* Por Nilma Lacerda *

O acaso lança uma faísca e decidimos ou não nos deixar queimar por ela. Arder e consumir, arder e viver? Cinzas ou brilho? Ou ainda tornar-se um curso, não mais, curso de água, curso de palavra. Aconteceu comigo.

Uma faísca em minha vida, o convite para navegar e me vi nas águas do rio São Francisco, o chamado rio da integração nacional. Rilke ia comigo, ele e suas memoráveis Cartas a um jovem poeta. Li, reli e reconverti suas lições em outras cartas, escritas no correr do rio para um escritor que me fazia perguntas sobre ética e estética na literatura para crianças e jovens. Não fiz toda a viagem, pois tinha compromisso em Campinas, no Congresso de Leitura do Brasil, onde li as Cartas do São Francisco: conversas com Rilke à beira do rio para um público de professoras, estudantes e pensadoras. Tive o privilégio de ser ouvida pela poeta cubana Emilia Gallego Alfonso. Nova faísca, outro convite. O congresso Lectura’99 aconteceria em breve e eu, já convidada, deveria levar como encargo expresso de Emilia um “Diário de navegação da palavra escrita na América Latina”. Embora o Diário houvesse começado antes, não era mais que um embrião, registros simples e isolados de algumas situações de leitura e escrita. Organizei-o para estar presente em Havana, no diálogo peculiar proposto por Lectura, no qual a América Latina falaria de si para si.

América Latina, um continente nomeado de forma arbitrária, em atenção a interesses alheios e em total indiferença por uma efetiva realidade social e política. À revelia de sua gente, hoje, como ontem, são praticados atos lesivos aos patrimônios nacionais. Ontem e hoje, se buscou e se busca apagar as lutas de resistência, ante a imposição, pelos poderosos, de falsas narrativas de capitulação e conformidade.

A palavra é, ao mesmo tempo, a mais íntima e a mais pública das resistências. Aprendi isso nos muros das cidades, na fala das pessoas, na literatura. Na construção de meu Dário, fiquei atenta às vozes anônimas, às obras sem nome de autor que atravessam as cidades. Estão no Diário também a literatura, os documentos oficiais e todo tipo de escrita a que tive acesso, o que me permitiu vislumbrar uma história viva e crítica da escrita efêmera, ao lado das escritas permanentes.

O material coletado para o Diário deve gerar um pequeno ensaio, Entre selva e jardim: a ecologia da escrita de uma viajante e nele se buscará evidenciar que em matéria de palavra escrita nos movemos entre a massa incontrolável de textos, regida pela proliferação e pela rebeldia – a selva –, e um conjunto organizado que regula a vida civil, mirando a harmonia, ainda que aparente – o jardim. Em sua mirada ecológica, a viajante observa a apropriação massiva e recente desta fundamental tecnologia que serviu para fazer da exclusão a baliza da vida política e social da América Latina, como bem o demonstrou o extraordinário Ángel Rama, em sua obra A cidade das letras (La ciudad letrada).

Presente nos muros da cidade, nos banheiros públicos, nos papéis de rua e em muitos outros espaços, a palavra escrita não está, naturalmente, nas águas do curso do rio. Em sua generosidade, um rio presta-se a fundar uma cidade e dar à gente em suas margens a possibilidade de aí viver. As pessoas vivem, amam, pensam, escrevem. Do jeito que for possível, onde for possível. Em espanto, exasperação e em vital fluxo de expressão.

