São Paulo, semana 1: a felicidade amputada

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 Por Raimundo Neto *

Primeiras impressões de São Paulo do nosso colaborador, que acaba de se mudar de sua Teresina (PI) natal para a capital paulista.

(Escrevo em todos os lugares. São Paulo pede palavra. Mantenho muitos registros e desapareço. Ninguém soube que estive ali. Eu, que carrego o mundo no nome, agora levo São Paulo comigo.)

Cheguei há 10 dias. E já tenho algumas vidas revezando-se em mim entre o que acredito importante e o que desacredito necessário. Fui trazido pelo esforço, escolha própria. Sonhos derretidos começaram a enrijecer nas variações do tempo.

Passo despercebido, apesar de poucos dias, tantas vezes que já acreditei no que é impossível fazer para se fazer presente. Meu reflexo corre apressado, enquanto deslizo lento pelas avenidas e ruas, no mar de carros e retinas, na velocidade dos trens, na luz subterrânea dos metrôs. Ninguém demora seus olhos em mim, e eu não demoro dentro dos olhos de ninguém. Tornei-me um homem que sabe onde pisa, calcula desvios, mas não sabe o que dizer sobre o que precisa.

Os caminhos de São Paulo levam todas as pessoas a outras pessoas. Desconfio das ruas extensas que parecem não ter fim. Jogo o caminho desejado no gps e espero. Arrisco alguns passos, e quando chego à metade do caminho já dei de cara com centenas de pessoas que são destinos traçados; ainda não sabem disso, que eu as vejo como destino de algo, de alguém, algo grande, mas não maior que eu, apenas bonito e intenso. Uma rua, qualquer que seja ela, desemboca num sujeito esquisito, ou idêntico, desinteressado, engraçado, bonito, sujo. As avenidas que se cruzam são laços irmãos de pessoas estranhas. Um ato de fé da arquitetura pretensiosa que nunca sonhou em facilitar encontro de homens e mulheres de todos os tipos. Porque o concreto não sonha. É muito claro pra mim. Não sei se elas enxergam isso. Enxergam-se por acidente, o olho dentro do outro parece ferir, ameaçar.

A maioria das pessoas leva um pedaço de casa nas costas: tudo aquilo que é necessário e que inclua objetos diários da vida prática, que limpem, alimentem o corpo, descarreguem males da alma, preservem a saúde, pedaços de orações, minúcias rasuradas da bíblia, escova de dente, comida-rápida: que as lembre do quão distante de casa estão e como será impossível voltar lá a qualquer momento. E as suas inflexões carregadas, dobradas, chiadas, esparsas e perversas, desafiam minha determinação. As pessoas, ainda mais, carregam uma segunda-feira irremediável a tiracolo. Algumas se arrastam, poucas parecem querer parar. O amor tem pressa, mas não chega a lugar algum: será isso o que elas querem dizer, sem dizer nada?

A maioria das pessoas que está quebrando o meu caminho em dezenas de passos vacilantes descobriu-se de mau humor surpreendente ao ter bolhas de sabão (livres e dançantes) animadas sopradas pelo senhor sorridente na esquina de uma Starbucks. Ninguém ri. As bolhas de sabão estouram sua transparência inofensiva diante da infância vencida, cansada, inalcançável de todos eles.

O tempo seco, chove-não-chove, molha e não lava. Depois o sol. Um calor de mentira, comparado ao que trago comigo do Piauí. E então as lágrimas que não derramei até aquele instante, vazam lentamente, dentro da secura do dia. É o corpo reivindicando o direito de sentir saudade, quando tudo o que consegue sentir é alegria.

A única pessoa que me enxergou, semana passada, pediu-me ajuda. Uma beleza enorme, coberta de cores, adocicada, e traços enormes, contornos vigorosos, a feminilidade aguçada em traços fortes. A voz dobrada e cintilante, sempre dois tons acima, e um sorriso convincente. Toda alegria cansada merece uma benção. A travesti nem olhou pra mim, primeiramente. Pediu ajuda a uma mulher sentada à sua frente. “Fala pra ele, bicha, que já tô cansada de pedir ajuda.” Então a mulher (uma mineira, casada, e que me confundiu com um carioca) explicou: Ela precisar pegar o metrô do outro lado, mas não consegue chegar lá, e eu não aguento sozinha.

Duas desconhecidas. E eu. Então a travesti repetiu pra mim, com seu veludo puído nas cordas vocais, que precisava ir até o outro lado, mas são dois lances de escadas, e as pessoas correndo, as centenas de pessoas que correm e não olham por onde andam, e não olham pra ela, e não a enxergam. Vão tropeçar na ausência dela. Porque é travesti, talvez. Porque tem apenas uma perna. Como ela chegou até aqui?, pensei, desesperado. Poderia ser eu. Poderia ser qualquer pessoa. A beleza capenga menosprezada numa estação de metrô gigantesca, subterrânea, os ecos de incompreensão ricocheteando nas construções resistentes que se ergueram dentro do peito, atrás dos olhos que não enxergam nada.

