* Por Kátia Gerlach *

No parque com toques de floresta nesta singela Stowe, a novidade há alguns dias foi a aparição de uma escultura de madeira com três ursos, sem a companhia da menina perdida e dos cachos dourados.  Os três ursos parecem irmãos, contentes de saírem da madeira e tomarem forma.  Afeiçoo-me ao do meio, sentado e com a pata apontada para o céu.  Na palma da pata amarelada reflete um raio de sol e faz rir.

Assim que pisei no parque, observei ao redor e me ocorreu pensar nas várias pandemias que nos abatem enquanto civilização neste século XXI, um século praticamente desconhecido pelos meus avós.  O meu avô nasceu no ano da Gripe Espanhola no Rio de Janeiro e nunca conversamos sobre isso.  Falávamos sobre outras coisas, aquela praga tendo ficado para trás.  A avó nasceu em 1920, na metrópole a beira mar, ela sempre foi alegre e jovem.  Aos oitenta anos era jovem.  Nem as dores crônicas a envelheceram.  Alguns antepassados morriam de tifo. O costume era uma gema com vinho do Porto nas manhãs para fortalecer e salva o corpo das enfermidades.

Por mais assustadora que esta epidemia ocasionada pelo corona vírus seja, um medo gigantesco me assombra: o de, havendo passado esta crise, voltemos a cair na pandemia que aflige o nosso quotidiano, a nossa mortalidade.

O poeta americano Richard Brautigan nos idos anos 70, em sua obra com requintes de um beatnik atrasado no tempo, inclui um poema que trata da harmonia entre as máquinas e os seres humanos.  Brautigam fala de florestas cibernéticas.  Cria metáforas em que computadores são flores desabrochando.  Sugere graciosamente que as máquinas se incumbirão de fazer todo o trabalho, possibilitando às pessoas o deleite da contemplação quase parnasiana da natureza.  Falta-me ler os livros de Brautigan, inclusive o mais conhecido “Pescar Truta na América”, metaliterário, sem sequência temporal.  Brautigan já foi um ídolo literário nas décadas de 60 e 70.

Deste seu livro: “O velho bebado me falou sobre a pesca das trutas. Quando ele conseguia conversar, tinha um jeito de descrever truta como se fossem metal precioso e inteligente.”

Para além das esculturas de urso em madeira, encontrei em Stowe uma enorme escultura de metal com uma truta chamada Brandon.  O metal começa a enferrujar.  Brandon permanece firme em forte enfeitando a parede lateral de um restaurante de peixes.  Devido ao “lockdown”, os restaurantes em Stowe estão todos fechados e não vi trutas nem nos rios, nem na peixaria ou no supermercado.  Tão logo chegamos a Stowe, pensei que comeríamos trutas até enjoar.  Mas as trutas estão desaparecidas e se aparecerem desconfio que serão de cobre enferrujado como Brandon.  Brautigan cita trutas de aço, prateadas.  Vi alguns troncos de árvores reluzindo prateados sob o sol, desconheço qual a espécie dessas árvores, garanto que estão por aí, descascando a pele, como se fossem cobras.

Nas florestas mais distantes da Main Street onde vim a morar com o meu passaporte, encontram-se cidades de gnomos aos pés das árvores, escondidos pelas sombras de cogumelos mais redondos do que a lua que promete surgir cor de rosa nesse mês de abril.  O início do ano lunar no dia 25 de janeiro passado soa-me tão distante.  E a lua, como os elementos do céu, também.  Às vezes, tenho a sensação que a terra agora está sózinha, flutuando no espaço por conta própria, brevemente a se desligar das constelações conhecidas, da lua amiga, do sol radiante.  Esta nova pandemia faz da terra um planeta à deriva.  Não sei se encontraremos as velas enfunadas, sobre as quais o meu amigo A. fala e que o guiam naquela cidade sem mar, onde ele, noctívago, escreve cada vez mais.  O surto bom, ele diz.  Não conseguimos parar de escrever, não conseguimos parar, como se não houvesse amanhã, e a hora ser agora como cantávamos no papel de minúsculos revolucionários numa América Latina.  Chicotear as trutas com o anzol, domar esta situação, experimento com as palavras, o tempo não corre em linha reta como na pescaria, a maré desvia o barco do caminho, o que importa se o planeta segue em desvario.

Pode ser que a pandemia ocasionada pelo vírus passe, pode ser que esta não seja uma guerra biológica velada, pode ser.

O que será é que em poucos meses, a pandemia da pressa, do capital enxugado por dois mil seres humanos, das fornalhas chinesas, das misérias economico-sociais voltarão a nos afligir, estamos e estaremos doentes.  Observo as plantações de milho e questiono se os fertilizantes não contaminam a água que bebemos e pensamos ser pura e cristalina.

Dentre as incertezas que assolam a humanidade, contrapõem-se uma certeza tão imensa quanto o Demiúrgo: nunca viveremos como os gnomos na floresta, nunca!  Aceno um leve adeus ao urso de madeira, resolvo partir com o passaporte na mão.

 

Ah, primavera! Lembra-se do ano lunar, quando comemoramos um rato de madeira?  As mulheres com plumas espetadas nas cabeças, celebravam o Carnaval com os homens, ninguém vestia roupas que não fossem vermelhas.  As plumas voaram, o rato fugiu, e nos canteiros onde deveriam brotar as tulipas, cavam-se sepulturas para os corpos dos nossos mortos neste ano lunar do rato que nos prendeu a todos em sua ratoeira.

A folha em branco aceita tudo, verdades, mentiras, meia-verdades, meia-mentiras, é hiper flexível embora não seja impermeável.

*

Kátia B. de M. Gerlach é escritora natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York desde 1998. Autora dos livros Colisões Bestiais Particula(res) e Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas publicados pela editora Confraria do Vento.

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