O livro Do que é feita a maçã (Companhia das Letras, 2019) traz conversas entre Amós Oz e sua editora Shira Hadad, num conjunto que permite ao leitor acessar as dimensões mais sutis de um dos maiores escritores de nossos tempos. “Escrever um romance é como construir Paris inteira com fósforos e cola”, confidencia Oz sobre seu processo criativo. Leia abaixo trecho da conversa em que ele fala sobre reescrita de livro e humor na literatura.

Em 1988 Helit Yeshurun fez com você uma entrevista fascinante. Entre outras coisas, você disse a ela que no livro Artsot hatan [Terras do chacal] você desenhou as suas fronteiras. Desde essa entrevista já se passaram trinta anos. Estou interessada em saber se ainda acha que isso é verdade.  Sabe de uma coisa, nem mesmo tenho certeza de que isso era verdade então, quando disse a ela. Não, acho que acrescentei territórios a essas fronteiras o tempo todo. Nunca sinalizei quais eram as fronteiras. Isto é, nas histórias de Artsot hatan a língua foi o hebraico mais elevado que já tive, um hebraico assim eu nunca mais tornei a escrever. E isso foi pura insegurança: uma espécie de presunção, “olhem só para mim, vejam que palavras lindas e elevadas”.

E dez anos depois você voltou a este livro e o reescreveu. Sim, eu rebaixei um pouco a linguagem. Para falar que nem gente. Para não declamar. Para que não fosse uma espécie de ostentação de riqueza.

Foi a única vez que você fez isso. Sim, foi a única vez. Porque na verdade eu mal tinha vinte anos quando comecei Artsot hatan, queria que as pessoas soubessem que eu conhecia a linguagem da Bíblia hebraica e também a da Mishná e também a de nossos sábios de abençoada memória e também a de Agnon. Disso já me libertei. E eu não era o único. Alguns novos escritores que se revelaram na época sentiram necessidade de usar ao mesmo tempo um calção de banho e uma capa de chuva e calças de gabardine e calças de trabalho de brim azul, uma roupa em cima da outra. Mas não, Artsot hatan não sinalizou fronteiras. Não mesmo. Acho, por exemplo, que em O mesmo mar há lugares nos quais nunca estive. Não só no que tange à linguagem e às palavras, como no que tange a onde eu estava entrando. E quando saiu Entre amigos, há cinco ou seis anos, pensei que esta seria pelo visto a última prosa que escreveria, porque estava empacado com Judas, não conseguia continuar. E apesar de ter posto na capa de Entre amigos o mesmo desenho do kibutz que estava na capa de Artsot hatan, a distância entre essas histórias de kibutz e as primeiras histórias de kibutz é grande, até mesmo muito grande. Em Entre amigos eu conto as histórias quase num sussurro, em comparação com Artsot hatan. Na verdade, quando Helit Yeshurun me perguntou sobre fronteiras, e agora você me pergunta, não sei exatamente o que são fronteiras. Não sei por que eu disse isso a ela. Não, não vou reiterar isso. Isto é, sei mais ou menos que coisas eu jamais poderei fazer, que coisas gostaria de fazer porém de forma alguma poderei fazer. Um escritor ou uma escritora talvez possam escrever sobre pessoas que são mais sensuais do que quem escreve sobre elas, mais pacientes, mais feias ou mais bonitas, ou mais ricas ou mais pobres. Mas nenhum escritor ou escritora em todo o mundo e em todos os tempos conseguiu escrever sobre alguém mais inteligente do que ele ou ela, isso é impossível. Nem sobre um  personagem com um senso de humor melhor do que o do escritor ou da escritora. Estas são as minhas fronteiras. Talvez tenha sido esta a minha intenção: não sou capaz de escrever sobre um personagem mais inteligente do que eu, nem sobre uma pessoa que tenha mais senso de humor do que eu. De forma alguma. Mais malvado? Com certeza. Mais faminto? Mais saciado? Mais emocional? Mais lascivo? Mais velho? Mais jovem do que eu? Isso sim. Isso eu fiz mais de uma vez. Porém mais inteligente ou mais engraçado do que eu — como seria possível?

