* Por Alessandro Araujo *

A atitude geral da criação modernista é a de revelar o que fora negligenciado, mas, para que o novo aconteça, os modernistas precisaram rejeitar os modelos que, até então, presidiam a criação artística. O riso, o escárnio, a indiferença e a vaia acompanharam, a princípio, os criadores mais diversos, de Vicent Van Gogh (1853-1890) a Igor Stravinski (1882 – 1871). É difícil encontrar, no vasto corpus modernista dos séculos XIX e XX, um unificador. O que há de comum na representação colorida dos bordéis da Belle Époque de Toulouse-Lautrec (1864-1901) e no fluxo de consciência que inunda Ulisses de James Joyce (1882-19841)? O sentido do que seja modernismo tende a ser elusivo. No contexto das disputas doutrinárias do catolicismo, o papa Pio X (1835-1914) condenou toda e qualquer tentativa de modernizar, de maneira laica, a doutrina cristã: renovação, sim, mas em Cristo; modernização, não.

Enquanto isso, no Brasil, o movimento modernista, iniciado com a Semana de Arte Moderna (1922), refletiu-se na busca de meios de expressão autenticamente brasileiros, fugindo dos tradicionais modelos europeus. Falando do espírito modernista, a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941) declarou, em tom de blague, que, por volta de dezembro de 1910, o caráter humano mudara, quando, de fato, mudara o modo de representá-lo. O Modernismo é uma sensibilidade em busca de invenção, o que, por sua vez, cria uma nova tradição: a tradição do novo. Tudo é permitido: do verso livre à colagem, do uso do detrito físico ao detrito verbal, à gíria, ao palavrão. Nesse sentido, Modernismo identifica-se com liberdade. Ao abandonar o compromisso com a temática realista, a estética modernista assume para si o projeto de criar representações autossuficientes: a pintura é o tema da pintura. Assim, a literatura torna-se seu próprio assunto. Se a criação é um espelho, o Modernismo não espelha o mundo, mas seu próprio rosto, e demanda outro tipo de espectador: alguém que entenda ou esteja aberto para as novidades históricas. O corpus modernista não é um conjunto de obras que visam o entretenimento, como faz a cultura de massa. O espectador modernista é um observador ilustrado no curso da arte até agora. O Modernismo é, por isso, muitas vezes acusado de distanciar-se da vida cotidiana, sendo frequentemente identificado com esnobismo elitista. Na verdade, os recursos estéticos do Modernismo infiltraram-se no meio ambiente contemporâneo, seguindo, por exemplo, as soluções arquitetônicas de Walter Gropius (1883-19690, Mies van der Roche (1886-1969), Frank Lloyd Wright (1867-1959), Le Corbusier (1887-1965) e Oscar Niemeyer.

No entanto, quando pensamos nas relações entre a literatura e a vida social, nossa abordagem acaba, impreterivelmente, enveredando-se para a interdisciplinaridade, por exigir a articulação com outras áreas do saber. Assim, a matéria literária em relação ao seu conceito de produção e recepção, com áreas que levam em consideração o estudo da sociedade em seus variados aspectos, como é o caso da sociologia, da antropologia e da história. Então, é possível considerar que

 

com efeito, sociólogos, psicólogos e outros manifestam as vezes intuitos imperialistas, tendo havido momentos em que julgaram poder explicar apenas recursos das suas disciplinas a totalidade do fenômeno artístico. Assim, problemas que desafiavam gerações de filósofos e críticos pareceram de repente facilmente solúveis, graças a um simplismo que não raro levou ao descrédito as orientações, sociológicas e psicológicas, como instrumentos de interpretação do fato literário. É inútil recordar, neste sentido, famosas reduções esquemáticas, que se poderiam reduzir a fórmulas, como: “dai-me o meio e a raça, eu vos darei a obra”; ou sendo o talento e o gênio formas especiais de desequilíbrio, a obra constitui essencialmente um sintoma”, e assim por diante. […] O primeiro cuidado em nossos dias é, portanto, delimitar os campos e fazer sentir que sociologia não passa, neste caso, de disciplina auxiliar, não pretende explicar o fenômeno literário ou artístico, mas apenas esclarecer alguns dos seus aspectos. Em relação a grande número de fatos dessa natureza, a análise sociológica é ineficaz, e só desorientaria a interpretação; quanto a outros, pode ser considerada útil; para um terceiro grupo, finalmente, é indispensável. Dele nos ocuparemos. Neste ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte? Digamos que ela deve ser imediatamente completada por outra: qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio? Assim poderemos chegar mais perto de uma interpretação dialética, superando o caráter mecanicista das que geralmente predominam. (CANDIDO, 2006, p. 27-28)

