O sexo, as putas e demais taras literárias

eros

Por Ricardo Bellissimo *

O que ainda atiça tantas pessoas a acompanhar, através da leitura, a imaginação materializada a partir da estrutura narrativa de um escritor?

Antes de tudo, é possível compreender melhor essa pulsante ligação entre leitor e o universo imaginário do escritor basicamente por meio do voyeurismo. Ao se infiltrar por uma vereda tão íntima, o leitor aos poucos se permite conhecer a si próprio na mesma proporção em que se deixa conectar, de forma racional mas sobretudo inconsciente, com as confabulações mais secretas professadas por alguém que procurou expressar os próprios vícios e virtudes com um mínimo de visceralidade, ou honestidade – o que ao fim dá no mesmo. E, a partir daí, extrair a preciosa seda com que foi tecida alguma história minimamente convincente.

O aprendizado eclodido dessa relação, no entanto, será tão mais profícuo quanto mais o leitor também se permitir absorver conteúdos considerados ainda tabus em muitas sociedades. E que, na maioria dos casos, envolve até hoje o sexo e seus desdobramentos mais perversos. Para estudiosos da sexualidade humana, essa ponte imaginária pode ainda ajudar o leitor, durante o velado processo da leitura, a despir-se de inúmeros julgamentos precipitados em relação a si, mas principalmente em relação aos outros. É nesse estágio que o leitor estaria apto o suficiente para sorver, a seu favor, a plenitude de quaisquer infernos ou paraísos que uma outra vida só assim poderia lhe ofertar.

Se afinal fosse possível falar em um único beneficio que a leitura pode legar a uma sociedade, é justamente formar cidadãos menos limitados. E, consequentemente, menos preconceituosos. O que já é muito para qualquer agremiação que se autodenomina democrática.

Nesse contexto, é igualmente válido ressaltar que a escrita surgiu muito antes da psicanálise, ainda que ambas, desde os seus primórdios, sempre abordaram temas ligados ao fato de como as pessoas percebem e lidam com o próprio corpo, mas também o do outro. Da mesma forma, tanto a literatura quanto a psicanálise estruturaram-se a partir da ideia de que a civilização moderna se assentou num combate ferrenho ao nosso corpo. O corpo afinal é aquilo que adoece e morre, mas também aquele que goza de maneira sempre dissonante a qualquer organização civilizatória.

Seja como for, quando, por alguma bênção, ocorre essa junção quase mística dos polos imaginários do escritor ao do leitor, o ato da leitura acaba muitas vezes se alicerçando em um curioso processo de fetichização dos sentimentos. Em certos casos, estende-se inclusive à própria relação que alguns leitores mantêm com o objeto livro. Que, por isso, já alcançou atributos mágicos ou até sobrenaturais. Afora o fato de que algumas pessoas também se deixam apaixonar pelo cheiro de um livro, sua capa estilosa ou mesmo vagabunda, como também pelo acabamento gráfico ou até pela gramatura do papel e as cores nele empregadas.

O termo fetiche, não por acaso, deriva do latim facticius, cujo significado remete ao que é artificial, fictício. E, de modo curioso, em todas as suas variantes esse mesmo termo evoca a palavra feitiço. Porque, muitas vezes, só mesmo uma história trazida a nós por meio dos livros possui o poder de enfeitiçar corações enrijecidos e mentes desesperançadas.

Romances Eróticos

É igualmente curioso notar que todo esse processo de sincronia entre o universo imaginário do leitor e do escritor só ganharia uma dimensão mais incisiva quando a leitura de um romance deixou de ser um hábito até então majoritariamente feminino, para também tornar-se potencialmente consumido pelos homens. Essa reverência, também não por acaso, ocorreu justamente em detrimento à proliferação de romances eróticos, em fins do século dezoito.

As mulheres, contudo, já haviam percebido, e muito bem, o potencial libertador que uma simples história de amor poderia lhes oferecer a fim de mitigar as suas tantas inseguranças, ou mesmo culpas, diante de seus desejos mais ocultos, reprimidos há séculos por sociedades exacerbadamente religiosas e moralistas.

Mas também não é preciso que o leitor siga, ao pé da letra, o que está nos livros para sentir a alma mais leve. Entretanto, muitos compêndios com temáticas ditas amorais serviram como forte e talvez único estímulo à época para que hordas de leitores fossem, pouco a pouco, mantendo um contanto mais sadio com a própria libido. Pois a literatura, de uma maneira geral, sempre torceu o rabo aos manuais de boas maneiras impostas pelas convenções sociais. Romances eróticos permitiram ainda, ao leitor, desenvolver maneiras múltiplas de enxergar o sexo, minando com isso trincheiras soerguidas por anos de sujeição a tantos vícios culturais. Sempre perniciosamente anacrônicos.

