* Por Alex Queli Tomé *

Mãe Floresta: minha vida com ayahuasca, de Ana Vitória Vieira Monteiro (Folhas de Relva Edições, 2023) é uma obra inclassificável. Não apenas por uma questão de gênero narrativo, mas por sua filiação criativa. Ao menos, neste momento, não encontro aproximações óbvias com outras obras contemporâneas. Parece-me uma tentativa casuística – para não dizer vã – buscar correlações literárias a partir de meu repertório pessoal. Mãe Floresta é uma compilação dos livros Reza brava (2007), O caminho de todos nós (2010) e Xamanismo: superação de limites (2013), em edição revista pela autora ou, como ela própria descreve em nota de abertura, “ao reler os três livros que uni, surgiu um novo livro”. Acontece que Ana Vitória é uma pensadora incomum e desconcertante que nos convoca a acessarmos outras estruturas de pensamento, outras formas de linguagem. A autora é uma xamã (embora ela própria jamais se denomine desta forma) que nos propõe um modo de ver decolonial e espiritual das coisas do mundo e, nesse sentido, se aproxima, por exemplo, de obras como A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert e Erva do diabo: os ensinamentos de Dom Juan, de Carlos Castañeda, ao mesmo que se afasta de ambos porque a xamã urbana avoca para si o direito de narrar sua própria história, sem intermediários.

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Ana Vitória foi uma das primeiras escritoras a falar publicamente sobre sua experiência com a ayahuasca, em 1997, com a publicação do e-book Ayahuaska é a mestra no caminho de Ió. A ayahuasca ainda não era regulamentada o que implicava insegurança jurídica para quem a comungava, tanto mais se se ousasse escrever e publicar livros sobre um tema ainda cercado de preconceitos e tabus. Não por acaso em Mãe Floresta a ayahuasca compõe o título da obra, pois ela é uma espécie de agente, de protagonista. A autora parece nos dizer que a planta mestra não é um veículo para se alcançar uma determinada camada de realidade das coisas – o que parece ser o caso de obras como A serpente cósmica, de Jeremy Narby -, a ayahuasca é a própria realidade. É a partir da experiência espiritual que se reelabora velhas noções de ciência, filosofia e arte. “É impossível percorrer a jornada separando a razão da emoção ou do espírito. Assim como é um absurdo separar a vida material da vida espiritual, pois só existe vida e ela não apenas está na emoção e na razão, mas também na consciência, e além dela”. Neste livro as plantas falam e não só elas. A escritora ouve da planta Wachuma/São Pedro as seguintes palavras: “Vou te ensinar como usar Ayahuasca”. Já a Ma’kaña/Cannabis lhe adverte com os dizeres: “Vou te ajudar no seu trabalho, mas não me use e nunca mais me invoque. Isso vale para todos de sua linha”. Embora não tenha a pretensão de ser um manual ou guia Mãe Floresta, em breves capítulos, descreve e aprofunda os diversos elementos que permeiam o xamanismo, dos os animais de poder aos instrumentos musicais, da vestimenta à ritualística.

A autora teve seu primeiro contato com a Ayahuasca no Peru em 1982 e no início da década de 90 vivenciou novas experiências no contexto religioso brasileiro. “Vou cada dia a um ritual diferente, até por não poder deixar de ir, pois a tal peia não acaba, independente dos trabalhos, do hinário, do lugar, da direção. Elas duram três anos seguidos”, descreve ela. Até que recebe de presente cinco litros de ayahuasca de um xamã peruano “tão preta que parecia borra de café” e um mundo novo surge. Em 1996 ela é convidada para levar ayahuasca para o último ensaio da peça “Bacantes”, no Teatro Oficina. Um ano depois, funda oficialmente a Porta do Sol. Ao longo de sua jornada ela encontra figuras históricas do campo ayahuasqueiro como Luiz Mendes, Daniel Serra e Raimundo Nonato.

Da chegada dos portugueses ao Brasil aos tempos atuais Ana Vitória não se furta em escrever sobre qualquer assunto, esotérico ou não. A força de sua literatura advém, muitas vezes, desse hibridismo entre visível e invisível, fato e mito, racionalidade e Deus como nesse inspiradíssimo excerto: “Não se davam conta de que nativos e europeus estavam ligados pelo mesmo mito: o da árvore sagrada, que, para eles, produz o fruto proibido. Proibiram o chá como imaginaram que Deus faria se estivesse no lugar deles. Ainda bem que não eram Deus e a árvore não era uma, mas duas. Expulsaram os nativos do recém-encontrado paraíso. (….) Diferente do conto mítico judaico-cristão, os nativos não foram embora. Esconderam-se na floresta densa, tornaram-se quase invisíveis e assim permanecem até os dias atuais, continuando a fazer os seus ritos de Yajé para cumprir o destino, que é, segundo eles, a preservação da raça humana. Estão certos de que, se desaparecerem do mundo, o mundo desaparecerá também. E, para evitar tal desastre, dedicam-se a pacificar o homem branco. (…) Estamos no paraíso, na mística dos brasis, ninguém foi expulso, não desistimos ao direito sagrado da paz interior, sem culpa de ser feliz”.

