* Por Leno Rocha *

Nunca imaginei viver um período de pura escassez sexual. Mesmo conhecendo os riscos, as imprevisibilidades, contratar uma profissional se mostrava necessário. Já imaginava nossos corpos em intensos redemoinhos vulcânicos, já me sentia parte dos delírios exóticos de uma desconhecida, infringindo as leis da física em aerodinâmicos orgasmos. Na perigosa madrugada belenense, tal procura não se tornaria difícil e meu nível de exigência viril manteve minha obsessão pelo caso.

Estacionei em um trecho soturno – vigilante e desconfiado – não tive tempo de desistir, uma jovem abriu a porta, e sem cerimônia, perguntou para onde iríamos. Enquanto arrumava alguma coisa na bolsa, vasculhei seus traços e eram de uma beleza só vistas em filmes europeus o que naturalmente contrastava com aquele beco encardido que em nada espelhava sua pele finíssima que convidava ao torpor poético. A sua pergunta nem tratei de responder, nada mais importante naquele jogo, apenas sua resplandecida presença. Parecia que nos conhecíamos há décadas, tamanha intimidade fora percorrida naquela enorme avenida. Contou que era novata no assunto do sexo profissional, todavia, eu deveria me acalmar, que saberia encontrar prazeres inesperados. Fingi que conhecia todos os membros da questão, como um homem maduro em busca de uma prazer de alta qualidade, e também uma boa companhia para um vinho. Creio que tenha conseguido passar um sinal de vibrante masculinidade. Poucos quilômetros depois encontramos um discreto motel com esculturas de anjos na entrada e dizeres quase religiosos.

Fiquei na cama – como que estirado – esperando talvez uma performance e ela seguiu para o banheiro – nos meus pensamentos – a excitação de uma grande noite: horas e horas de puro prazer carnal transloucado, uma orgia à dois medonha, e acreditava que ela, com absoluta certeza, se apaixonaria e eu a tiraria dessa vida bandida como aqueles filmes que eu odiava. Quando voltou, seminua e iluminada por um abajur cor de ameixa que deveria custar uma fortuna, a impressão é que deveria ter no máximo vinte anos. Imaginei casamentos, filhos e sexo – não nessa ordem – ela lenta e jovem, se aproximou como quem vai beijar milimetricamente seu amante e nas frações preciosas que separavam nossos lábios melosos, algo abrupto a fez mudar de direção.

 

Lágrimas, gotículas expressivas, naquele rosto que afundou junto ao resto do corpo ao lado esquerdo da cama e seus negros cabelos cobriram um gemido num compasso 4×4 tenro. Desculpa, não posso. Confessou constrangida e adorável. Fiquei sem reação frente ao acontecimento.  Calma... Afirmei sem desdenhar e ela confessou as razões para conseguir dinheiro naquela coite. Sua paixão por Bach.

Possuía quase todos os vinis possíveis dos grandes maestros que o interpretaram e que, no entanto, faltava Die Kunst der Fuge – de Bach. falou das simbologias, do significado cravado das notas em sacras canções de perfeita simetria em irretocável contribuição da música barroca à arte. Nessas horas eu já estava sentado na beira da cama como um universitário – que havia conseguido seduzir sua professora de história, não obstante, foi incapaz de excita-la além da própria história.

Minutos que pareciam uma eternidade e só depois de um languido silêncio soluçar, perguntei: O que faremos agora? Ela tinha uma teoria que infelizmente não tinha a ver com posições sexuais. Ela precisava desse vinil. – Não queria dinheiro, queria apenas Die Kunst der Fuge. Se achar para mim, serei sua para sempre. Afirmou convicta. Seu alemão era péssimo, mas lindo, inteligível, porém sublime e tal afirmação – mesmo mentirosa – tinha um vislumbre lisérgico, e percebi então que não havia mais ambiente para depravações: Analisei as possibilidades por alguns minutos enquanto ela se recompunha, sentada ao lado como quem aguarda o desenrolar de um veredito. Concordei com o destino.

Onde encontrar um vinil do Bach em Belém nessas horas da madrugada? Não acreditei que no fundo estava disposto a fazer tal concessão, só poderia estar apaixonado ou sofria de momentâneo lapso de anormalidade retardada.

Não é em uma loja, é que tenho um amigo que vai me venderEsse programa é apenas para pagar esse disco…Olhei para a cama quase intacta, para a camisinha violada e que não faria mal comprarmos esse disco e depois voltarmos para nosso sexo selvagem, e ela balançou a cabeça e nos beijamos com afeto.

Costuramos os becos ainda mais escuros de uma Belém desconhecida. Quase quatro da manhã, tinha trabalho e faculdade horas depois e tentava me convencer que seria por uma boa causa – enquanto isso – ela gesticulava sobre a beleza da obra de Bach, coisas sobre: os fluídos musicais e partituras que deveriam ser estudas pela física quântica. Meu pensamento era apenas permanecer vivo naquelas ruazinhas, atravessando bairros jamais visitados, topando com malandros e com súbitos arrependimentos logo trucidados pelo serrote da perversão esperançosa. Ela falava sobre a frustação de não aprender violino e sobre os livros de Virginia Wolf que não conseguira avançar, tratava-me com um improvável carinho acachapante, algo em que eu não estava acostumado e assim, chegamos na casa do homem do vinil.

