Por Viviane Ka *

Somos nossas obsessões. Sem ela não somos nada.

É na busca pelo café perfeito e pelo encontro com a literatura que Patti Smith trilha sua jornada pelo seu novo livro Linha M, lançado esta semana no Brasil, pela Companhia das Letras.

Vencedora do National Book Award pelo livro anterior Só Garotos, a cantora e poeta continua seguindo os labirintos da memória e abrindo o baú de suas lembranças e amores literários. Se em seu livro anterior, recorda a sua vida em Nova York com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, em Linha M são suas memórias afetivas literárias que trilham o caminho até seus escritores e artistas amados.

Qualquer ideia surgida de um lampejo inconsciente é motivo para uma exploração imaginária e real pelos lugares onde escritores amados viveram ou passaram.

Todas as suas viagens são provocadas por sonhos, intuições, leituras inspiradoras.

Ao embarcar no trem de suas recordações, todos os sonhos são possíveis: visitar o jardim da casa azul da artista Frida Kahlo, no México, e dormir em sua cama, visitar o jardim de Schiller e conversar com Goethe em uma mítica mesa de pedra. Encontrar com o espírito do escritor Yukio Mishima e com Haruki Murakami, no Japão.

Mais conhecida como cantora e compositora ativista por músicas como “People have the power”, do disco “Dream of life”, Patti sempre escreveu. Seu livro de poemas, Witt (1973) que saiu pela coleção Rei Lagarto da editora portuguesa Assirio &Alvim, a equivalente a Cantadas Literárias, coleção da editora Brasiliense, que lançou muitos poetas brasileiros como Paulo Leminsky, Ana Cristina Cesar, Chacal, já revelava sua identificação literária e pessoal com o poeta francês Arthur Rimbaud e com a pegada beat.

Rimbaud é a origem de todo seu interesse pela literatura e vida errante. Considerada a poeta do punk, trouxe um lado feminista e intelectual para o rock visceral feito no final dos anos 1970.

Linha M se inicia com um clima melancólico ao estilo de Sam Shepard, ator, dramaturgo e poeta, ex-marido, quando ela pergunta: Como será escrever sobre o nado quando se tem tanto a dizer? Aos poucos, ela vai abrindo seu caderno de lembranças e nos leva a visitar todas as suas emoções e perdas. Da falta que sente de seu amor Fred Smith, músico e pai de seus filhos, o companheiro que embarcava junto em todas as viagens malucas, como por exemplo entregar uma pedra de um  antigo presídio a Jean Genet, o transgressor escritor francês conhecido por obras como Querelle, O Balcão e Diário de um ladrão.

Ao falar da morte, Patti nos remete ao trabalho da multiartista americana Laurie Anderson que, em seu último filme, “Coração de Cão”, faz uma colagem afetiva de impressões e imagens e ao último disco de  David Bowie, “Black Star”, dançando e criando sobre o Fim.

Patti visita os seus fantasmas. São eles que lhe dão vida. Uma viúva de Rimbaud como Laurie Anderson, uma viúva de Lou Reed ou de seu cachorro. As duas são contemporâneas, Patti nascida em 1946, Laurie em 1947, ativíssimas e antenadas com a modernidade. Laurie sempre intrigada com a comunicação, Patti conectada com as séries policiais e com suas atividades literárias e musicais pelo mundo.

Patti Smith sabe os segredos do mundo , pequenos sortilégios  como um pequeno espinho atravessado na garganta. O sonho deve ceder a vida.

Aos 66 anos, de volta a Nova York feliz na sua solidão, mas ao mesmo disponível para o destino, Patti nos conduz para dentro de seu mundo imenso e para um tempo que não segue ponteiros de relógio. Diante de sua xícara de café em sua mesa preferida do seu café preferido, ela exprime sua realidade solitária de uma maneira clara e simples, como anotações que se faz em guardanapos. Quando existe a sacralidade de pequenos gestos, como a pedra que encontra no presídio e gira na palma da mão como se fosse um pequeno planeta triscado de sombras de um azul impossível, a vida fica plena de significado.

Linha M, de Patti Smith (Companhia das Letras, 204 págs.)

Avaliação: pena-01pena-01pena-01 (ótimo) 

*

Viviane Ka é escritora, roteirista de cinema e diretora da São Paulo Review

Tags: