* Por Carina Lessa *
Uma volta completa: eis o sonho dos poetas civilizados. Trópico de papel (2019), de Cesar Garcia Lima, a partir da inclinação do eixo completa uma órbita em torno do sol. Talvez questionem tal empreendimento, recebam o clarão e se satisfaçam. A Cesar o que é de Cesar. O trópico é dele e me disponho a acompanhá-lo. O poeta traz palavras descomprometidas com o presente histórico. Os raios modificam a duração dos dias e das noites como reivindica o título. Há uma tábua de papel simples e confortável. Em “Estreito”, o eu poético declara nos três últimos versos: “Cães e futuro: / não há quem os ladre / a natureza é morta para os sós”. Observemos a inversão, alguém ladraria para o cão e também para o futuro. “Cão que ladra não morde”, diz o ditado.
O futuro nos mordeu historicamente e cá estou retirando (e/ou colocando) o marcador de livro em tempos mais sóbrios da pandemia, depois do isolamento. A indulgência é a última que morre, leitores. Remeto ao César o perdão pela espera respeitando o poema que vai na contracapa, o cão à espreita. Conversemos.
Cesar Garcia Lima é poeta, jornalista e professor de literatura. Trabalhou como crítico, editor e redator em jornais, revistas e televisão com experiência cultural vasta. Dirigiu e roteirizou dois documentários intitulados Soldados da Borracha e Onde minh’alma quer estar. Como poeta, é autor de Águas desnecessárias (1997), Este livro não é um objeto (2006), Trópico de papel (2019) e do mais recente Bastante aos gritos (2021).
Pego de relance o seu “Vale-transporte da poesia” e acentuo: a passagem anda cara, o Uber, exorbitante! Que bom termos os mares da internet. Querido Cesar, faço a provocação encontrando também o pesquisador de literatura contemporânea. Como você vê o esmaecimento das categorias literárias em tempos de profusão de escrita? Você acredita que a Literatura deve ter novos parâmetros de (re)conhecimento a partir das pautas políticas, culturais e identitárias? Pergunto tendo em vista também o poema ao qual faço referência em que, num primeiro movimento de leitura, você reivindica o direito à leitura de Drummond, por exemplo, para a balconista Suely. Antes de mais nada, obrigado pela leitura, Carina. Acredito que a maior dificuldade do poeta brasileiro do presente é ser lido, em meio à proliferação narrativa e audiovisual que nos atinge todos os dias pela internet. Sobre a questão de novos parâmetros para definir a literatura, penso que isso está mudando o tempo todo e que outros tipos de linguagem de alguma maneira sempre contagiaram o trabalho do poeta e do ficcionista. Hoje nos afeta especialmente a cultura cyber, trazendo de volta um elemento de oralidade, mas também da instantaneidade visual. Tenho afinidade com a teoria da argentina Josefina Ludmer ao pensar em textos que perscrutam o presente, denominada por ela de literaturas pós-autônomas, que podem ser lidas de maneira ambivalente, sendo e não sendo literatura, como escrituras em movimento e que guardam marcas da realidade. A representação identitária é evidentemente fundamental para valorizarmos as margens e os sujeitos que tentam se afirmar na voracidade do sistema capitalista, em crise para manter seu modo de exploração. A balconista Suely do meu poema é uma personagem que emerge da opressão e se coloca como leitora de Drummond. É uma trabalhadora que reivindica seu acesso à leitura e à poesia.