O rio São Francisco me mostrou isso de uma maneira vívida. Mulher de letras, carreguei-as comigo e as recolhi durante a navegação do rio, um rio que adverte sobre os cuidados com a vida, que narra as histórias dos vapores e de outros barcos, de seus passageiros, além dos seres inofensivos, dos guardiães, das assustadoras quimeras. Não podemos nos esquecer, claro, da gente que chora pelos afogados, arrastados para o fundo do rio. Porque rio não é saber nadar, me disse uma das irmãs Dumont, as célebres bordadeiras, quando atravessávamos o rio sobre uma ponte precária. Buracos, redemoinhos, grutas, mares ancestrais sob o fundo arenoso de seu leito são segredos de sua alma, e o rio não os entrega a ninguém. Rio não é saber nadar, diz quem nasceu à beira-rio; anjo nada sabe de chorar, é Rilke em seus poemas, e por esta poética se pode chegar à ideia de que anjos e santos nada sabem do céu, e sim do humano. Sabem de nosso desconcerto e do possível concerto, tal como foi anunciado por Francisco de Assis.

Um ecologista bem antes que se inventasse o conceito, Francisco era homem santo, quer dizer, um ser de saúde. Pródigo, o santo empresta o nome a quem o pedir, como fez Américo Vespúcio para registrar o rio na memória do Ocidente. Não se incomodará, decerto, que eu venha a ter novas conversas a partir de suas margens. Uma nova edição, portanto, do livro que levou tantas leitoras, tantos leitores ao diálogo com Rilke no andar do rio. As conversas mais novas resultam da escuta de professoras e professores, como Flávio Ferreira de Melo. Na tocante carta que me escreveu ecoavam tantas outras vozes em demanda pela materialidade da sala de aula e de um fortalecimento frente ao apagamento da ação docente que há muito se realiza no Brasil. Projeto das elites que se comportam, em grande parte, como no tempo das Capitanias Hereditárias, mas sustentado também pelo Estado, das mais variadas formas. É palpável a solidão docente em seu enfraquecimento. É material a resistência, a resiliência docente em atos os mais variados. Espero que se reconheçam materializados na trajetória do rio e no livro que será lançado em Tiradentes, MG, no final desta semana.

Demorou a acontecer este livro, reinventado como tudo o que resiste. Um livro em que a iconografia brasileira se faz presente com fotos de acervo familiar, paisagens e objetos resultantes de viagens, no evidenciar de uma cultura de memória fluvial, no que tem, no que já não tem. Um mundo que se transforma, se reinventa, mas também desaparece. Para fazer face ao desaparecimento, é preciso cuidar da memória, determinar o espaço dos bens na sociedade humana. No caso específico destas Cartas, saber o lugar da literatura na cidade, como pede Antoine Compagnon, um dos pensadores que veio pra conversa. Marina Colasanti, outras das pensadoras que também apareceu para o encontro, mostra com clareza qual o lugar de um livro em meio à guerra – sejam essas que no momento ocupam as manchetes jornalísticas, sejam outras bem conhecidas do Brasil e da América Latina, e que nem sempre contam com a honra do noticiário.

Se faltam literatura e as outras manifestações de arte, a cultura esmaece, enquanto brota e cresce a barbárie. Sabemos disso, e sabemos também que a chamada alta cultura pode estar presente – como fruto de manipulações perversas – na germinação da barbárie. Que garantia se tem, então?  A constante chamada ao humanismo, à humildade de calçar os sapatos do outro, pôr-se em seu lugar. Falar dos perigos ocultos no rio, dar formas de furtar-se a eles. E saber quem somos, o que permite saber o que desejamos – bússola infalível. Conversar continua sendo um dos melhores recursos da humanidade para saber de si e do outro, que nunca é tão diferente de nós quanto se pensa. Basta ler literatura, para saber de falsas diferenças, de inesperadas semelhanças.

Cartas do São Francisco: novas e antigas conversas tem os selos do Instituto de Promoção Cultural Antônia Diniz Dumont e de Matizes Dumont, nascidos ambos em Pirapora, onde o rio começa a ser navegável. Assim este livro, navegável como o rio e para além dele.

Cartas do São Francisco: novas e antigas conversas, de Nilma Lacerda. Brasília: Instituto Cultural Antônia Diniz Dumont; Matizes Dumont, 2023. 148 páginas.

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