Um Robin Hood dentro de casa

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Por Alexandre Staut *

Filho do escritor Ricardo Ramos e neto de Graciliano Ramos, Ricardo Ramos Filho vive em meio aos livros desde pequeno. Escritor e roteirista, nasceu um ano depois da morte do avô, em 1954. Cresceu ouvindo falar de Graciliano, principalmente pelas histórias da avó, Heloísa, que invocava o marido o tempo todo, confirme conta Ricardo.

Hoje, ele é um dos mais celebrados autores infantis e juvenis do Brasil, com títulos como A n@ve de noéVovô é um cometaO Gato que Cantava de Galo O livro dentro da conchaNa travessa da macarronadaO cravo brigou com a rosa. Leia abaixo entrevista e que fala de relações familiares, literatura nacional e, claro, da sua própria arte:

Poderia falar da relação com o seu avô, no que se refere aos livros? Graciliano morreu em 20 de março de 1953 e eu nasci em 4 de janeiro de 1954. Não foi possível, portanto, convivermos. Apenas imagino o que ele leria para mim. Creio que repetiria o que fez com os filhos. E pensar nisso acaba sendo interessante. De certa forma por meio de meu pai, do que ouço minha tia Luiza dizer, e muito por minha convivência com minha avó Heloísa, viúva dele, fora o conhecimento de sua obra, é claro, tive acesso ao gosto literário “graciliânico”. Provavelmente teria oportunidade de recitar com ele Bandeira, meu poeta favorito. Pensando agora, assim de estalo, consigo entender melhor uma das razões dessa preferência minha. Talvez não seja apenas coisa de gosto pessoal. E esse meu fascínio por Tolstói, essa coisa de considerar A morte de Ivan Ilitch a obra mais bem escrita de todos os tempos, veio lá de trás. Graciliano Ramos, Ricardo Ramos (ambos na foto abaixo), eu. Certamente meu avô leu a novela para mim.

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Quais cenas você tem presente na memória em relação ao seu avô? Cresci ouvindo falar de Graciliano. Minha avó Heloísa ficou viúva muito cedo e era uma mulher apaixonada. Falava dele o tempo todo e, logicamente, acabava carregando nas cores. Ele fazia coisas incríveis, só faltava ter uma capa e voar. Meu avô acabou sendo construído em minha imaginação de forma curiosa. Virou uma espécie de super-herói. E como era comunista, uma de suas características mais exaltadas e explicadas por minha avó, considerei que deveria ser parecido com Robin Hood. Nas minhas divagações de menino ele roubava dos ricos – imaginem Graciliano roubando – para dar aos pobres. Eu ainda não tinha condições de entender essa coisa de engajamento via texto.

E sobre literatura em família, de forma geral? Quais são as suas primeiras memórias literárias? Eu entrei no mundo dos livros e não o contrário. Cresci em uma casa cheia de estantes, frequentada por escritores, o assunto mais presente sempre foi literatura. O ruído mais constante em minha memória afetiva é o da máquina de escrever martelando os textos do meu pai. Ele escrevia principalmente contos e gostava de lê-los em voz alta para minha mãe, que sempre foi ótima leitora. Eu achava interessante aquela representação. A voz grave de Ricardo Ramos ressoava na sala interpretando a história recém-criada. O sentimento do que havia escrito saltava das páginas e me atingia com muita força. Eu ficava fascinado por aquela capacidade de provocar emoção. Quieto em um canto, meio esquecido e fazendo força para não ser notado, eu escutava D. Marise comentar com ele o que havia achado. Ele ouvia, aceitava ou não as sugestões, era um ponto de encontro entre eles. Habituei-me a ver na literatura uma coisa civilizada, de respeito entre as pessoas, onde as opiniões eram levadas em conta. E então vieram os primeiros livros lidos, sempre mediados por meus pais. Era previsível que eu viesse a gostar de ler.

