Por Alex Andrade *

Enquanto chove e a chuva escorria em mim pelas ruas da cidade, eu ia indo por debaixo das marquises, atravessando poças, no meio da madrugada fria e cinzenta, parece falso dito desse jeito, mas esperava esbarrar com ele pelo caminho. Uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, debaixo da chuva fina e um maço de cigarro amassado entre os dedos. Olho ao redor, ninguém me vê, nenhum táxi passa, eu tinha a certeza de que era por essas bandas que ele costumava andar nas noites frias de Estocolmo. Procurei pelos bares alguns sinais que ele poderia ter deixado um guarda-chuva esquecido, ouvi dizer que sempre os esquecia pelos bares. Ei, Caio! Chamei-o, feito um desatino. Vamos beber este conhaque em algum beco, entre moribundos e drogados. Vamos engolir as gotas desta chuva juntos antes que amanheça? Para ver se passa. Se passa o medo. Se passa o frio. Se a noite fica e o dia não nasce. Se passa a solidão. Se a doença passa. Se o susto cala a boca e inunda nossos sonhos de vertigens mudas e coloridas e nos faça rir. Rir de tanto beber. Teve uma hora que mergulhei dentro da chuva ao encontro dele, fazia frio, nem tanto frio, eu experimentei cantar para que ele me ouvisse, minha voz rouca e úmida debaixo da chuva, cantando enquanto rego minha ânsia de vê-lo sulfúrico, me conta casos de amor perdido, histórias turvas lanhadas pelo tempo e bebe, bebe, entorna esta garrafa de conhaque pela boca porque o frio rasga nossas roupas e enche de umidade os nossos ossos. Depois, senta e não diz mais nada, ouve o que eu digo, preciso, ouça que não há ninguém no meio da chuva senão nós. O que te passa?  Eu fui andando e pulando as poças d’água e me contorcendo. Tão gelada a noite e ouvia a nossa conversa no meio da música alta, esbarrando nas pessoas à nossa volta, fala mais alto, Caio, preciso te ouvir. E eu me perdia no meio da multidão suada, escorria nos músculos suados e petrificados. Espera, estou chegando. Chegarei sim, um dia chegarei a ti, cavalo domado, pelos pampas em meu suspiro baio, tomaremos conhaque e fumaremos no meio da avenida sem que ninguém possa nos assustar. Vamos ficar assim, de mãos dadas pela noite estrangeira, aqui tudo é permitido, vamos ficar. Se olho ao redor do nevoeiro, vejo sombras, as luzes desta cidade vazia me adoenta, o barulho da música que vem de longe e os corpos suados sem nomes, borram os meus sonhos. Onde ir? Eu ia indo, ia indo e deixando o vento congelar as maçãs do rosto, não queria que ele me visse perdido no meio dos meus pensamentos, teria que arranjar um pretexto, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, torcia os dedos, cobria os lábios com o cachecol, olhava para todos os lados tateando a sua sombra, teço uma conversa, quem sabe um canto. Ali mesmo naquela rua onde a chuva não parava de cair, onde ninguém cruzava o meu caminho, e a chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de gritar, quem sabe alguém me ajudasse, ou então parar para sempre de ir. Para ver se passa. Para ver se não dói mais. O gosto do conhaque misturado ao hálito da chuva, eu não queria beber, mas me perdia pelos bares como quem é esquecido feito um objeto, e fui bebendo, bebendo, bebendo e me misturando aos travestis, prostitutas e moribundos que chegavam. Gente de todas as espécies, traficantes, messalinas, trombadinhas. Aos montes. E ia perguntando, vocês viram o Caio? E eles saíam feito uns loucos pelas mesas do bar também perguntando, cadê o Caio, Cadê o Caio? Bebi, bebi, bebi tudo que me ofereciam, os malandros, os michês, os mais puros anjos da noite. E foi então que tropecei, escorreguei e caí e tudo começou a girar na minha cabeça, aquelas vozes, aquelas figuras, tudo tão bizarro, e além da roupa encharcada, o hálito fedido, estava imundo da lama dos sapatos, como um bêbado, as pessoas me olhando caído sem conseguir me levantar, tiraram a minha carteira, levaram o que eu tinha e o que não tinha, me deixaram no chão feito um troço, nunca mais vou conseguir sair desse lugar, lá fora ainda chovia, eu pensava no que diria a ele quando o visse finalmente, oi, Caio, e fingiria não ter bebido, tentaria manter a calma, mesmo que o hálito me traísse, mesmo que tudo estivesse fora do lugar, eu lhe diria, que bom que você apareceu, era a mim que ele também procurava, eu sei,  por dentro da chuva, era por mim que ele estava ali, eu comecei a falar, a falar, era preciso muito esforço para sair do chão frio, eu sorria, ainda chovia em mim, de repente avistei um guarda-chuva debaixo da mesa perdido, me arrastei até ele, talvez ficasse doente, talvez nunca mais saísse deste lugar, ideias misturadas, tremores, água de chuva e tantas vozes. Apenas meu corpo abraçado aquele guarda-chuva esquecido debaixo da mesa de um bar, não ia mais pelo meio da cidade, nem me levariam mais nada, eu só estava parado caído no chão do bar fazia tempo, não ouvia mais a música alta dos pubs, nem o suor vencido dos músculos petrificados, apenas o silêncio que lustra os mortos reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando, reverberando debaixo da mesa.

Estocolmo, Suécia, 26 de dezembro de 2015

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Alex Andrade é escritor, autor dos livros Poema (contos) e Amores, truques e outras versões, além de mais quatro títulos. A inspiração para o conto vem do fato de Caio, morto há exatos 20 anos, ter morado em Estocolmo, local em que Alex passa uma temporada

 

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