 

É possível perceber no trecho de Antonio Candido, que ele tenta ultrapassar proposições universalistas de algumas perspectivas de leitura, como aquelas que se propõem a dar conta, sozinhas, do fenômeno artístico, como, por exemplo, o movimento realista do século XIX e o cientificismo, a crença na superioridade exclusiva das ciências naturais como forma de conhecimento é incompatível com o projeto que move a atividade científica, que se caracteriza por um processo de autocorreção interminável. O cientificismo é apenas uma vulgarização do que se concebe como ciência, uma crença cega e dogmática em flagrante contradição com o que o saber científico de fato pratica. Posto isto, basta percorrer a literatura do começo do século XX para que novas concepções artísticas apliquem manifestações literárias, por assim descrever, mais libertárias discursivamente, alimentando um novo imaginário social. Da Inglaterra de Blast à Argentina de Proa, da Alemanha de Der blaue Reiter à França de La Révolution surréaliste. O Brasil da década de 1920 não é exceção, e não haveria como fazer a crônica do Modernismo sem passar por esse formato tão vital para o movimento: a revista, o jornal e o livro. O jovem Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, quando estreou em livro, o autor mineiro já exibia um excelente currículo modernista, por conta dos muitos poemas publicados em jornais e revistas. Mas é preciso distinguir, para melhor captar a singularidade da revista de vanguarda. Pois é revista, como veículo da criação literária, não é invenção do século XX: o século XVIII iluminista é impensável sem ela, e muito do que a literatura do XIX produziu de melhor veio primeiro a público em periódicos como a Revue des Deux Mondes, “as revistas gordas” da Rússia czarista ou, vale descrever, a Revista brasileira, que ao longo de 1880 estampou em suas páginas as Memórias Póstumas da Brás Cubas, de Machado de Assis. Desse modo, herdeira dessa tradição burguesa e moderna, a revista de vanguarda difere, contudo, num aspecto essencial. Ela se concebe, com maior ou menor ênfase, como órgão coletivo a mesmo como obra coletiva, em que a voz do autor individual deve compor com o coro do grupo.

A revista modernista Estética foi publicada com a preocupação de elaborar uma revista consistente e menos polemista que sua antecessora, a Klaxon, cujas atividades se encerram em 1923. O três números da revista foram projetadas em dimensão 16×22 cm, sem ousadias gráficas. A capa bege estampa em cor preta o título da revista, centralizado, em tipografia discreta e econômica. Seu primeiro número foi publicada em 1924 e voltada à depuração de ideias e à construção de uma nova fase do modernismo – Eduardo Jardim, em A brasilidade modernista: propôs a divisão do movimento modernista em duas fases: a primeira manifesta, com a Semana de Arte Moderna de 22, a preocupação com a renovação estética, enquanto a segunda, iniciada em 1924, revela o surgimento da questão da brasilidade. – que em 1924 já revelava seus primeiros sinais, como a viagem do poeta franco-suíço Blaise Cendrars a cidades históricas de Minas Gerais, acompanhado de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral etc; foram lançados o Manifesto da Poesia Pau Brasil e o romance Memórias Sentimentais de João Miramar, com a revolucionária prosa Oswaldiana; Mário de Andrade começava a escrever poemas em que dispontavam vários aspectos de sua busca pela brasilidade, como “Noturno de Belo Horizonte”.

 

A maxima cultura não só vence a materia universal e cria verdadeiramente o homem, como liberta da deformação sentimental, da inversão dos valores que a pessima e deficiente cultura espalha. Toda praga literaria é extirpada. O romantismo, que fórma a literatura dos possessos, dos melancolicos, é dominado pelo espirito moderno objectivo e dynamico. Se este realismo nos leva ao classicismo, seremos classicos. No sentido de simples, directos, intimos das cousas, indifferentes á literatura e ás suas pompas. E esse classicismo profundo, porque é o pensamento e a linguagem de uma “classe” e essa classe é a dos espiritos cultos, separa-nos de todo aquelle classicismo verbal, de palavras mortas, de phrases antiguadas exclusivamente literario e artificial, que a nossa imprecisão technica considera modelar por se o estylo e a lingua dos velhos escriptores. (ARANHA, GRAÇA. Revista ESTÉTICA, Ano I, Vol I, 1924).