Quais são os grandes ensinamentos do seu avô no que se refere à literatura? E em relação à vida, de forma geral? Meu avô chegou muito por meio de meu pai. Hoje percebo que parte de seus ensinamentos foram aprendidos e repassados por Ricardo Ramos. Aprendi com os dois a respeitar um texto bem escrito. Com eles entendi que é necessário procurar exaustivamente a melhor palavra e a considerar importante não desistir de encontrá-la. Escrever é um jogo lúdico e para que possamos ir bem precisamos ter paciência, foco, perceber que há sempre margem para sermos mais precisos. E ler. Ler muito, obsessivamente. É lendo os grandes escritores que aprendemos a escrever. A leitura é o exercício do escritor. Dickens, Austen, Tolstói, Proust, Machado, Bandeira, Hemingway, Pessoa, Clarice, todos, apenas para citar alguns exemplos, são grandes professores.  Também aprendi com eles, Graciliano e Ricardo Ramos, a ser rigoroso com relação a certas condutas. Não pode haver flexibilidade quando se trata de ética.

Quando percebeu que iria se escrever para o público infanto-juvenil? Como foi descobrir este processo? Escrevi primeiro o Computador Sentimental, publicado em 1992, que recebeu de cara o prêmio Adolpho Einzen de melhor livro juvenil do ano. Não sabia ainda na época se viria a ser escritor, nem que iria especializar-me no gênero de histórias para crianças e jovens. A coisa aconteceu meio por impulso, necessidade interior, não foi planejada. Aos poucos fui escrevendo outros livros e, quando vi, estava consolidado como autor de literatura infantil e juvenil. O processo foi meio desordenado, só mais tarde percebi que precisaria me disciplinar para continuar produzindo. Hoje, depois de cerca de 20 livros publicados, considero-me um escritor metódico, que tem horário para escrever e produção regular. Escrever para o meu público acabou sendo escolha. Percebi que o texto naturalmente saía para os leitores iniciantes, era a minha maneira de dizer as coisas, sentia-me confortável contado histórias para o menino Ricardo. Acho que no fim escrevemos primeiro para a gente mesmo.

Poderia falar do seu primeiro livro? O Computador Sentimental foi publicado em agosto de 1992. Meu pai, que faleceu em março deste ano, embora não o tenha visto publicado – que pena! – chegou a ler o texto. É um livro de memórias infantis e juvenis. Os capítulos são meio soltos, em cada um deles exploro um assunto importante vivo em minhas lembranças. As brincadeiras, as músicas ouvidas, as festas, os hábitos da época, a primeira experiência sexual, tudo está ali presente. Basicamente comecei a escrever sentindo saudade de um tempo. Talvez essa nostalgia de uma infância feliz esteja presente em tudo o que escrevo. Cresci em um ambiente protegido, harmônico, brincando na rua, no quintal, com outras crianças. O meu livro de estreia reflete tudo isso.

Quando um escritor de livros infanto-juvenil pode se considerar maduro na escrita? Não sei se ele deveria se considerar maduro na escrita em algum momento. Desconfio que uma consciência assim tão positiva relativamente ao próprio texto não seja benéfica para o escritor. Insegurança, medo de não conseguir ser claro o suficiente, a constante procura pela melhor maneira de expressão, aquela dúvida presente e incomodando sempre em cada linha escrita, toda essa dor faz com que sejamos mais cuidadosos ao fazer nossas escolhas. Humildade não faz mal. Um bom escritor de literatura infantil e juvenil – evito o termo infanto-juvenil por considerar que infanto-juvenil não é nada, nem infantil e nem juvenil – é aquele que consegue falar bem com esse público. Dizer coisas que serão compreendidas pela criança e pelo jovem, conseguir que se interessem pelo texto e que tenham vontade de continuar lendo depois de terminarem o livro. O bom escritor cativa o leitor.

Da época em que você era menino para hoje em dia, o que mudou no que se refere à recepção da literatura por este público? A criança e o jovem de hoje precisam ser cativados mais rapidamente. Os atrativos são muitos, as possibilidades de diversão estão ampliadas. Se considerarmos que a leitura é também uma forma de diversão, veremos que ela hoje tem mais concorrentes do que antigamente. Mas basicamente o leitor continua querendo qualidade. E essa qualidade está mais disponível e presente. O texto visual está mais barato, a tecnologia possibilitou isso, as ilustrações somaram-se vigorosamente ao texto verbal. Temos hoje um time de ilustradores de altíssimo nível trabalhando com os escritores. O texto final, resultado da soma desses textos visuais e verbais em alguns casos é extraordinário. Resumindo temos ótimos autores, crianças e jovens continuam lendo.  Não acho que hoje em dia se leia menos do que antigamente. Se houver estímulo e mediação competente o livro não descansará nas estantes.