Me parece que com o correr dos anos suas histórias passaram a ter mais humor. De amor e trevas, do qual muitos leitores lembram o final trágico, e cuja leitura eu também terminei num choro amargo, é, entre outras coisas, um livro muito engraçado. E o mesmo vale para outros livros seus, principalmente os mais tardios. Você acha que isso sinaliza uma mudança em você, como escritor? Sim. Meu pai praticamente não tinha senso de humor e minha mãe quase nenhum. Meu pai gostava muito de anedotas, mas principalmente das judaicas, classificadas e organizadas, as halatsot [ditos e motes], os chidudim [tiradas picantes] e os jogos de palavras, não um humor espontâneo e vivo. Todos os meus filhos têm muito mais senso de humor do que eu. O humor de meus filhos e netos também é mais refinado e aprimorado. Cada um deles, de várias maneiras distintas, tem um senso especial para paradoxos, para exageros exacerbados, mas não é um humor perverso. Eles riem de tudo. Frequentemente riem de mim. Às vezes penso que meu senso de humor talvez provenha do tio Tzvi, marido da tia Chaia. Apesar de não sermos parentes consanguíneos. Tio Tzvi sabia ser afiado, surpreendente, até mesmo sarcástico, mas nunca maldoso. O filho dele também, meu primo Igal, sabe fazer a gente rolar de rir. Quando eu era menino tinha inveja deles, pois eles abriam a boca e as pessoas rolavam de rir, e eu não tinha esse dom. Eu era uma coleção de todo tipo de piadas mais do que batidas que eu contava para fazer as pessoas rirem. Para fazer as garotas rirem. Mas as garotas não riam de minhas piadas. Às vezes elas riam de mim, mas não de minhas piadas.

Sim, piadas não são humor. Não existe humor em minhas primeiras histórias. Nem nos contos e quase nenhum em Meu Michel.

E como você explica essa mudança? É um mecanismo que você decifrou? Ou diminuiu a reverência sagrada que você tem pela literatura? Talvez você simplesmente esteja olhando para o mundo e ele lhe pareça ser mais engraçado do que antes? Todas as respostas que você deu agora estão corretas, elas não se anulam umas às outras. Só que em vez de “reverência sagrada” é preciso dizer “traseiro contraído”. Foi isso que aconteceu. Quando comecei a escrever, sim, eu tinha o traseiro contraído. Eu pensava, existem coisas que simplesmente não são dignas da literatura. Não pensava assim a respeito de coisas eróticas, nem mesmo sobre exposição de genitália. Já em Artsot hatan escrevi sobre genitália e sobre fantasias eróticas, mas do humor eu simplesmente tinha vergonha: o que é isso? Será que a vida é um piquenique? Que história é essa de rir? Mesmo quando algo me fazia rir, eu achava que não era adequado a uma história escrita. Isso mudou. Como mudou? Não sei. Pelo visto algo estava sepultado o tempo todo. Quando mudou? Talvez tenha acontecido comigo depois que quase morri num acidente de carro em 1976 e saí dele com todo tipo de sequelas. Logo depois escrevi um livrinho um pouco engraçado, para crianças, Sumchi. Em Sumchi eu quase me permiti sorrir. Não rir de verdade, mas sorrir, e convidar o leitor a sorrir comigo.

E você mudou dessa maneira não apenas como escritor? Isto é, você acha hoje que o mundo é mais engraçado, ou que a vida é mais engraçada do que você pensava antes? Sim. Lembro que minha avó, aquela que morreu de tanto limpar, vovó Shlomit, dizia sempre: “Quando você já tiver chorado todas as suas lágrimas e não tiver mais lágrimas para chorar, é sinal que chegou o momento de começar a rir”. Ela também dizia que sentia uma dor terrível aqui e uma dor terrível ali e doía, doía, doía a ponto de já começar a rir. Dizia ainda: “Este homem é tão feio que já é quase bonito”. E também: “Ele é tão culto, tão instruído, tão inteligente que já não entende mais nada”. Muitas vezes algo nos faz rir pela automaticidade, pelo exagero. Por aquilo que Bergson nos ensinou, que “dói e dói tanto até que já é engraçado”.