O lugar poderia ser confundido com uma casa abandonado ou um chiqueiro adequado: repleto de notebooks espalhados pela sala, fios e alguns livros de TI, roupas sujas, restos de comida e cerâmica. Na televisão um filme de artes marciais e no sofá revistas sobre economia rural e contabilidades públicas. Foi me oferecido café e vodca, recusei, e pude notar que nas paredes do quarto haviam desenhos de filmes do Lynch e um cartaz de Apocalipse Now e outro de Pulp Fiction. O homem do Vinil – já que não havia entendido seu nome – trouxe uma pilha de vinis e nos divertimos folheando as artes e enquanto tentava pescar a atenção da moça, sem sucesso, um disco do Tom Zé fora bem mais interessante. Ela e o homem dançaram na sala as cinco da manhã, imitando trompetes e em risadas juvenis com piadas internas indecifráveis. Dessa vez aceitei o café. Ela sussurrou poemas de Ginsberg no meu ouvido encostando a cabeça no meu colo como alguém que vai adormecer. Vi cada vez mais distante no horizonte os rumos de obter êxito do fim da minha escassez mórbido, no entanto, sentia um prazer inesperado.

Acho que só horas depois o homem confessara que vendera o vinil do Bach para um sebo de centro de Belém e ela entrou num estado de desolação choramingada, estirada no sofá repetindo mantras como uma Hare Krishna bêbada: O que estais fazendo nessa casa ouvindo jazz com estranhos? Perguntou, fria e melancólica, e senti que precisava reagir, deveria reconquistá-la além do sexo contratual e sugeri resgatarmos o vinil, comprá-lo de volta, e aos saltos, me abraçou com cheiro de sexo alcoolizado, calçando as sapatilhas – enquanto lá fora – o amanhecer espertava-se descendo os lenções da noite e criando pequenos furos de iluminação preguiçosa. Nos despedimos do homem ao rumo desejado como um casal aventureiro à on The Road.

 

Nunca amou tanto um artista ou achas que sou ridícula? Me olhava como que procurando inclinações mais objetivas para o meu silêncio. Não acho que sejas. Na verdade. Achas bizarro alguém como eu gostar de Bach?

Não respondi porque no fundo era o que exatamente eu pensava. Lutava contra essa estupidez tacanha, por esse elitismo de periferia, por um ideal bestial psedouniversitário e de alguma forma isso trasbordava, transpassava, ere visível e idiota. Necessitava formular uma opinião mais considerável enquanto esperávamos na calçada do sebo Relicário. Ela era como uma alucinação e havia mais significado em toda aquela companhia do que há décadas eu poderia lembrar. Eu não articulava ou projetava qualquer ideia mais de prazer carnal, apenas a observava tímida, como que constrangida por – talvez – achar que estava sendo um estorvo para mim e eu fui absoluto e irritante na manutenção dessa imagem – como alguém que cai num labirinto cuja saída é visível e tola – uma ciência que naquele instante eu era incapaz de entender a procedência, e quando já estava disposto a quebrar o meu distanciamento enigmático, o dono do sebo levantou as portas e apenas assim ela abriu um belo sorriso erudito.

A seção de vinis era como um corredor de incalculáveis distancias e ela o enveredou com um prazer profético, enquanto um sono ameaçava me abater como uma febre que vinha de dentro para fora da visão dos espaços. Uma poltrona convidativa tinha um poder de mil braços enquanto ela expressava – com pequenos gritinhos de felicidade – a descoberta do Vinil e foi o último som que ouvi antes das profundezas sonolentas. No meu sonho aleatório, a visão de um flautista mágico – que desta vez – não seduzia ratos e sim rinocerontes e leopardos, levando-os; não às florestas; mas para dentro da minha cabeça – e talvez eu fosse um deles – desvencilhando-me. Havia também uma lanchonete cuja bebida principal era vodca e nas paredes, retratos de uma infância feliz e solitária, e no fundo uma trilha sonora medonha e irritante, uma cantiga que versava sobre perdas e abandonos, algo que ardia os ouvidos e que de forma incomum, arranhava a pele como uma coceira débil. Num quarto, de repente, prostrado eu estava e alguém jogava pedras na janela, o que me abrigava à me erguer para olhar e antes que pudesse saber quem me chamava, espezinhado pela voz do dono do sebo, acordei. Ei, vais pagar o vinil?

Alertou, me vendo acordar como um espectro abandonado. Lá fora, o sol já erguia sua presença com a matinal autoridade.

 

Nos outros dias a procurei, vaguei, fiz e refiz o caminho, acampei em noites no mesmo trecho, indaguei, descrevi, formulei nomes até descambar em frustrantes procuras.

Ainda hoje, busco aquela companhia, para ouvir Bach, em madrugadas impossíveis.

*

Leno Rocha nasceu em Belém. Formado em Gestão Pública, atua como servidor concursado na Universidade Federal Rural da Amazônia – UFRA. Têm publicações nos cadernos de prosas da revista Subversa, na antologia do Álbum de memórias e na editora independente GatoEd. Em 2018, ficou entre os finalistas do concurso de prosa das Universidades Federais do Pará. É escritor, roteirista e músico.

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