 

É notável a intencionalidade de ruptura dos modernistas no texto introdutório de Graça Aranha, presente na primeira edição da revista Estética. Nesse encaminhamento, o trecho de Graça Aranha “separa-nos e todo aquelle classicismo verbal, de palavras mortas, de phrases antiguadas exclusivamente literario e artificial”, demonstra o interesse do autor, representante também do Modernismo, acerca das rupturas com estéticas, ou seja, “escolas” antecessoras, no caso, o culto à forma dos parnasianos. Já no excerto “Toda praga literaria é extirpada. O romantismo, que fórma a literatura dos possessos, dos melancolicos, é dominado pelo espirito moderno objectivo e dynamico”, autor expõe algumas provocações de algumas característica do romantismo, como a forma dos “possessos”, ou seja, o misticismo, a espiritualidade, características que estão presente também no simbolismo.

 

Os estrangeiros apoderam-se do paiz e o brasileiro assiste indifferente á conquista tenaz e cobiçosa. Apenas entreteem-se nos jogos mediocres da politicagem, na illusão de governar o que na realidade tem outros donos. (ARANHA, GRAÇA. Revista ESTÉTICA, Ano I, Vol I, 1924).

 

É necessário ressaltar que o trecho acima apresenta uma contextualização histórica, de 1894 a 1930, o Brasil esteve representado pelos interesses das oligarquias rurais, conhecida, então, de “política café com leite”. Entretanto, o país recebia milhões de imigrantes por incentivo do governo, que eram destinados as lavouras de café ou as indústrias de São Paulo. As cidades registraram marginalização dos “ex-escravos” e a formação de um proletariado constituído pela mão-de-obra estrangeira. A partir de 1922, o Tenentismo passa a influenciar a política, que lutavam contra o poder das oligarquias, pois havia uma grande insatisfação nos quadros militares com o pouco investimento e causadora de diversas carências.

 

A psychanalyse engana-se quando, numa pretenção philosophica, reduz o conceito da vida humana ao paradoxal pansexualismo. Ha muita cousa no homem e na vida humana extranha á subconsciente furia sexual. Nada ha, porem, extranho á intelligencia e esta é soberanemente esthetica. O ‘pan-esthetismo” é o reducto do espirito humano e delle não ha força philosophica, religiosa ou scientifica que o desaloje. O espirito tudo transmuda em função esthetica […], em tudo a esthetica como a sublime luz, que é dada aos ephemeros para perceber nas miragens de consciencia o inexoravel e infindo mysterio do Incosciente. (ARANHA, GRAÇA. Revista ESTÉTICA, Ano I, Vol I, 1924).

 

Entretanto, no enunciado acima, do autor Graça Aranha, ainda presente no primeiro volume da revista Estética, publicada em 1924, é possível perceber a necessidade de ruptura ou a não possibilidade de classificar o Modernismo, por assim descrever, no cientificismo, tão presente no realismo. Contudo, é muito provável que o autor também criticou as teorias de Freud, ou, até mesmo, o conceito de inquietante, (originalmente, em alemão, Das Unheimliche) que se refere a algo (ou uma pessoa, uma impressão, um fato ou uma situação) que não é propriamente misterioso, mas estranhamente familiar, suscitando uma sensação de angústia. A problemática consistente, até então, se o autor do texto, obteve a intencionalidade de significar a estética, nesse sentido, como sinônimo de espírito livre, de originalidade, que

 

As obras originais são aquelas nas quais aparecem tomadas de posição justas, conteudisticamente, em face dos grandes problemas da época, em face do novo que neles se manifesta, e que são representadas mediante uma forma corresponde a este conteúdo ideal, capaz de expressá-lo adequadamente. (LUKÁCS, 1968, p. 216)

 

Deste modo, a estética do Modernismo pauta-se, principalmente, na forma, em formatos de expressão literária que são causadores de sensações, assim como o conceito de Inquietante, de Freud. Mas, tal sensação, feita na estética. A afirmação ocorre ainda no trecho do autor Graça Aranha, classificando a estética do Modernismo de “pan-esthetismo”. Mas, a literatura ou a originalidade de uma obra, tem a principal característica firmada na estética? Para Lukács, a originalidade “corresponde a um conteúdo ideal, capaz de expressá-lo adequadamente”. Assim, o Modernismo mostrou a que veio. Não é mesmo?

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Referências

Autores, ESTÉTICA, REVISTA. Ano I, Vol I, Setembro de 1924.

LUKÁCS, G. A Teoria do Romance. Lisboa: Presença, s. d.

CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. São Paulo: Ouro Sobre Azul, 2006.

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 Alessandro Araujo é autor de Longe de todas aquelas nuvens (Folhas de Relva Edições, prelo), e pós-graduando em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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Foto: Le Corbusier

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