Ou deprimente. Na verdade não são dois opostos. Comédia e tragédia não são dois planetas. Tchékhov, de quem gosto cada vez mais, o que ele é? Engraçado ou de cortar o coração? Desesperançado ou sorridente? O que ele é? Em uma das peças de Tchékhov há um velho médico que o tempo todo fica de um lado balbuciando coisas, e toda vez que lhe cabe resposta, a réplica fixa dele é: “Dentro de cem anos haverá aqui pessoas completamente diferentes, e elas não vão compreender por que fomos tão infelizes, pois elas estarão sempre felizes, sempre saudáveis, cheias de alegria e amor, e saberão viver”. Toda vez ele diz isso, e você não compreende por que Tchékhov o colocou ali, ele é apenas um chato que se repete sem parar. Mas há um momento na peça em que um dos personagens desmaia e o velho médico corre para ele, o examina, se apruma e diz com tristeza: “Esqueci tudo”. Em todo o Shakespeare não encontrei duas palavras mais trágicas do que estas duas pronunciadas pelo velho médico: “Esqueci tudo”. Me fazem rir e também me cortam o coração: “Esqueci tudo”. Aliás, Tchékhov chamou quase todas as suas peças de comédias. Insistia nisso. As pessoas se espantavam, até zombavam dele um pouco. Tio Vânia é uma comédia? A gaivota? Três irmãs? São todas comédias? Se são comédias, então o que são tragédias? Ele insistiu em chamá-las de comédias e brigava com os diretores, pois queria que as pessoas rissem nas apresentações de suas peças. Quando ele ia ao teatro assistir à apresentação de uma peça sua e o público não ria nem uma vez, ele considerava isso um fracasso total do diretor e dos atores. E também um fracasso de sua peça.

O que mais faz você rir? Acho que às vezes Shakespeare também faz rir em suas tragédias, só que nem sempre compreendem isso. Quando eu era um jovem professor no kibutz Hulda, ensinei Otelo, na 11a série, numa tradução de Natan Alterman. Tem lá esse trecho terrível em que Otelo estrangula Desdêmona com as duas mãos. E ela morre. Então entra no quarto Emília, a mulher de Iago: “Ah, quem fez isso?”, ou algo assim. E Desdêmona balbucia: “Não foi ninguém. Fui eu mesma. Estejam em paz. Paz para meu bom marido. Sejam abençoados!”. Toda a turma começou a rir, e com razão: ou Otelo realmente a estrangulou, ou não a estrangulou. Se a estrangulou até a morte, como é que ela faz declarações? Ele a estrangulou ou não estrangulou? Eu repreendi os alunos: tenham vergonha, no momento mais trágico da peça vocês riem? O que há com vocês? E depois isso tornou a acontecer comigo, mais e mais uma vez. Todas as vezes que ensinei Otelo no ensino médio, e depois também, na universidade, em todo lugar, depois que Otelo estrangula Desdêmona, quando ela diz “ninguém me matou”, a turma sempre começava a rir. Afinal compreendi que é bem possível que a intenção de Shakespeare fosse que rissem. É tão terrível que chega a ser engraçado. Shakespeare com certeza sabia que ririam, que lhe importava que rissem no momento mais trágico? Em Hamlet às vezes eu também ri. No trecho com o fantasma do pai, quando ele vê o fantasma do pai e pergunta: quem é você? quem é você?, e o fantasma diz: sou o fantasma de seu infeliz pai que morreu assassinado por mão impura. Agora, quando me lembro disso, penso que Shakespeare pôs na boca do fantasma palavras tão festivas, tão teatrais, que a coisa lembra um pouco uma paró- dia. Um pouco de “teatro dentro do teatro”. Ou também, no final de Hamlet, na última cena, quando todo mundo estoca e envenena todo mundo, aqueles que era mesmo para estocar e envenenar e aqueles que não.

Assisti a uma aula sua na Universidade de Tel Aviv sobre “Fernheim”, de Agnon. Você na verdade leu para a turma a história inteira e explicava o texto à medida que lia. Uma leitura casada. Durante todos os anos em que ensinei literatura, minhas aulas foram quase sempre de “leitura casada”. Eu levava uma obra para a classe — até mesmo Tmol Shilshom — e lia o livro do início ao fim, com alguns saltos, e apontava com o dedo, vejam isto, vejam isto, vejam isto. Como faz um guia de turismo, que conduz um grupo de pessoas num passeio e diz a elas: vamos parar um instante, olhem para o outro lado do uádi, lembrem-se dessa rocha que estão vendo lá, prestem atenção nela. E duas horas depois, quando estão no outro lado do uádi, bem embaixo da rocha, ele diz: agora quero que olhem daqui para o outro lado, lá onde a gente esteve antes, e compreendam por que eu disse para olhar para cá. É mais ou menos isso que eu faço. Simplesmente porque já passei por esse caminho algumas vezes e sei onde vale a pena parar e olhar e prestar atenção, o que vai ecoar mais adiante e o que não. Quando eu ensinava no ensino médio e também quando ensinava na universidade. Me parece que a maioria dos estudantes está lá por amor.

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Do que é feita a maçã, de Amós Oz (Companhia das Letras, 168 págs.)
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