meses frios de inverno que seguiram.

“Volte para o seu lugar”, disse a cela de prisão. “Fique por lá. Não preciso de nada disso. Não funciona. Você estava certo no início.”

O pardal ignorou a cela de prisão. A cada dia, organizava galhos na simples frase, Uma cela de prisão não é uma cela de prisão, ignorando o pedido da cela para que escrevesse, “A cela de prisão quer ser ouvida pelas pessoas”.

Certos dias, a neve cobria a frase toda. Outros dias, as pessoas reconheciam a frase e trocavam os galhos, reescrevendo-a para inscrever seus próprios nomes no final da trilha, sinalizar o amor que sentiam um pelo outro, ou deixavam as iniciais de alguém conhecido que faleceu ou de alguém conhecido que foi encarcerado injustamente.

Mas nenhuma palavra feita de galhos era indestrutível. Nada realmente resistiu.

O pardal compreendia a necessidade das pessoas de alterar e nomear as coisas, de moldar a natureza para que se ajustassem a si mesmas, mas a cela de prisão ficou indignada porque as pessoas estavam, inconsequentemente, destruindo tudo que o pardal tentava manter com tanto trabalho.

As estações vieram e se foram.

O pardal sobreviveu a tempestades e fome, ao calor sufocante, ao congelamento de suas penas. Ultrapassou sua expectativa de vida de três anos e viveu até os quatro, nunca se separando da cela de prisão por mais de um dia. Se partisse, vagaria por uma cidade próxima e retornaria para descrever pessoas e pássaros. Às vezes, inventava histórias que não eram verdadeiras, para fazer o mundo parecer maior e mais sutil. O pardal nunca falou do que deixou para trás, apenas das coisas que mereciam estar ali, naquela montanha. Um dia, como qualquer outro pássaro, o pardal envelheceu e morreu. Seu corpo apodreceu na terra e aos poucos se decompôs, seus ossos levados pelo vento, perdidos entre galhos e folhas.

Depois de muitos anos, quando a cela de prisão já não se importava se era uma cela de prisão ou não, se era arte ou não, o artista voltou. As barras de ferro estavam enferrujadas. Uma camada de musgo cobria o concreto. O vazo sanitário estava cheio de pichações.

Então, quando, à distância, ninguém mais reconhecia que se tratava de uma cela de prisão, o artista se fechou lá dentro.

Insensível ao retorno do artista, a cela de prisão permaneceu em silêncio.

Em poucos dias, multidões barulhentas se reuniram, foram aumentando e dobrando de tamanho a cada semana.

O artista ficou preso na cela, dependendo dos visitantes para comer e beber, mas ninguém tentou destrancar a cela.

As semanas se transformaram em meses. Os espectadores perderam o interesse, evitavam oferecer comida ao artista ou diziam a ele que não carregavam dinheiro. Um dia, até um padre subiu ao topo da montanha e se ofereceu para ouvir a confissão do artista. Assim como uma advogada de defesa criminal, que apresentou ao artista seu cartão, especificando que daria um bom desconto se o caso dele fosse a julgamento, que era especialista em casos bastante complexos, e que ele já poderia contar com um pedido de redução de sentença.

“As pessoas cometem erros”, ela declarou, balançando a cabeça enquanto seu cartão escapava pela ponta dos dedos sujos do artista. “São imperfeitas e merecem uma segunda chance.”

A cela de prisão desejou que o pedregulho voltasse, que emergisse como uma cigarra por debaixo da terra. Queria saber o que poderia ser dito sobre a situação toda, como a lei, mesmo não provocada, tem a capacidade de transformar um artista impotente e lutador em um criminoso culpado. Não fazia sentido.

Com o passar do tempo, o artista se exauriu e ficou desnutrido, incapaz de ficar de pé por longos períodos, emitindo de seu corpo um cheiro forte devido à falta de água e sabão. No frio, ele estremecia. As pessoas pararam de se referir a ele como o artista.

Em vez disso, ele se tornou “O Prisioneiro”.

Os funcionários do parque, que nunca olhavam diretamente para a cela de prisão, revisaram e ajustaram as placas da trilha para guiar as pessoas até “O Prisioneiro”. Havia até uma placa que alertava sobre os perigos potenciais caso alguém pisasse a menos de um metro da cela.

“Ele não é um prisioneiro”, implorou a cela de prisão. “Isto é um modo de expressão, uma ruptura com a natureza, uma lembrança de que as celas de prisão estão emaranhadas com nossos próprios passos!”

Os funcionários do parque não ouviram.

O artista não ouviu.

Ninguém ouviu.

As multidões tornaram-se, gradualmente, cada vez menores, até que houvesse apenas uma pessoa a cada poucas horas. Mais tarde, uma pessoa por dia. Depois uma por semana. Um visitante, que deixou uma garrafa de água e um saco zip-lock cheio de amendoins, perguntou ao prisioneiro por que ele se recusava a sair da cela de prisão.

Depois de não falar nada durante sua permanência na cela, o artista falou: “Eu nunca criei nada significativo. Tudo é apenas eu no invólucro de mim mesmo. Nada escapa.”

Essa voz era como muitas outras vozes, indistinguível da voz do pardal ou do pedregulho, e até mesmo das vozes dos espectadores.

Quando o artista morreu, em uma terça-feira fria, seu corpo flácido e raquítico foi levado embora como um corpo flácido e raquítico. Este corpo, que eles agora chamavam de “O Corpo”, era tão magro que deslizava por entre as barras de ferro sem a necessidade de se destravar e abrir a porta da cela. E então, em uma terça-feira, uma equipe de três funcionários desmantelou a cela de prisão.

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Andrew Felsher é escritor e editor e mora em Nova York. Sua ficção, ensaios e poesias foram publicados na Fiction Writers Review, São Paulo Review, Ligeia Magazine, Action, Spectacle e em outros lugares. Ele foi um dos editores da The Liderar Review. Atualmente é o editor da 128 Lit, uma revista internacional de arte e literatura impressa e online.

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Elton Uliana é tradutor brasileiro radicado em Londres. Ele é co-editor do Brazilian Translation Club na University College London (UCL). Suas recentes publicações incluem textos de Carla Bessa (Your Impossible Voice, Asymptote e Oxford Anthology of Translation), Ana Maria Machado (Alchemy), Sérgio Tavares (Bengaluru, Qorpus), Jacques Fux (Tablet e 128Lit), e poemas de Rufo Quintavalle (Rascunho). Suas traduções de Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Alê Motta e Carla Bessa aparecerão em Daughters of Latin America, (Harper Collins, 2023)

 

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