E lvira Vigna (29/09/1947 – 10/07/2017) completou 50 anos de carreira. São diversos livros, ensaios e ilustrações. Descobriu que estava doente em 2012. Desde então, publicou 7 livros, sendo quatro no Brasil, um na Itália, um em Portugal e um na Suécia. Recebeu quatro prêmios de prestígio (prêmio APCA de Melhor Romance 2016, segundo lugar do Oceanos, prêmio ‘ficção’ da Academia Brasileira de Letras, Cidade de Belo Horizonte de Melhor Romance) e foi finalista de outros 4 (Prêmio Rio, Jabuti, São Paulo, Portugal Telecom). Além disso, traduziu 4 livros e publicou 9 artigos acadêmicos; ilustrou 4 livros, sendo dois premiados (incluindo um Jabuti de melhor ilustração).

Conforme a família, tem três livros inéditos. Sua produção completa pode ser conhecida em seu site: http://vigna.com.br/. Leia abaixo texto criado para a São Paulo Review para a série “Gerúndio a dois”, criada por Sérgio Tavares.

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Pulando amarelinha com a Eneida de Virgílio

* Por Elvira Vigna *

João está na minha frente e eu olho para a ponta dos pés. Nessa época uso botas. E tenho algumas rotas de fuga para tirar João da minha frente.

Uma é o vértice de linhas inclinadas que apontam para um dos dois únicos pontos em branco do ambiente. Uma junção de duas paredes e o teto.

Outra é a amarelinha de eneidas.

Aos poucos, com o passar dos dias, começo a ler as lombadas dos livros em que ele nunca mexeu, os livros sendo limpos pelo serviço de limpeza da editora e nunca, nenhum, tirado de seu lugar por ninguém. Aos poucos, em vez das linhas inclinadas do meu branco particular, o do teto, vou experimentando as linhas, retas mas não muito, das lombadas nas estantes. Lembro de um dos títulos, porque se repetia. Fazia o que me pareceu ser um jogo de amarelinha.

Eram três e eram eneidas.

Aquela, a do Virgílio.

Nem tanto de Virgílio. Justamente.

Um Virgílio que sumia.

Tinha a Eneida de Virgílio, de encadernação em couro verde musgo e letras douradas, ao lado de um Jean Paul Sartre vagabundo, com capa colorida e título em letra tão pequena que não dava para saber qual era de onde eu estava. Esse Sartre deve ter sido posto na estante do escritório simplesmente porque ninguém sabia onde pôr e acharam que lá, entre tantos livros, não iriam notar o acréscimo.

Tinha a segunda Eneida, em formato álbum, com tradução e notas de um Odorico, o nome Odorico Qualquer Coisa grande, na capa. E que era um livro bem maior do que a primeira Eneida. Não ficavam perto, um do outro. Nessa Eneida já não há nenhum Virgílio. Só há o Odorico, embora com a justificativa de que se trata do autor da tradução e notas, e não do texto.

E um dia descubro uma terceira Eneida, também longe das duas primeiras, essa chamada de Eneida Portuguesa, com autoria de João Alguma Coisa e introdução de um outro Jota Outra Coisa, os dois jotas orgulhosos, grandes, na capa também grande. Esse é um livro maior do que o segundo que já era maior do que o primeiro. O primeiro livro, o menor deles todos, sendo portanto o único a dizer que o texto lá de dentro foi escrito por alguém chamado Virgílio.

Como se eu fosse dando pulos em uma perna só, cada vez mais longe do real: alguém chamado Virgílio escreveu uma epopeia em versos intitulada Eneida. E não terminou. Outros entram, outras casas. É uma amarelinha em que fico, uma perna, eu também no ar à espera de uma completude prometida pelos vários episódios que crescem de tamanho, mas que nunca de fato acabam. E com uma autoria que fica cada vez mais para trás. Ou melhor, uma autoria que vai se espalhando por várias casas dessa amarelinha, eu mesma virando autora. Se não de uma eneida, pelo menos das histórias de putas de um João que nunca termina de fato o que conta, e que vai ficando, ele também, cada vez mais para trás. Os detalhes, aqui, são na maioria meus.

Não é de todo mau.

É mesmo bom.

Objetivamente, a amarelinha de eneidas me faz bem, ali, na hora em que a descubro. Gosto disso, o fato de nada ser definitivo nelas. É o que me permite pular cada vez mais longe e achar que, assim, o tempo vai acabar passando. Ou eu.

E vejo mesmo.

O escritório com os vidros quebrados, teias de aranhas pendendo do teto. Eu e João mortos, fossilizados em nossos respectivos lugares, o uísque que seguramos apenas uma mancha um pouco mais escura nos copos de plásticos, esses sim, ao contrário da Eneida, de João e de mim, os copos, esses sim, indestrutíveis, definitivos, eternos. E não há mais som algum nesse escritório, além do som do mar, calmo, agora, depois de ter subido o que tinha de subir.

Sem eletricidade, o escritório. Não mais. Fora do escritório, fora do prédio do escritório, na rua em frente ao escritório, postes se tornaram iguais às árvores. São árvores um pouco mais convictas, mais determinadas, mais retas. A luz de fora sendo filtrada não mais por cortinas que se tornam restos duros, verticais, irreconhecíveis, nas laterais da janela. Mas o filtro da luz passando a ser o pó sobre os vidros, o que funciona muito melhor, o que é muito, mas muito mais bonito. O chão sem mais nem ratos. E do lado de fora do escritório, nenhuma Sarita sentada, cachorro policial, à mesa.

“Ele está em reunião e não pode atender no momento.”

E fora do escritório, do prédio do escritório e da rua em frente ao escritório, há a cidade inteira que está coberta por uma areia que corre, como se atrasada para alguma missa, nas calçadas de suas ruas mais altas, o que não é o caso da Marquês de Olinda. A Marquês de Olinda, aliás Botafogo inteiro, o que foi Botafogo, tendo virado um mar calmo e raso, com uns recifes que, se houvesse alguém para chegar perto e ver, veria que são recifes feitos, não naturais, que são restos de construção.

O mar faz chuá, chuá, muito devagar, na maré alta de fim de tarde de uma rua Marquês de Olinda que não existe mais.

E que vira mesmo um vídeo, The street of Marquês de Olinda, na turistificação de Botafogo, aliás da cidade inteira. The street of crocodiles. Escrevi uma vez sobre esse vídeo que achei por acaso na internet, em outro dia, em outro verão, em que, outra vez, nada tinha para fazer, nem da minha vida, nem das histórias que vivi e ouvi e vi. E das histórias que não vivi, ouvi nem vi. Mas que acho que foram assim.

 

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O conto “Pulando amarelinha com a Eneida de Virgílio” foi composto a partir de um trecho de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, romance inédito de Elvira Vigna (Companhia das Letras)

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