Hoje, com o advento da internet, ficou muito mais fácil a circulação de textos produzidos por escritores de todo o país. Mantenho o assunto. Você considera que a facilidade de acesso nos permite conhecer um número maior de escritores de Literatura? Há nisso uma possibilidade de modificação da ideia de cânone? Evidentemente a circulação de textos proporcionada pela internet nos possibilita uma ampliação de divulgação literária sem precedentes. Posso ler (ou “seguir” como se diz nas redes sociais, de modo um tanto quanto religioso), ao mesmo tempo, uma página sobre literatura no Facebook produzida em Buenos Aires, manter contato com um escritor da Ilha da Madeira, e acompanhar novos autores da Amazônia, que me interessam especialmente. Assim, é possível ler autores inéditos que publicam textos na internet logo depois de produzi-los, o que é ótimo para conhecer essas escritas, mas ao mesmo tempo traz o imediatismo e uma sobrevalorização do presente e da novidade. O cânone – assim como a economia e as grandes narrativas – passa por um processo de fragmentação e pode ser mais inclusivo tanto na diversidade de linguagens quanto nos sujeitos envolvidos em sua produção. Esse estremecimento de limites me parece muito rico a longo prazo, ainda que ainda seja difícil precisar no que vai resultar essa redefinição de saberes, assim como a educação, profundamente alterada pelas aulas remotas e o individualismo dos mecanismos de busca.
Fale-nos um pouco sobre o seu mais recente Bastante aos gritos. Que livro! O projeto surgiu com a pandemia? Desde já, parabenizo-o, como sempre, pela indiscutível modernidade, perspicácia e sensível elaboração em diálogo com os tempos também históricos. “Educação moral e cívica” está entre os menores poemas, composto somente por dois versos: “– Qual a palavra mais comprida em português?/ – Inconstitucionalissimamente.”. Acuso o advérbio de intensidades múltiplas, vai ao amargor da situação política do país, arrastada desde que se forjou a história do descobrimento, que pode ser do mundo ou do Brasil. Como você vê, atualmente, o futuro incerto da nação? Mais uma vez agradeço a generosa leitura, Carina. Percebo que a poesia, ainda que prospere cada vez mais no meio virtual e no impresso, está muito restrita a quem a produz. O narrativo, incentivado pela cultura de massas, prevalece como expressão mercadológica hegemônica. Bastante aos gritos surgiu como projeto durante a pandemia, mas traz a marca da indignação advinda dos últimos anos de política autoritária no Brasil e do inevitável retrocesso que o país atravessa por atitudes retrógradas como extinção dos Ministérios do Trabalho e da Cultura. Os poemas, no entanto, são de diferentes épocas da minha produção e alguns têm mais de 30 anos! “Educação moral e cívica”, por exemplo, foi escrito nos anos 1980 e é uma apropriação de uma brincadeira infantil, utilizando o nome de uma disciplina do antigo ginásio, durante a ditatura. O objetivo pedagógico, no caso, era o de nos ensinar a sermos mais obedientes e cultivar os símbolos pátrios como a bandeira ou a cultivar o hino nacional. Eu me lembro de ter participado, a partir dos 12 anos, de maratonas intelectuais cujo objetivo principal era incutir o “amor à pátria” de modo doutrinário. Felizmente, não segui muito a cartilha (risos)! Ora, nossa situação piorou muito porque essa ideia de nacionalismo infantilizado hoje está disseminada pelos aplicativos e por uma exaltação da ignorância promovida pelo ódio de classes e disseminação do medo. Ao mesmo tempo, é inevitável que o autoritarismo atual não permaneça porque vai na contramão das modificações políticas e sociais da América do Sul, fortalecidas pelas eleições de governos progressistas no Chile, na Bolívia, no Peru e na Argentina.
É impressionante o número de referências a pensadores, literatos, filmes, dentre outros que aparecem no livro. Ressalto a riqueza técnica que está a serviço das sensações poéticas e físicas e, ainda, por vezes, com verdadeira força retórica como no recurso à repetição em:
“Escola da dor
Tem dias que o poeta sente a dor do mundo.
Dói nos ferimentos das crianças de Realengo.
Dói na vala comum do assassino de Realengo.
Dói nas mãos dos escravos das naus portuguesas.
Dói na cobiça dos portugueses mortos de tifo.
Dói na pele escura de Mário de Andrade.
Dói nos olhos azuis de Carlos Drummond de Andrade.”