Mestre dos Tabus

Mas quem de fato fez dessa relação voyeurística um oficio, por meio de seu talento lascivamente intuitivo, foi o escritor norte-americano Henry Miller (1891-1980). É possível que nem seja apropriado falar em tabus na literatura sem antes citá-lo. Já se disse também que nenhum escritor soube valorizar tanto a putaria como Miller. Tal assertiva fez ainda deste autor uma espécie de militante contumaz contra a hipocrisia social.

Sua literatura, ademais, já havia nascido com muita maturidade ao publicar seu primeiro livro, Trópico de Câncer, aos 50 anos. Nesta obra, o autor compõe uma narrativa tórrida e confessional baseada em suas experiências com as prostitutas francesas. Por meio de uma odisseia extremamente libidinosa, Miller embasa seu relato no fato de que um francês jamais se envergonharia em admitir sua paixão por uma prostituta. E se tal personagem porventura viesse a enlouquecer pelos desdobramentos desse atribulado amor, decerto não seria por conta de nenhum escrúpulo moral, como provavelmente ocorreria com o homem americano, já tão condicionado a lastrear inúmeras formas de prazer ao pecado.

Por essas e muitas outras, o texto de Miller sabe acolher como poucos o leitor junto ao universo muitas vezes mal compreendido de seus próprios instintos. Sua narrativa luxuriosa, contundente, soube por fim criar um tipo de conluio único entre o sacro e os mistérios mais insondáveis do cosmos a cada trepada então descrita.

Apesar dos louvores à sua obra, a censura puritana logo fez com que Trópico de Câncer fosse proibido em várias partes do mundo. Porém, os efeitos da antipropaganda agiram bem mais rápido, sobretudo nos prelúdios conservadores dos anos 30, quando a descrição crua do sexo, ainda que elaborada por uma linguagem sincera e apaixonada, prometia estremecer os alicerces do falso moralismo reinante.

A sexualidade como salvação

Para Miller, descrever os homens em seu sexualismo extremo era, antes de tudo, uma obrigação intrínseca da literatura moderna, já que as revoltas sociais de qualquer espécie, promovidas pelo homem comum, eram logo reprimidas. Tanta frustração, para o autor, só poderia afastar o ser humano de sua almejada felicidade, restando-lhe assim apenas a liberação da carne para reconduzi-lo de volta a um convívio minimamente pacífico com a própria alma. As prostitutas de Miller, ao rifarem seus corpos sem qualquer pudor moral, tinham por isso espaço reservado no rol dos seres mais puros. Porque nada mais lhes restaria senão essa dimensão espiritual resultante da junção afetiva (ou não) de dois, às vezes três ou quatro ou quantos outros corpos ainda lhes fossem necessários para simular o amor.

Utilizando-se excessivamente do sexo como uma seara sempre sagrada, Miller também discorre como poucos sobre a condição humana. “Entrar na vida por meio da vagina é um caminho tão bom como qualquer outro”, escreveria dessa vez o autor em seu livro O Mundo do Sexo. “Se você entrar bem fundo e ali permanecer tempo suficiente, vai encontrar o que procura. Mas você precisa entrar com coração e alma, e deixar seus pertences do lado de fora. Por pertences eu me refiro a medos, preconceitos, superstições.” Ao que Miller chega a uma derradeira conclusão. “Só viveremos plenamente quando o sexo for algo absolutamente natural, e sem censuras, em nossas vidas.”

Trechos desse tipo seriam inadmissíveis num mundo onde a literatura empolada e classicista imperava. Porém, a partir da literatura de Miller, esse duelo foi sendo paulatinamente conquistado por uma legião de leitores-voyeur que, ao se apropriarem de seu existencialismo sacrossexual, aprenderam finalmente a conviver com as suas mais obscuras taras. E, como desdobramento natural desse processo, aprenderiam a julgar menos os seus conterrâneos. Ou, pelo menos, não mais desdenhar-lhes sem antes lhes conceder uma chance a fim de conhecê-los um pouco melhor.

Essa empatia – fundamental para a sobrevivência minimamente salutar a qualquer sociedade – pode ser exemplificada e melhor compreendida a partir da criação do personagem Boris, em Trópico de Câncer, quando este descobre que está com chatos, esses malditos piolhos pubianos. O narrador, alterego assumido do próprio autor nesta obra, vem logo em seu auxílio. “Tive de raspar-lhe as axilas e mesmo depois disso a coceira de Boris não passou. Como pode alguém adquirir chatos num lugar tão bonito como este? Mas isso não tem importância”, logo conclui, fazendo alusão à bonita amizade que a partir daí nasceria entre eles.

Possivelmente estes e tantos outros personagens de Miller, tal como ocorre na vida real, jamais teriam se dado a chance de se conhecer tão intimamente, não fossem os chatos.

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Ricardo Bellissimo é escritor, jornalista e historiador

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