Por Paulo Ribeiro *

— Olá, Seu Quintana…

— Sou!
— Poderia…
— Não!

Foi mais ou menos assim, com esta blague, que conheci Mario Quintana, em 1985.

Naquele ano, o poeta mudara-se para o Hotel Royal, na rua Marechal Floriano, no centro de Porto Alegre. O então Rei de Roma, Paulo Roberto Falcão, recém havia comprado o hotel e convidara o poeta para morar lá, pois Mario andava sem paradeiro.

Por intermédio de um amigo, um conterrâneo de Bom Jesus (Mauro, que era garçom no hotel e fazia as “comprinhas” para o Quintana — cigarros, balas, apostinhas em jogos variados — e que era recompensado com livros autografados, que guarda com zelo ainda hoje na portaria do Hospital Saúde, em Caxias do Sul, onde trabalha) cheguei ao inacessível poeta.

À época, estudante de jornalismo, o motivo de minha visita era aquele mesmo: uma “entrevista”. E só o Mauro para convencê-lo.
Era uma tarde muito quente, lembro. E o diabo, então, com aquele calor, era saber qual o Quintana abriria a porta, atendendo ao pedido do seu prestativo amigo.
O poeta me recebeu acompanhado de uma jovem estudante, Sandra Ritzel, que acabou se transformando na companhia de Quintana até o final da vida.
Havia muitos Quintanas, diziam. O Quintana que conheci era um cara brincalhão e feliz, apesar da modorra daquela tarde. À vontade, desfolhando jornais pelo chão (tive a impressão que o poeta lia o jornal por partes; a cada quatro páginas que lia, a desprendia do corpo do jornal, jogando no chão as descartadas).
Páginas de jornais pelo chão, lambuzando-se de rapadura, lá estava o Quintana. Um ventiladorzinho ligado e, à cabeceira da cama, a térmica com café preto. Tão logo me recebeu, deitou-se, pés espalhados pela cama. Mais do que cansaço, era um “espreguiçado” animal que estava ali aos 79 anos.
E começou a falar muito, comentando o que aparecia na tevê então ligada. Duas crianças na publicidade:
— Não gosto de gêmeos… eles nos dão certeza da nossa condição de animais… todos parecidos uns com os outros!
E seus dois olhos, gêmeos também de tão azuis, acenderam-se ao falar de Piazzola. Por algum motivo, Piazzola, na tevê, tinha entrado na conversa. E nada da entrevista.
Quintana me enrolava com sua atenção, e eu nervoso querendo logo fazer as perguntas. E o poeta pigarreava e dizia lá duas coisas antes de um novo café.
E ameaçava:
— Olha que eu não concedo entrevista nenhuma. De onde você conhece o Mauro?
E assim passou a tarde. Aquela tevê ligada e cafezinhos às 14h30min, 15h40 e 16h50min. Era um “cafezeiro”, eu comprovava (e também a lendária foto da Bruna Lombardi emoldurada pregada na parede do quarto!). E, assim, como me ofereceu rapadura, os tantos cafés, com o mesmo simples gesto, a mão estendida, o poeta Mario Quintana, cansado, certa altura me botou pra fora do seu mundo.
— Mande pelo Mauro o que quiser, que eu te respondo.
Assim foi feito. Deixei na portaria a minha pauta e, dia seguinte, já recebi o manuscrito do poeta. Infelizmente, suas respostas restam esquecidas (não perdidas) em meio a caixas de andanças e mil mudanças da vida.
Sobrou, contudo, a entrevista. Ela foi divulgada no jornal interno do Grupo Olvebra, onde eu estagiava, à época, na área de Comunicação. É um material até certo ponto singelo (pela minha inexperiência e condição de fã naquele encontro), mas inédito, pois circulou apenas entre funcionários, em 1985.

O eterno momento da entrevista

O senhor, hoje, disse que não gosta de gêmeos porque eles se parecem muito, que isso lhe assusta… e os anjos e os fantasmas, também não se parecem tanto? Os meus anjos não são os meus fantasmas. São criaturas diversas, habitantes dos meus poemas.

E Quintana. Quantos são? Há o Quintana poeta, coisa que só acontece quando ele está fazendo poemas. Por isso, quando me perguntam: ‘O senhor é o Mario Quintana? Eu respondo: Às vezes!’

Como é o poeta Quintana em relação ao poeta medalhão (ele havia concorrido duas vezes à Academia Brasileira de Letras e não conseguira eleger-se) O poeta Quintana ‘Medalhão’ é a última encarnação do poeta Quintana propriamente dito. Ele tem saudades de si mesmo, daqueles tempos em que era um poeta anônimo.

E as homenagens que lhe prestam… As homenagens vieram tarde. As homenagens e reconhecimentos teriam de ser na juventude, ou o ideal seria viver de trás pra diante.

O poeta não é afeito a amizades novas. Como é aquela estória de que “é difícil estabelecer novas amizades porque uma amizade se baseia em velhas recordações em comum”? Não, não é assim. É: ‘com as amizades novas compartilhamos as esperanças dos moços, da mesma forma que compartilho com os velhos a saudade do passado.’

E os sonhos? Ah, precisaria que eu fizesse um tratado… são tantos.

O senhor não gosta de entrevistas. Qual foi a pergunta mais absurda que lhe fizeram? A pergunta mais absurda que me fizeram foi: De que tratam os seus livros?

E o erotismo na sua poesia? O que você denomina, impropriamente, de literatura ou poesia erótica, deve ser a poesia amorosa, sentimental ou sensual. Da primeira, são a maioria dos sonetos de A rua dos cataventos. Há leves exemplos da segunda no ‘verão’ Dos apontamentos de história sobrenatural, e na ‘oferenda’, Dos esconderijos do tempo.

Como é o seu processo de criação. Há momento (um estado especial) ou é a toda hora? Vem a qualquer momento, como um relâmpago. O problema é fixar o relâmpago. Aí vem a luta do poeta com as palavras, até que estas expressem o que ele queira dizer. No fundo, a poesia é isto: a eternização do momento.

*

Paulo Ribeiro é escritor. Autor, entre outros, de Vitrola dos ausentes (Ateliê Editorial), Iberê (Artes e Ofícios), O tal Eros só – Osso relato (um livro palíndromo editado pela Belas Letras. É também coautor de Tríptico para Iberê (Cosac Naify). Ribeiro deve publicar em junho seu novo livro, Bagorra

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