Por Rafaela Romitelli *

Disse a Bea que estava partindo. Ela estivera pensando sobre isso a noite inteira e estava conformada. Me beijou sem sentimentalismos entre os vinhedos e se mandou trilha abaixo. Nos viramos depois de uns dez passos, pois o amor é um duelo, e nos olhamos pela última vez”

(Jack Kerouac em On The Road, tradução de Eduardo Bueno e Lúcia Brito)

Durante a guerra fria os americanos investiram 40 bilhões de dólares no programa espacial, e mais outros tantos bilhões na produção de mísseis, na disputa do poder político com a URSS.

No período, praticamente não houve embates militares reais, tratou-se apenas de disputar sobre quem teria mais poderio militar e tecnológico.

Como consequência do episódio, o planeta inteiro foi afetado pelo desenvolvimento científico, além da enorme quantidade de dinheiro gasto tolamente.

Este é o assunto sobre o qual a personagem feminina (e central) de Operação Impensável, de Vanessa Barbara, debruça para uma pesquisa histórica. este é o seu objeto de trabalho, que vai aparecer mencionado em pequenos episódios entremeando o tema principal do livro (daí vem também o título do romance).

O tema é o relacionamento amoroso da personagem central, desde a gênese até seu desfecho. Além das inserções das alusões à guerra fria, temos também mini resenhas de filmes que o casal assistiu junto. A dupla cria um caderno para o registro, e as resenha são cheias de adições das particularidades íntimas dos momentos em que assistiram aos filmes.

Vemos a construção estética da relação, tal qual um filme, vemos seu script, a direção de arte, os diálogos, figurinos, trilha sonora, tudo produzido pelo casal em questão.

Eles formam seu próprio repertório de símbolos, têm piadas que só os dois entendem, jogos, na verdade quase um idioma inteiro particular. Os filmes servem como um banco de imagens e referências, como um background, um pano de fundo.

Na cena do amor íntimo, apenas um é a testemunha do outro para os momentos de intensa poesia. Então quando o fim da relação se irrompe, para onde vai tudo aquilo?

O jogo de brincar-junto se transforma em jogo de adversários e de disputa de território.

Através da representação, disse o Schopenhauer, é possível criar a superação de todo infortúnio, quando o sofrimento se torna arte, algo acontece de emancipatório.

Eis que, assim, quando se conta do que viveu, do namoro que houve (e isso pode conter mais ou menos elegância), obtém-se a elaboração, como uma resenha de um filme entre os tantos que passaram pela vida da gente.

Tem mais coisa lá: esse tema tão atual que é o refreamento, ou mesmo combate, ao machismo, longamente onipresente aqui entre nós.

Há quem defenda que as mulheres escritoras sofram num ambiente machista, ao serem muito menos (mas muito menos mesmo) publicadas que os escritores homens, e por isso precisem de ter o espaço disputado ou conquistado.

Já ouvi muitas vezes homens dizerem; “essa escreve tão bem que parece homem”, para o arrepio dos meus cabelos. O livro justamente é muito bem escrito, mas as tantas fofices, bossas, escolha da capa, tudo deixa claro: o universo tratado é o feminino.

Há a gracinha da personagem representar sua cerimônia de casamento como se fosse uma transação comercial do “pacote” (ela personagem) entre sua família e o esposo. Em linguagem contratual, fica vedada a alteração da fachada do “pacote”, dentes e vidraças devem ficar em perfeito estado de conservação, e vistorias dos pais ao “pacote” são possíveis em datas previamente acordadas.

Confusamente, contudo, apesar de se colocar como um objeto na passagem citada, há indícios de ressentimentos com o papel feminino, seja pela forma como absorve a administração da casa, seja pelo medo dos ataques de raiva do marido, quando a relação já está perto de algum esgotamento, e por fim, pela maneira como o relacionamento se desfaz: a traição dele, o conluio do marido com seus amigos homens para esconder-lhe mentiras.

Quando o casamento começa a se desfazer, os minis episódios da guerra fria ficam mais presentes e as minis resenhas dos filmes desaparecem. Existem outros tipos de inserções também. Tudo isso em conjunto, torna a leitura muito divertida.

Particularmente, não vejo a hora em que não se faça mais menção ao gênero de quem escreveu certo livro, momento em que o gênero não seja mais uma questão relevante ou mesmo perceptível no estilo literário, e que realmente existam escritores e escritoras em quantidade proporcionais.

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Operação Impensável, de Vanessa Barbara [Intrínseca, 224 págs.]

Avaliação: _pena-01 [bom] 

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Rafaela Romitelli é arquiteta-iluminadora, e lê livros sem parar

 

 

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