* Por Hugo Almeida *

Quem nunca leu ou ouviu, sem contestar, a frase “o trabalho dignifica o homem”? Há de fato uma verdade nela, talvez eco de Gênesis (3.19), “Comerá o teu pão com o suor do teu rosto”, algumas vezes traduzida como “Ganharás o pão com o suor do teu rosto”. O homem nasce e cresce ouvindo que o labor é essencial e dignificante. Mas não só a Bíblia fala do valor do trabalho. Hegel (1770-1831) lembra em Fenomenologia do espírito (1807) que “a vida e a labuta, cotidianas e permanentes” participam do percurso das relações da consciência para com o sensível, do qual “procede o movimento do perceber e do seu verdadeiro”. Pode-se afirmar, sem temor de erro, que trabalho e dignidade estão historicamente ligados. Não há problema nisso, já que o trabalho impulsiona o mundo. Sem ele, não haveria evolução das condições de vida na Terra. O progresso da habitação, saúde, comunicação, do transporte, lazer etc. é resultado do esforço contínuo de bilhões de pessoas em todo o planeta ao longo dos séculos.

No entanto, nem sempre trabalhar constitui uma atividade dignificante. Basta recordar, como exemplo extremo, o que havia de aviltante e desumano nas condições de “trabalho” (aquilo não era trabalho) impostas pelos nazistas aos judeus nos campos de concentração, tão crua e poeticamente reveladas por Primo Levi (1919-1987, na foto de destaque deste texto) em É isto um homem? (1947) e reprisadas em livros e filmes sobre a II Guerra Mundial. O mundo inteiro tem consciência de que milhões de homens e mulheres de todas as idades foram brutalizados pelo “trabalho” mais que escravo: atroz, sob um regime cruel de longas e exaustantes jornadas de trabalho forçado, com alimentação, roupas, calçados e alojamentos precários, suficientes apenas para manter-se vivo por mais algum tempo. Teriam aquelas multidões esqueléticas, almas dilaceradas, surgidas da libertação ou dignidade do trabalho? E logo, logo a legião de “trabalhadores” era substituída por outra leva trazida pelo trem da morte.

A frase em alemão Arbeit macht frei, “O trabalho te liberta”, no portão de entrada do campo de Auschwitz, não deve ser entendida somente como irônica ou perversa, mas também como abjeta, indigna, expressão máxima da bestialidade humana, algo muito acima da nossa compreensão. Que dignidade existe em rastejar-se semimorto feito animal para obter o mínimo de comida e viver mais alguns dias? Que libertação é essa que leva à morte? Também os guardas dos campos de concentração – Primo Levi afirmou com propriedade – podem ser incluídos na interrogação de É isto um homem?.

Um tanto longe disso, mas igualmente indignas são as regras das relações de trabalho no Brasil impostas pelas reformas trabalhista e previdenciária pós-golpe de 2016, sempre com a promessa vã de ampliar as oportunidades de emprego. E o resultado, expressão da indignidade e da dor, grita nas estatísticas e no dia a dia: o desemprego e a precarização do trabalho aumentam ano a ano. O trabalho temporário e o chamado “por conta própria” explodem. A renda despenca, o endividamento tira o pão e o sono de muita gente.

O Brasil tem hoje, meados de 2022, mais de 11 milhões de desempregados. Na conta do IBGE só entra quem está à procura de emprego. Milhões, fora desse número, são chamados de “desalentados”. Cansaram de procurar e não encontraram nada, e milhares não podem sequer pagar passagens de ônibus urbanos para ir atrás de trabalho. Quem ainda nutre a esperança de conseguir um emprego a curto prazo aceita qualquer um, “o que tiver”, como dizem entrevistados, muitos altamente qualificados, no meio da multidão que se forma diante do ponto de recrutamento ou seleção para vagas anunciadas. Em muitos casos, a proporção ultrapassa a casa de mil candidatos por vaga.

A taxa de desemprego do Brasil (sem falar no ainda existente trabalho análogo à escravidão) vai ficar entre as maiores do mundo em 2022, prevê a agência de classificação de risco Austin Rating, com base em projeções do FMI para a economia global. O índice de desemprego no Brasil supera os de países como Argélia, Colômbia, Costa Rica, Irã e Suriname.

Perspectiva de aposentadoria digna? Ilusão, utopia. A crítica ao sistema previdenciário presente em A rainha dos cárceres da Grécia, romance de Osman Lins (1924-1978) publicado em 1976, continua dolorosamente atual. Nele, a personagem Maria de França, perdida no labirinto de injustiça e burocracia, busca sem êxito aposentadoria por insanidade no então INPS. Atualmente, há quase 3 milhões de pessoas na fila de espera por um benefício do INSS, seja aposentadoria ou auxílio-doença. Desemprego, desalento, futuro incerto, milhares de pessoas em situação de rua. Esse quadro de desespero é consequência de quê?

Parte da resposta pode ser encontrada em palavras do autor de Amar, verbo intransitivo e Macunaíma. “Eu tenho absoluta certeza […] que Hitler, Stálin […] etc. etc. têm claríssima consciência de que são criminosos, que quando agem arrasam o humano que ainda existe na vida, que quando falam mentem”, escreveu Mário de Andrade (1893-1945) em carta à poetisa Henriqueta Lisboa (1901-1985), em 24 de fevereiro de 1940 (Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa, org. Eneida Maria de Souza, Edusp/Peirópolis, 2010). Não é difícil atualizar os nomes, fora e dentro do Brasil, de quem tem plena consciência de seus crimes. Quatro séculos antes de Cristo, Bias, um dos sete sábios gregos, disse uma verdade imutável: “O exercício do poder põe todo homem à prova”.

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Hugo Almeida (1952), jornalista e escritor mineiro radicado em São Paulo desde 1984, é doutor em Literatura Brasileira pela USP. Tem mais de dez livros de ficção publicados. Certos casais (Laranja Original, 2021), de contos, é o mais recente. Detalhes sobre o livro aqui: https://bit.ly/livroCertoscasais

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