Oscar está sentado bem perto de mim. Quase não olhamos um para o outro, o que era muito comum durante toda a nossa infância e juventude. Nenhuma novidade. Sua cara é a mesma do tempo em que tínhamos alguma esperança em um mundo onde a esperança sempre foi uma ilusão. Ele ensaia um sorriso, com os mesmos olhos caídos que havia percebido assim que mamãe deu à luz ao meu mais novo irmão. Esperei, entediada, sentada no banco de madeira da recepção da maternidade até a enfermeira surgir anunciando com aquela cara cínica de vitória “é um menino”. Meu pai havia olhado em volta e erguendo seu orgulho bradou aos quatro cantos que seu varão herdaria o nome do avô, Oscar Neto.

Recordo cada segundo. Espreito as imagens daquele tempo. Mas no fundo, bem no fundo, pouca coisa teve importância. Quase nada teve importância. Meu irmão cresceu, pouco contato nos manteve presentes um na vida do outro, e minha mãe, morreu.

Hoje estamos velando seu corpo.

Mais uma vez estou sentada em um banco de madeira, esperando que algo realmente aconteça.

Acho que, mesmo sem nos olharmos, percebi que para ele, a sensação era a mesma, ele também parecia esperar que alguma coisa acontecesse, então ele começa.

Enquanto olha para a frente, mirando mais uma vez um horizonte que sempre inventava para não me encarar.

Presumo que ouvi algo: você está bem bonita assim, fiquei um bom tempo te encarando de longe.

Mas ele não movia o olhar, permanecíamos os dois mirando o horizonte inventado.

Desde pequeno, Oscar fingia que algo a frente era mais interessante do que olhar para o lado, principalmente se ao lado, eu estivesse.

Eu era invisível para o meu irmão.

Minha mãe abria a porta da sala esbaforida, depois de um dia inteiro de trabalho, trazia consigo pacotes e mais pacotes, “esse é para o Oscar”, ela dizia, entregando uma camisa do time de futebol preferido dele, “esse é o seu”, repetia, dessa vez com a voz menos enfática, apresentando uma camisa em tons azuis para mim. “Não quero”, dizia revoltada, jogando a camisa ainda envolta no embrulho no chão da sala, e corria feito louca para o quarto, onde tentava me esconder do mundo mais uma vez.

“Abra essa porta, André!”, só os solavancos na maçaneta me preenchiam de medo e horror. Da última vez, eles tentaram me vestir à força, mas como nunca, resisti.

“Você é um menino, veste isso”, ela gritava, mas nada me convencia.

Oscar não se movia de onde estava, sentado agarrado a bola, agia como se eu fosse de outro mundo.

Eu era invisível para os meus pais.

No mês seguinte, mudamos de cidade. Meu pai tinha recebido uma promoção no trabalho. A escola nova, os outros novos amigos, a mesma batalha a enfrentar dia a dia. Uma sensação estranha de que tudo estava por um fio por onde eu pisasse.

Os mesmos olhares assustados de minha mãe a ditar seus conselhos: “Comporte-se como um menino”, “Veja o seu irmão”, “Já está na hora de tomar jeito, você é bem crescidinho”.

A qualquer momento eu poderia ruir. Aquela camisa com gola azul presa ao pescoço, os botões milimetricamente pregados e fechados até o gogó, os objetos seguindo o mesmo padrão, meninos de azul, meninas de cores claras, rosa, amarelo.

Mas os meninos sempre de azul e tênis preto. Nenhum detalhe a mais, nenhum desenho. Não cabe, estava pré-determinado.

Não sobreviviam às minhas unhas, aos meus rompantes de ódio dentro do banheiro.

Nada caía bem.

Eu não me caía bem.

E não me enxergava direito naquele ângulo.

Alguma coisa estava fora da ordem.

 

“Como você se chama?”, alguém perguntou do fundo da sala.

Olhei para trás.

Não quis responder.

Virei-me de costas e sentei na carteira mais próxima da porta.

Alguém tinha me notado.

Mas com certeza, ainda me via um tanto embaçado.

Eu ainda era invisível para o mundo.

Ouvi os risos.

Mirei o horizonte, aquele que sempre esteve à espreita.

E suspirei.

Uma menina se aproximou depois do recreio e disse: você é menino e quer ser menina, é isso?

Fiz que sim com a cabeça.

Depois, comecei a balançar a cabeça de um lado para o outro, sem querer responder coisa alguma.

Vieram todas as coisas de uma vez só na mente, como um vendaval: minha mãe e sua persistência para manter o padrão que a sociedade impôs “menino é assim”, “menino pode isso”, “menino não pode isso”, “menino tem que ser desse jeito”, “menino não pode brincar disso”, “menino tem que respeitar as regras”, “menino precisa aprender a ser isso”, “menino tem que pensar desse jeito”, “menino tem que resolver as coisas assim”, “menino tem que ser forte”, “homem não chora”, “não seja um maricas”.

 

Oscar deixa escapar um sorriso do canto da boca.

“Queria ter entendido antes”, ele suspira fundo.

Abro os olhos ainda mais para mergulhar naquele horizonte.

Ficamos os dois sentados, enquanto as pessoas entravam e saiam, passavam por nós, olhavam, cumprimentavam.

Oscar pôs a mão sobre o meu ombro, gelei.

Era uma maneira de me tornar visível para ele.

Não dissemos nada.

Os homens entraram e fecharam o caixão.

Todos se levantaram para cumprir o ritual.

Fiquei parada olhando o horizonte sumir enquanto as pessoas seguiam em cortejo.

Voltei para trás.

Ninguém notou que não fui acompanhá-los.

Quando dei por mim, um horizonte ainda maior se abria com todas as cores.

E me vi.

Mesmo que boa parte do mundo ainda não consiga me enxergar.

Pela primeira vez, acho, sorri.

Um sorriso aliviado.

Fui andando pela rua, os olhos bem abertos, coração leve, mente sã.

As pessoas, os carros, o mundo passava por mim.

E fui seguindo o fluxo das gentes.

Me mostrando.

Com coragem para enfrentar o que viesse.

Me vendo no mundo como quem anda em direção ao mesmo horizonte dos homens na Terra.

 

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Alex Andrade é escritor e arte-educador.
Tem publicados os livros de contos A suspeita da imperfeição, Poema, Amores, truques e outras versões, As horas. Os romances Longe dos olhos e Antes que Deus me esqueça e os infantis O pequeno Hamlet, A galinha malcriada, A história do menino, A menina e a sapatilha e o menino e a chuteira e o recente O gigante. Participou de diversas coletâneas de contos.
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Foto: Cartier Bresson, autorretrato

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