* Por Victorino Aguiar *

Godofredo de Oliveira Neto é Professor Doutor de Literatura Brasileira na UFRJ,  membro-titular da Academia Brasileira de Letras, da Academia Carioca de Letras e da Academia Catarinense de Letras. É formado em Letras e em Altos Estudos Internacionais pela Universidade de Paris, com doutorado pela UFRJ.  Sua produção literária, extensa e variada, é composta de romances,  contos, ensaios, crônicas etc. Suas obras são bem acolhidas pela crítica e pelo público. O mais consagrado de seus romances é “O bruxo do Contestado” (1996).

O desenho extraviado de Hieronymus Bosch está organizado em 33 capítulos curtos e meteóricos. Toda a trama se desenvolve em torno da busca do valiosíssimo esboço de um quadro de Hieronymus Bosch, que ninguém sabe ao certo onde se encontra. O inventariante escolhido pelos herdeiros é Luigi, um professor universitário e escritor  que  não demonstra muito talento para a função,  na verdade nem sabe direito porque foi escolhido e investido nela. É  ele que transitará entre os Estados Unidos, a Itália e o Brasil,  com a tarefa de encontrar, reaver e trazer para o Brasil a cereja do bolo, o cobiçado esboço,  avaliado em 50 milhões de euros. Os óbices que Luigi enfrentará não serão poucos, a começar pela saúde dele, que não é lá essas coisas. Ele conta com suporte psiquiátrico e faz uso de medicação controlada, mas isso não impede que seja vítima de desmaios frequentes, nas horas e nos lugares mais inusitados, nem muito menos impede que seja assombrado por terríveis e recorrentes  pesadelos.

Em Nova Iorque, ele tem um encontro com o primo Sordi, que mora lá há 10 anos, e que ele já sabe não ser uma boa bisca. Com base nesse encontro,  Luigi já pode adivinhar o  calvário que o espera. Ele conhece o lado noir da cidade, topa com figuras exóticas e vive com elas experiências dignas de uma narrativa de Gabriel  Garcia Marques. As dificuldades de Luigi, no entanto, não param por aí. De Florianópolis, Ana Júlia, a esposa, sempre que pode, o alimenta com péssimas notícias, o que contribui para piorar o já precário estado emocional do marido. Ele se tortura com os estreitos laços que ela continua a manter com o ex-namorado Filipão, por quem já foi perdidamente apaixonada. Ela jura que a paixão ficou para trás, que agora tudo não passa de uma grande amizade; mas Luigi, que está a 10 mil km de distância de Ana, não gosta de saber que Filipão foi festejar o rompimento de um namoro na casa dele, com a mulher dele, e tomou um “uisquinho” com ela. Mas isso soa como aperitivo, diante da inesperada gravidez com pouca chance de ser bem-sucedida, ou diante  do e-mail que ela recebeu por engano do tio dele, Domênico. O e-mail reproduz um diálogo comprometedor de Domênico com um advogado de má fama. Domênico é o único membro bem-sucedido da família; ele despreza os demais herdeiros, por ver neles uma seleção de perdedores, aproveitadores, incompetentes e descansados. Ele aponta sua artilharia especialmente contra Luigi, a quem emprestou uma considerável quantia, e ficou a ver navios. O diálogo entre Domênico e o advogado é de mau agouro; daí para frente, Dante será uma referência relevante.

O autor dotou sua obra de tamanhas intensidade e profundidade que, ao final da leitura, custamos a crer que tenhamos lido apenas 119 páginas. O romance tem uma estatura imponente, nem sempre encontrável em obras mais volumosas. Não há espaços para divagações e falas desnecessárias. Godofredo demonstra maestria no modo como faz uso, no melhor estilo aristotélico, das incontáveis peripécias que pontilham a narrativa. Não  há, no emprego delas, nenhuma concessão a qualquer tipo de apelação ou inverossimilhança. São todas pertinentes e necessárias à economia textual.  A racionalização  do uso da mancha gráfica é responsável, em boa parte, pela densidade e profundidade conferidas à obra, cuja transgressão sintática lembra bastante Saramago em “Ensaio sobre a cegueira” (1995).

O desenho extraviado de Hieronymus Bosch é recomendável para todas as classes de leitores. Estudantes, professores, profissionais liberais – todos que apreciem uma boa leitura – encontrarão, nessa obra, prazer e enriquecimento intelectual, porque o texto, a par de ser instigante, é também de fácil leitura e compreensão.

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O desenho extraviado de Hieronimus Bosch, de Godofredo de Oliveira Neto (Almedina, 119 págs.)

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Victorino Aguiar é professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, romancista, contista, poeta dramaturgo, cronista, resenhista e ensaísta.

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