Resenha: As cores da falta

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Por Raimundo Neto *

Toda falta explica algo. E a busca é uma emergência.

– Neto, não consigo terminar o livro da Débora.

– Nem eu. Não consigo terminá-lo.

– Achou ruim?

– Não. Achei muito bom.

– Não consegue terminar por quê?

– Sei lá. Meu pai doente, fico pensando como seria se eu o perdesse. E você?

– Tudo que escrevo é sobre ausência, e já vivi as perdas e as crises decorrentes delas, como a personagem. É difícil continuar a leitura quando encontro palavra minha em livro assim.

Eu estava com o livro físico aberto deitado no colo, sentado no chão de uma livraria imensa em São Paulo, trocando mensagens com uma amiga, num dos intervalos da leitura, quando resolvi resgatar meu fôlego. Eu tinha deixado em casa outro exemplar de Enquanto Deus…, guardado no computador. Precisei ir até a Avenida Paulista (Concentre-se no que há lá fora) resolver algumas contas, pagar a vida por tudo que devo a ela com contemplação e passeio.

Resolvi entrar na Cultura e pedir o Enquanto Deus não está olhando. Sabia que não o compraria. Não gosto de comprar livros em livrarias gigantes. Prefiro sebos. Livro novo em lugar de livro velho com preço de livro antigo, mas cheiro de novo. E apenas continuei a leitura já iniciada em casa.

Para aqueles que acreditam, se Deus desvia o olhar, tal descuido divino permite uma catástrofe. Para isso, alguém que se vê vitimado por um deslize precisa ter-se crente, sentir-se pertencido a um mundo regido por uma Ordem superior, mastigar, no mínimo, alguns farelos de esperança. É assim para muitos homens e mulheres, é assim para muitas famílias.

Mas nem todo Deus é bíblico, embora as catástrofes que qualquer Deus pratique aconteçam com potência suprema: a presença imprudente de figuras que salvam/redimem/alimentam/punem é capaz de desorganizar a saúde de qualquer membro de uma família, assim como a falta delas.

É assim a relação de Érica e seu pai, no romance de Débora Ferraz. Uma jovem artista melancólica ao lado de um amigo vivendo uma odisseia pelo sertão em busca do pai que fugiu de uma clínica para tratamento de dependência química (álcool). Não apenas isso. É mais.

Érica pinta o sertão desconhecido com as cores sombrias da falta e do remorso. É ali que seu pai se esconde, é ali que a falta do pai habita, é naquele sertão que o pai some, que a falta aparece, que tudo termina e começa. Quem entende de começos que são fins exemplares?

Débora segura o enredo com responsabilidade, e mantém a linguagem no nível dos bons novos escritores contemporâneos. Por tudo isso levou para casa o Prêmio Sesc de Literatura deste ano.

Presente e passado costurados por fiapos de memória com uma linguagem consistente, rica, a escrita da Débora é precisa, vibra em cada linha, coloquial e organizada, que conta uma perda lamentada, da Érica, mais pelo drama da protagonista de não ter feito mais pelo amor que redime e salva.

Presente e passado costurados em uma tela puída, cores gastas, mas uma paisagem consistente e viva: é dor, é perda, é pai sumido, sertão, mãe presente-ausente, faltas que absorvem qualquer decisão de vida nova. Érica não reconhece a cor da falta. Quem consegue representá-la? Se usar tinta branca, é algo que nunca existiu. O pai esteve lá. E se usar algum tom escuro, ainda assim não organiza a ideia, por mais abstrata que seja, do ser faltante, da dor passada que nunca deixa de ser presente.

Érica desentende o que seria capaz de representar em suas telas a ausência do pai, a postura displicente da mãe, e tudo que veio antes, e tudo que virá depois, quando a ausência deixar de fazer falta, deixar de ser falta, faltar de vez, inexistir, um buraco dentro de outro, sujo de cores vivas.

A esperança também adoece, abre buraco, apodrece. Quem é capaz de esperar tanto pela mudança? E se não é possível, alguém foge, some, desaparece. É então que a esperança se abre em falta e nunca para de doer.

Enquanto Deus não está olhando, de Débora Ferraz (368 págs., ed. Record)

Avaliação: bom

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Raimundo Neto publicou contos na extinta Revista Malagueta, no site da revista Bravo (também extinta), e venceu um concurso literário (Contos de Teresina  – 2º colocado). Escreve coluna no site O Pensador Selvagem. É colaborador da São Paulo Review