(Há duas semanas terminei o livro do Schroeder sobre uma travesti. Lembrei-em imediatamente da personagem Copi: destemida em sua tristeza inabalável.)

As pessoas também não me enxergam, Fulana (como é o nome dela?). Estou aqui há pouco tempo. As pessoas não me enxergam, não me ouvem. Minhas palavras saem sopradas, envergonhadas, dobradas em si, muitas vezes, silêncio em origami, mas sem construções bonitas que causem empatia e amor, que as faça levar minhas dobraduras para casa e as exponha nos móveis que abraçam a família toda.

Seguramos, eu e a moça miúda, a travesti. Sustentamos seu desmantelo elegante, cada um de nós sustentou um braço-axila nos ombros e a levamos até o outro lado da Estação. Vários lances de escadas, duas escadas-rolantes, o passo único da travesti, a perna faltante balançava seu fantasma doído. A perna-presente dava saltos largos, e pesava sobre os nossos ombros sua tristeza.

Eu quis saber seu nome. Não investiguei também o que a levou até ali. Ensaiei perguntar. Não é tão difícil assim. Fiquei calado. Palavras incompletas: é só o que consigo fazer para me manter firme; palavras amputadas pela incômodo de não ser igual. Todos os meus sentidos descobrem-se mancos. Significados fraturados. Eu também preciso de apoio: paisagem, conversa, presença, pessoa, lembrança, abraço, beijo, livros, amor, café: algo que me carregue nos ombros até o outro lado do mundo-dos-sozinhos, onde o vento faz a curva no deserto de ninguém, no peito.

Então fiquei calado. Ela perguntou se a achávamos pesada. Eu disse Sim. A garota de Minas disse Não. A travesti replicou: Está me chamando de gorda, hein?! Eu ri. É isso que faço agora, também: rio. Desaguo uma risada fácil, seja para discordar, concordar, recordar, afastar, aproximar, agradar, solicitar, me inventar. Eu ri. Ela riu. Alegria momentânea, brisa rápida, de mãos dadas. E continuou a jogar pistas do seu desconforto, desconfiada, pois as pessoas, muitas, na plataforma lotada, afastavam-se de nós três, que éramos um.

Primeiro optei pelo silêncio, apontando e resolvendo problemas e determinações simples. Depois pelo sorriso inofensivo. Agora uso os dois, misturados, que dá mesmo. De uma forma ou de outra mantenho invisível.

A mineira disse que chegou a São Paulo por acaso; eu vim porque quis. Mas a travesti é daqui, e perde, todos os dias, um pedaço seu a cada homem e mulher que a ignoram deliberadamente: Nossas escolhas, perdidas no tempo, se cruzaram, e formamos uma estrutura suplicante de sentidos encharcados de mudanças e respeito. Duas pernas do homem-apagado, dois passos-da-moça-triste, um passo valente da mulher-coragem. Ombros caídos, passos desconcertados de uma perna só, alegria amputada, e a gente que se vire, a gente que se cuide, a gente que invente compaixão antes do metrô parar e engolir a vida de todo mundo que não se preocupa com ninguém.

O cheiro doce, as cores transbordando do short jeans curto, a camisa cor-de-rosa-com-nó-na-barriga-tanquinho, a perna-faltante ainda cicatrizando: tudo nela estava vivo. Inclusive eu e a Mineira.

Ela não estava com medo. Como ela não podia estar com medo? Da mesma forma que eu não estava triste com a minha mudança: família, melhores amigos, emprego cômodo: meu mundo vencido que ficou para trás. E o recomeço na feroz e possível São Paulo. Minhas palavras esganiçadas, queimadas de sol, e o som da satisfação intimidada não conquistam ninguém, não abrem portas. Se eu digo Por favor, os movimentos ainda são como se eu fosse faltante, como se faltasse algo, o sotaque, talvez, ou como se eu fosse um equívoco. Imagino o que a travesti, aquela lá, não deve sentir todos os dias. Como ela chegou tão longe, e ainda tão bonita e simpática, cambaleando, pedindo ajuda a pessoas que não a veem? Se ela não existe, como chegou tão fundo? Se eu não existo, como cheguei tão longe?

Acredito que existe amor em São Paulo, mas ele desce sempre na próxima estação. E a compreensão manqueja.

A vida aqui é um sem fim de partidas que nunca terminam.

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Raimundo Neto publicou contos na extinta Revista Malagueta, no site da revista Bravo (também extinta), e venceu um concurso literário (Contos de Teresina  – 2º colocado). Escreve coluna no site O Pensador Selvagem. É colaborador da São Paulo Review