Muito bonita a dor do mundo que passeia pela materialidade do bairro, da cor, dos oceanos e do indivíduo (marcado pelos nomes dos poetas). O grito, aqui, é da humanidade. Em contraposição, como você tem lido o excesso de individualismo contemporâneo? Você acha que a necessidade de políticas identitárias tem contribuído positivamente para a constituição da Literatura? Penso que o individualismo contemporâneo é uma decorrência do aprofundamento das desigualdades. Isso é possibilitado pelos mecanismos econômicos que, de diferentes maneiras, facilitam o crescimento de grandes corporações e sufocam os mais pobres e com menos acesso aos saberes. Acredito que isso não seja “privilégio” de nossa época. Também me parece complexo analisar a relação das políticas identitárias com a literatura, mas, a meu ver, vivemos em um período em que estamos passando a limpo a história da humanidade e os sujeitos ex-cêntricos, lembrando a expressão da pesquisadora canadense Linda Hutcheon, estão reivindicando com legitimidade seu espaço de manifestação social. Quando isso é transportado para a literatura, no entanto, podem acontecer “correções” que restringem a criação literária.
Você acredita no fim das fronteiras da escritura? Ainda podemos falar que há um lugar para arte literária? Não posso avaliar com distanciamento o que seria o fim das fronteiras da escritura. Uma característica da nossa época é superestimar o presente, como se este momento da história – sem dúvida, muito especial – pudesse ser a medida do que foi o passado (a ser restaurado) e com capacidade de prever o futuro. Acredito, sim, no esgotamento ou na reformulação de muitas formas de expressão e em uma ascensão crescente do audiovisual e de outras mídias. A literatura, no entanto, em diferentes formatos, sempre estará presente porque cabe à humanidade fabular sobre o mundo e sua própria existência.
O que você teria a nos dizer sobre a ideia de “lugar de fala” em diálogo com a renovação do cânone da literatura? A questão do lugar de fala tem sido, muitas vezes, usada para criar uma exclusividade enganosa, que mais fragmenta os excluídos do que os aproxima. A partir dos estudos da indiana Gayatri C. Spivak em Pode o subalterno falar?, defendo que ao autor é sempre possível “falar de” de maneira respeitosa, evitando o “falar por”, não restringindo a literatura apenas aos narradores que contam sua própria história. As possibilidades da literatura são infindáveis e no momento existe uma aproximação do documental, como se a ela fosse designado um papel exclusivamente social, informativo, equiparando a linguagem literária às funções do jornalismo, do Direito, da ética ou da política. E a literatura é como o mundo, nela tudo é possível. Em entrevista ao jornal Rascunho, o escritor Bernardo Carvalho já comentou sobre os impasses que isso trazer ao campo literário.
Quais escritores, brasileiros ou não, você acredita que mereçam ser lidos e que estão fora do cânone já estabelecido pela academia? Bem, talvez tenhamos que marcar uma outra entrevista só para falar disso, a lista é grande e se modifica a cada dia (risos). Penso que alguns nomes do passado, em novas leituras, podem e devem ser (re) lidos de maneira mais atenta, pois antecipavam questões nacionais que até hoje não estão apaziguadas. Então, vou citar apenas um nome do passado, para não ser injusto com poetas e ficcionistas do presente. Eu me refiro a Lima Barreto. Já está hora de pensarmos nele como modernista e não sob a denominação pré-modernista. Em História da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, a quem dedico imenso respeito, o denominava como “mulato enfermiço”, não sei se isso já foi revisto em edições mais recentes. Por isso, penso que, mais do que uma reescrita das obras literárias, como a que muitos propõem sobre Monteiro Lobato, é preciso tornar mais ampla, acessível e crítica a avaliação que se faz delas. A crítica está mais fragmentada e sofre da pulverização proporcionada pela internet, o que é uma faca de dois gumes.