Talvez os autores mais radicais sejam aqueles que ousaram abrir seu inconsciente aos seus pares. O livro vermelho, de Jung, é uma bela amostra disso. Mas se o livro do psicanalista suíço só veio a público em 2009, décadas após sua morte, a obra de Ana Vitória tem como princípio seu próprio mergulho no inconsciente seja pessoal seja coletivo. Ela não tem medo de abrir sua caixa de pandora íntima ao longo das trezentas e poucas páginas de Mãe Floresta. “’Ele/Eu’ queria somente que expusesse os problemas, os tirasse de seu reino, para que ele (a célula) pudesse descansar em paz, já que por dedução lógica, as mágoas do passado deveriam estar fazendo muito barulho, incomodando o senhor das profundezas. Se as deixasse ele iria entortá-las, espremer até liquidá-las de vez, levando meu corpo junto” excertos como esse são corriqueiros ao longo do livro.

O estilo de Ana Vitória é direto, sem floreios. Condensa o máximo de simplicidade mesmo sobre aquilo que parece indescritível. Por exemplo: “O transe é o processo mais antigo de autoconhecimento da humanidade, usado em todas as épocas como a maior das fontes de inspiração”. Ou ainda: “Todas as vezes que perdemos nosso caminho, a técnica é voltar para trás e refazê-lo”. A autora nos traz para perto, muito perto, refutando qualquer artifício literário que erija barreiras entre leitor e autora (intelectualismo e hermetismos foram veementemente elididos). A sensação, muitas vezes, é que ouvimos a autora ao redor de uma fogueira.

Percebe-se em Mãe Floresta que a história pessoal da autora se funde ao trabalho espiritual que ela fundou e desenvolveu. Escreve a autora: “Quinze dias depois (da morte de Guilherme, seu filho), faço um trabalho. Corajosamente, encaro-o no plano astral sem desviar os olhos e aceito sua partida. Agora está realmente livre. Coloco a fênix que ele havia tatuado no braço na capa do Hinário”. Mais do que isso, ao contar sua relação com a Ayahuasca Ana Vitória narra também a história recente do Brasil como na situação em que sua filha a desperta na cama dizendo que “há ‘índio’ de verdade na cozinha”. O que poderia ser apenas a descrição de um fato inusitado tem como pano de fundo o massacre dos Yanomamis em 1993. “Passamos um bom tempo em reuniões, filmagens secretas para noticiários de televisões rádios estrangeiras, passeatas, declarações aos jornais, missa ecumênica na catedral da Sé, tudo em clima de estado de guerra. (…) A casa virou embaixada indígena!”.

A autora recusa a espiritualidade que se afasta da realidade dos fatos. É do rés do chão que a religação com o divino se estabelece. “Observo que o difícil não é lidar com o transe, ou com o plano espiritual, mas com os anseios e expectativas alheias. Mais difícil era conseguir quem colaborasse depois que tinha sido ‘curado’”. Dessa forma, a arte ocupa papel central na experimentação da realidade espiritual como no excerto: “Rejeitamos parecer religiosos, nem queremos nos mostrar um grupo terapêutico. Desvisto-me da roupagem de terapeuta, de parapsicóloga e de acupunturista. Retiro o ar sacerdotal de adivinha, de jogadora de tarot e o ar indecifrável da astróloga que fora. Busco algo que possa ser um canal para o muito que vivenciamos, e não encontro nada melhor do que a arte”.

A certa altura a autora nos confessa “em sua primeira edição, por exemplo, a Câmara Brasileira do Livro classificou esse livro dentro do tema ‘alucinógenos’. Absurdo, reclamo”. Ana Vitória nos aponta aqui o importante debate no campo ayahuasqueiro sobre as distinções dos ditos alucinógenos com os enteógenos. Não se trata de um embate de terminologia meramente, mas da construção de uma perspectiva ética e estética a qual se funda o agenciamento com a planta de poder, sendo que o enteógeno não se resume a súbita alteração da realidade, mas o acesso aos diversos níveis do real que se comunicam com o ser humano para além do visível e do tangível. O livro é tal qual um organismo vivo (a Floresta do título) que se mostra e se desvela conforme a capacidade do leitor estar aberto e sem preconceitos diante do desconhecido.

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Mãe floresta – Minha vida com ayahuasca, de Ana Vitória Vieira Monteiro (Folhas de Relva Edições, 315 págs.)

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Alex Queli Tomé é escritor, pesquisador e pacifista. Formando em Comunicação Social pela UFSCar. Nasceu em Orlândia, interior de SP. Vive em São Paulo. Roteirizou os curtas-metragens “A Cena perfeita” e “Recortes”. É autor do romance Eu contra o Sol (Confraria do Vento).

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