O que quer o público infanto-juvenil? Uma boa história. Desde sempre escrever é encontrar uma boa história.

Considera que é um público tão ou até mais exigente do que o adulto? É diferente. Não acho que o caracteriza seja a maior ou menor exigência. Talvez a sensibilidade. É um público mais sensível. Temos que deixar a sensibilidade fluir quando escrevemos para crianças e jovens. Tudo é questão de delicadeza.

Quais assuntos são os mais recorrentes na sua obra? Há algum tema que nunca entraria nos seus livros?  Os assuntos são os mais variados. Basicamente presto atenção nas histórias que percebo. O escritor deve sempre estar atento ao mundo ao seu redor. Há sempre uma história escondida em algum lugar. Quando as encontro, e topo com elas o tempo todo, imagino se terão interesse para o meu público e começo imediatamente a transformá-las. Tudo vale a pena. Não há tema proibido. A criança e o jovem não são imbecis, não os devemos tratar como se fossem.

O que tem achado, de forma geral, da literatura infanto-juvenil no Brasil? A literatura, de maneira geral, vai muito bem no Brasil. Embora ainda sejamos um povo que lê pouco, temos ótimos escritores, muita gente boa surgindo. A literatura infantil e juvenil não poderia andar diferente. Escritores como: Lygia Bojunga, Stella Maris Rezende, Caio Ritter, Leo Cunha, Vivina de Assis Viana, Anna Claudia Ramos, Alessandra Roscoe, escritores que também ilustram suas histórias como: Angela Lago e Eva Furnari,além de ilustradores como: Roger Melo, Fernando Vilela, Odilon Moraes, Jean-Claude Ramos Alphen, Rosinha Campos e Mariana Newlands, entre tantos profissionais, estão por aí fazendo um trabalho muito sério, de grande qualidade.

E a literatura contemporânea, de forma geral? O que mais te chama a atenção? O fato de, apesar de vivermos em um mundo tão acelerado, ainda permanecer vigorosa. Continuamos encontrando, felizmente, tempo para ler. Grandes escritores permanecem surgindo. No Brasil, por exemplo, alguns romancistas novos estão aparecendo e renovando nossa literatura. Acabo de ler com deleite alguns romances que não poderia deixar de citar: O drible, de Sérgio Rodrigues, Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza, Na escuridão, amanhã, do Rogério Pereira, Opisanie swiata, da Veronica Stigger, Esquilos de Pavlov, Laura Erber, há muita gente estreando e surpreendendo pela qualidade.

E as escolas? Estão incentivando a meninada a ler? Sim. A escola sempre caminhou junto com a literatura infantil e juvenil. Para o bem e para o mal. Acerta quanto chama a criança e o jovem para a leitura, faz a correta mediação do que é necessário ser lido. Erra quando tolhe alguns assuntos, evita abordar temas que considera nocivos.  A escola ainda é preconceituosa, precisaria deixar de ser. Mas o saldo é positivo. É ainda a escola que possibilita ao leitor iniciante o contato com os livros.

Qual o livro que ainda quer escrever? Eu sempre quero escrever o livro que estou escrevendo. Terminar de escrever um livro é muitas vezes uma dor, susto, vontade presente que incomoda. Estou escrevendo o juvenil Maria vai com poucas. Poucas vezes sofri tanto ao escrever um livro. Ao mesmo tempo em que considero a minha melhor obra até o momento, passo por momentos de incrível insegurança, em que tenho vontade de fugir, esquecer tudo, sair para lavar o carro lá fora e nunca mais escrever nada.

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E qual o livro que ainda quer ler? Envelhecer é querer reler. Tenho muita vontade de retomar alguns livros. Estou relendo com deleite Grande sertão: veredas. Meu olhar mudou, o livro junto com ele. É outra leitura. O Rosa, que já era grande, ficou enorme. Depois pretendo ler outra vez Em busca do tempo perdido. Quero andar No caminho de Swann novamente. Ler Proust com olhos mais maduros será uma delícia. E Machado. Quero reler todo o Machado.

Qual é o livro da sua vida? Reinações de Narizinho. Não consigo falar de Lobato sem emoção. Aprendi a ler com ele, aos sete anos, conhecendo Narizinho, Pedrinho, Emília, Dona Benta, Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa. Escrevo para crianças e jovens pensando neles todos. Um dia eu quis ser o Pedrinho.