Como acriano, me diga: há características específicas da literatura produzida pelas suas terras? Você escreve ou já escreveu com intuito de estabelecer uma cor local do seu Estado de origem? Antes de responder, faço uma observação: prefiro o termo “acreano”, a reforma ortográfica realizou algumas mudanças que não me parecem muito poéticas (risos). A literatura é uma manifestação artística vasta no Acre desde o início do século XX, sendo que seus habitantes e cenário inspiraram muitos autores locais ou que passaram por lá, como Euclides da Cunha. Mais do que elencar essas características, o que seria insuficiente neste espaço, indico a pesquisa acadêmica da Laélia Rodrigues, professora aposentada pela UFAC (Universidade Federal do Acre) e, sobretudo, o blog do escritor e pesquisador Isaac Melo, https://almaacreana.blogspot.com/, que é excepcional como arquivo quanto por notícias da produção local do momento, no qual todas as referências importantes podem ser encontradas. No que se refere à minha relação com a localidade, ao publicar meus primeiros poemas nos jornais de Rio Branco, minha cidade natal, incluí alguns textos com títulos relacionados com a cor local, como “Quando os ipês floriram”, “História de posseiro” ou “Migrante”, sendo que este último já trata da questão da minha mudança para São Paulo, para onde me transferi ainda adolescente. Na verdade, a relação entre o meu lugar e o mundo sempre foi um tema de inquietação e, no Trópico de papel, de 2019, publiquei o poema “A palavra acre”.
Há uma abertura maior para escritores fora do eixo Rio-São Paulo-Minas? O advento da internet, com o processo também de globalização, contribuiu para a valorizar a literatura produzida por todo o país? A internet, assim como a literatura, é sempre um vasto território de possibilidades e evidentemente possibilita a publicação de autores fora do Sudeste. A questão é que os mecanismos econômicos de exclusão também são reproduzidos pelo mundo virtual e os mais carentes não têm computador ou conexão para divulgar seus trabalhos. Também institui uma espécie de papel duplo que é desgastante, já que o próprio autor, muitas vezes, é o responsável pela divulgação de seus textos e pela venda de seus livros. No entanto, acredito, sem dúvida, que os horizontes de leitura tanto quanto os de publicação se ampliaram com as possiblidades virtuais.
Cheguemos no assunto já, de alguma maneira, cansado neste início de século. Há, ainda, uma positiva contribuição do modernismo e da Semana de 22 para a Literatura produzida nos dias de hoje? A questão da importância da Semana de 1922 é, talvez, um assunto esgotado para nós que somos do mundo acadêmico, mas ainda, infelizmente, afeito a polêmicas nem sempre justas com o que foi esse movimento. Não que queira superestimar a Semana como evento paulista, mas sim de pensar nas possibilidades de discussão das vanguardas artísticas que se expandiram a partir dela. Para mim, pessoalmente, estudar autores que ganharam destaque nacional a partir da Semana, como Mário de Andrade, teve um papel fundamental no meu amadurecimento como pesquisador e também autor, se é que possível mensurar este último.
Por fim, o que você gostaria de nos deixar como divagação sobre a arte que nos oferece, seja ela nos poemas ou no cinema? Espero que, tanto na literatura, quanto no cinema, eu possa oferecer sempre uma linguagem inconformista, mas também com algum alento para quem ler meus livros ou assistir a meus documentários. Lembro de Guimarães Rosa e de seu olhar sobre a coragem. Lembro também de Drummond, sua luta com as palavras e a busca por empatia entre seus companheiros. Precisamos dessa coragem e resistência para continuar a escrever, estudar e viver não apenas no Brasil, mas em meio a essa imperfeição do mundo, que nos desafia continuamente.
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Carina Lessa é ficcionista, poeta e ensaísta. Doutora, mestre e bacharel em Letras pela UFRJ, atua como professora de graduação e pós-graduação na Unesa nos cursos de Letras, Pedagogia e Relações Internacionais. Escreveu os livros Aborto (2020) e Dama de Paus (2021).