* Por Ronaldo Cagiano *

Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um punho que martela nosso crânio, para que lê-lo? São ‘os livros que se abatem sobre nós como a desgraça, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos. (Franz Kafka)

Em seu livro de estreia, O pai da menina morta (editora Todavia), o editor e  escritor paulista Tiago Ferro arregimenta um habilidoso puzzle ficcional para discorrer sobre a dor e o luto da perda de Manu, sua filha de oito anos, ocorrida há dois anos, fato que comoveu todos que a conheciam e sensibilizou os meios literários e jornalísticos.

A narrativa caleidoscópica e fragmentária comporta em seu arcabouço formal e temático um pout pourri de sensações e impressões multiplicados pela memória de um pai assoreado por um desastre tão precoce. O falecimento da menina ocorre também num momento em que sepultavam-se as esperanças de um país convulsionado política e moralmente, com o povo nas ruas. Mortes simultâneas, a do ente querido e a dos valores, que no fundo levam cada um de nós a uma mesma imersão num escuro sem fim.

Nesse sentido caminha o romance como num jogo de espelho ou desvelando palimpsestos, pois reflete o caos emocional de um protagonista derrotado pela indesejada das gentes, cujo desconforto psicológico não arrefece. Ao longo do romance, emulam-se questionamentos e inquirições, ao lado de referências à cultura, à política e reflexões sobre o próprio momento do país e do mundo, num movimento de intercessão de passivos que nos vencem como um golpe sobre o tatame da vida.

A opção por um viés narrativo que interpola vários recursos nos lembra a construção literária de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, ou de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, ainda que essas obras comportem motivações distintas. Surge uma visão multifacetada da memória que, convulsionada pela dor, tenta organizar-se dentro de uma razão fragilizada e de uma subjetividade caótica, em que o peso da ausência e das lembranças vão corroendo de forma avassaladora com a profusão de cenários confusos.

Autor e narrador, em simbiótico vulcanismo interior, são arrastados por uma pororoca de sensações, numa sequência torturante e incompreensível da própria existência, quando o real e o imaginário tornam a caminhada tão ilegível quanto a aceitação da perda.

Os planos cronológico e psicológico às vezes parecem ilegíveis, o personagem tenta se reconhecer na roldana cruel imposta pelas circunstâncias e nesse percurso o leitor é convidado a sentir a mesma atmosfera de isolamento ou despertencimento, quando é nítido o elevado grau de espanto, claustrofobia e insegurança: “Onde estou? Parece um aeroporto, uma estação, urubus comendo restos de porcos. O painel de destinos é caótico: datas e horários se embaralham sem parar e os países estão grafados num idioma incompreensível.” O pai da menina morta literalmente perdido entre mundos que lhe parecem intangíveis ou inóspitos, em que as reações desvinculadas do presente ou calcadas no pantanoso terreno das recordações configuram uma cartografia inquietante e labiríntica, recolhendo os imperdoáveis cacos de uma infância estilhaçada.

Ao longo da narrativa percebe-se o registro ou prospecção de objetos que parecem inservíveis, como colagens de um universo aleatório, notações e listas de compras ou providências, lembretes, cenas de filmes e títulos de livros, entre outras observações de variado teor.  Um fluxo hemorrágico do inconsciente  que pode parecer despropositado ou insólito, mas tudo tem uma coerência interna. Nesse liame que a linguagem estabelece com o des(a)tino do protagonista se insinua a existência do surreal para que se possa suportar o peso de uma tragédia e tentar saltar por cima de um abismo intransponível, sugerindo a fragilidade que não se consegue nomear, senão pelos disparates da própria linguagem, com suas metáforas e seus símbolos.

Noutro momento marcante do livro, realidade e fantasia parecem habitar a mente do narrador numa espécie de evisceração da culpa auto imposta, quando o pai da menina morta se vê diante de um tribunal e, em clave delirante, parece escutar: “Você deixou a sua filha morrer. Que espécie de pai você é? Como você ainda tem coragem de exibir a sua cara por aí? Como você ainda tem a petulância de comer, dormir, sorrir, trepar, respirar? Como? Responda!”.

Em sua feliz estreia, a partir de uma infelicidade pessoal, Tiago Ferro apresenta o seu olhar angustiado de uma experiência familiar dilacerante, mergulhando nos escaninhos de uma lacuna que nunca se preencherá. É a palavra urdida nos interstícios de um processo de aceitação ou compreensão desse luto que não cicatriza, mas que o autor soube, com habilidade narrativa e sem cair na autocomiseração ou na exacerbação sentimental, transcender e purgar.

Uma práxis literária que, se não consola ou mitiga o sofrimento, paradoxalmente, remete a uma dimensão tão humana quanto poética que lhe permite conviver com essa melancolia, uma tentativa de reconciliar-se com a vida que segue, ou ressignificá-la, apesar dos pesares, mas que em sua dimensão estética também comporta a ética interior que o sustenta.  Lembra-nos obras análogas que tentaram também, à sua maneira, inventariar ou exorcizar os dramas ou as dèbacles causadas por perdas, como Nada a temer, de Julian Barnes; O ano do pensamento mágico, de John Didion; Nora Webster, de Cólm Tobin; A desumanização, de Valter Hugo Mãe; A definição do amor, de Jorge Reis-Sá; Os verbos auxiliares do coração, de Péter Esterházi; e Cartas a D – História de um amor, de André Gorz.

O pai da menina morta é desconcertante, um soco no estômago que nos tira da zona de conforto espiritual para um profundo exame sobre nossa falta de defesa e nossa transitoriedade, que fala de um episódio transformador. Mas um registro pungente e repleto de amor e verdade, toca-nos como leitores, afeta-nos como seres e não nos deixa indiferentes. Um livro para ser lido e sentido em toda sua potência emocional e delicadeza artística com a assinatura de um escritor em sua melhor forma.

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Ronaldo Cagiano é autor de Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti 2016), reside em Portugal

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