Depois da experiência de Escute as feras, a antropóloga francesa Nastassja Martin volta ao Grande Norte e a seu diálogo com os even da península de Kamtchátka em A leste dos sonhos – que a editora 34 publica agora no Brasil. Os “personagens” são os mesmos: Dária, seus filhos e filhas, o pequeno grupo que a seguiu de volta à floresta e a um modo de vida em vias de esquecimento. Mas agora o foco se abre para incorporar o contexto histórico e global que emoldura os acontecimentos e as decisões em Tvaián, às margens do rio Ítcha.

Da colonização russa da Sibéria ao fim da União Soviética, da pilhagem capitalista do território à aceleração da mudança climática, tudo parece conspirar para pôr em cheque a persistência dos even. Contra esse pano de fundo, Martin põe-se a interrogar as respostas even a essa crise de múltiplas faces: os sonhos animistas de Dária, o aprendizado da vida prática longe do Estado, a negociação com o mundo mercantilizado, a reflexão mitológica sobre os seres e os elementos.

Nada disso é exposto com arrogância paternalista nas páginas de A leste dos sonhos: o retorno ao sonho e ao mito, em particular, são entendidos não como regressão, mas como gesto audaz de captação de um mundo em vertiginosa metamorfose e de ação política nesse novo cenário. Por meio de um exercício de escuta paciente, Martin vai despindo o que viu e ouviu em Tvaián de todo exotismo, para discernir o nó palpitante de uma experiência humana que diz respeito tanto aos even como a cada um de nós.

Nastassja Martin nasceu em Grenoble, na França, em 1986. Estudou antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde se doutorou em 2014, sob a orientação de Philippe Descola, com uma tese sobre os gwich’in do Alasca. Publicada sob o título de Les âmes sauvages (Paris, La Découverte, 2016), a tese recebeu o prêmio Louis Castex da Académie Française. Seu livro seguinte, Escute as feras, publicado originalmente sob o título de Croire aux fauves (Paris, Gallimard, 2019), revisita experiências de 2015, quando Martin realizava pesquisas de campo junto aos even da península de Kamtchátka, na Sibéria. O livro recebeu o prêmio François Sommer de 2020 por sua contribuição à reflexão sobre as relações entre o homem e a natureza. Nastassja Martin é membro do Laboratório de Antropologia Social e desde 2020 participa de um comitê contra a degradação turística em La Grave e no maciço dos Écrins, nos Alpes franceses.

Camila Vargas Boldrini, a tradutora da obra é especialista em questões de colapso socioambiental no Museu de História Natural de Paris. Atualmente, dedica parte de seu tempo à restauração de uma parcela de solo na serra da Mantiqueira.

 

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