* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *
Eu trabalho escrevendo. No último mês fui acometido por um bloqueio na minha escrita anormal. Eu olhava a página em branco e não conseguia organizar as ideias, colocar as palavras e um último texto se arrastou por semanas no vai e vem de releituras e reajustes. Não conseguia finalizar, as palavras não vinham, os parágrafos ficavam truncados, não ganhava páginas e as ideias haviam perdido sentido. As notícias, minuto a minuto, das eleições invadiam meus espaços, mas isso não era o problema. Eu sempre estive acostumado a conviver com volume de informação por dia, lidar com elas e seguir em frente com o que tinha que fazer no meu ofício com as palavras. Conviver com volume de informações faz parte do meu trabalho diário. E eu, particularmente, gosto de estar ligado nas informações. Estar envolvido em notícias me traz uma sensação de estar, de alguma maneira, participando do mundo. Em especial, nesse caso do começo deste ensaio, havia alguma coisa diferente. Meu cotidiano estava afetado. Não era apenas não conseguir colocar as palavras no papel, mas uma vontade de não as colocar.
No último mês passei a me questionar se valia a pena pensar, produzir algum tipo de discussão, me expressar, produzir conteúdo, conversar pela escrita, realizar provocações. Esses questionamentos foram tão intensos que não consegui escrever tudo que eu precisava e necessitava para trabalhar. A escrita na minha vida é vital, não me movo pelo dia sem colocar minimamente umas seiscentas palavras no papel por dia. É por onde me realizo, me expresso, que me coloco no mundo, que direcionei o meu trabalho. Cada indivíduo tem sua maneira de se colocar, a minha é pelas palavras no papel. Porém, eu estava consumindo, e elas não queriam ser postas no papel. Conversei com várias pessoas amigas e os conselhos eram que eu me afastasse das notícias, fizesse o tal detox de informações, pois estava consumindo informações ruins demais, que o ambiente virtual estava muito tóxico. O conselho era pela “boa alienação”. Com razão, são muitas más notícias, mas sempre convivemos e conviveremos com elas. Tentei por alguns dias não as acompanhar, praticando o namastê da “boa alienação”, e não adiantou em nada. Continuava sem colocar minhas palavras no papel e invadido por um sono descomunal. Todo tempo que antes era reservado para a escrita eu adormecia como se quisesse desligar de pensar. Um colega psiquiatra sugeriu estafa mental, sugeriu descanso, mas não era algo tão simples de perceber. Era algo mais latente. Percebi o que era, enfim, quando navegando em uma rede social vi um vídeo de uma conhecida que seguia naquela rede que ela declarava voto no candidato Bolsonaro. Mulher trans, nordestina, guerreira e referência na militância. Era um vídeo de mais de quinze minutos em que ela elencava vários motivos de não votar no candidato Lula. Até aí não há nada de anormal, pois cada um tem suas afiliações e vota em quem quiser. Porém, todos os argumentos levantados eram fakenews e de fontes completamente duvidosas. As notícias, os fatos, que ela mobiliava eram tão absurdamente irreais que achei por vários momentos que eram apenas um momento teatral, mas não era. Ela acreditava piamente nas notícias. Ela estava envenenada por notícias falaciosas que haviam mudado a percepção dela do mundo. Como uma droga, ela estava entorpecida por aquilo. Notícias falsas associadas a cooptação perversa do mal discurso religioso que de religião não tem nada e é apenas discurso político. Ela não está bem e fiquei péssimo por isso. Porém, percebi que de maneira diferente eu estava envenenado da mesma maneira. Ao contrário de acreditar na veracidade das notícias falsas, eu estava acreditando que a discussão democrática, à minha expressão, o processo de criação com as palavras, a crença no meu papel na educação e a esperança em um futuro bom e positivo estavam minados. As fakenews haviam me envenenado por outro mecanismo: eu estava desacreditando no poder de cada um de nós dentro do jogo democrático. Eu estava esquecendo do argumento poderoso que havia aprendido com a filósofa Hannah Arendt [1906-1975] sobre que o nascimento de cada indivíduo na sociedade era a esperança do exercício do potencial político, ou seja, cada indivíduo nascido tem um potencial político. Eu esqueci, ainda, outro argumento importante de Arendt que o mal se expressa pela ausência do pensamento, que o autoritarismo trabalhava no superficial e não na profundidade do pensamento que produz o bem.
Como um vírus silencioso, uma pandemia paralela, havia me infectado e eu estava deixando de lado a participação no mundo que eu tanto amo praticar. O mal da ausência de pensamento tinha me atingido. Para que escrever? Para que tentar dialogar? Para que tentar estabelecer pontes? Para que pensar? As minhas respostas, durante minha infecção de fakenews, eram que o diálogo diante de um cansaço geral que eu via por todos os lados não era importante. Então, era mais fácil calar. Muitos morrem politicamente assim. Esse é o principal resultado que o autoritarismo quer alcançar: a alienação voluntária, ou seja, por medo ou por desânimo acometido por uma desesperança tremenda que deixemos de lado a participação pública, a construção, a expressão de ideias, o debate, a discussão pública, e a ausência de pensamento. O autoritarismo ganha espaço assim: com os calados. Os calados abrem espaço para as fake news gritarem nas almas. Nessa desistência, as fakenews como vírus produzidos pela máquina fascista e autoritária, ganham espaço no buraco que deixamos quando abandonamos o nosso direito público de pensar e produzir ideias. “Aqui não se fala de política”, “Política não se discute”, “Política não combina com negócios”, “Isso não é política”, são alguns dos discursos-chorumes que vem dessa infecção. Porém, o fantástico, um incidente aconteceu no país: os mortos passaram a circular entre nós…
Vamos à literatura. Não tenho como não recorrer a uma obra clássica da literatura brasileira, “O incidente em Antares” do escritor Érico Veríssimo [1905-1971] – (foto ilustrativa do texto), para fazer uma metáfora paralela. Publicado em 1971, ainda sob os anos de chumbo da ditadura militar, o livro de Veríssimo narra a história de Antares, uma cidade que nem consta no mapa do Rio Grande do Sul, e é dominada pelas disputas de poder político e econômico de duas grandes famílias fundadoras da cidade – os Campolargos e os Vacarianos. Ambas famílias estão permeadas pelas discussões, preconceitos, medos das questões sociais que tomam a cidade de Antares, por exemplo, os direitos dos trabalhadores, os simpatizantes do comunismo e as reivindicações por meio de greves da classe dos operários abalando as elites comandadas pelas famílias citadas. O tom político do livro de Érico Veríssimo é claro e por meio do movimento literário do realismo fantástico, que nascia na América Latina em meados do século XX, denuncia as atrocidades de um Brasil profundamente afetado por políticas autoritárias da ditadura militar. O grande incidente na cidade fictícia de Antares acontece na segunda parte do livro, quando sete pessoas moradoras da cidade morrem e não são enterradas porque há uma greve imensa na cidade, inclusive dos coveiros, impossibilitando que sejam sepultadas. A alegoria de Veríssimo começa nesse ponto quando os defuntos não sepultados levantam de seus caixões e decidem vagar pela cidade e reivindicar de suas famílias e dos políticos seus direitos. Como estão mortos e não podem ter qualquer repressão por parte do Estado ao fazer suas reivindicações, convocam em uma sexta-feira 13 uma assembleia em que vão dizer todas as verdades, sem dó e nem piedade, aos parentes e aos políticos de Antares. Segredos privados e segredos de Estado vêm à tona pela boca dos defuntos causando um enorme desconforto em todos que rumam para uma profunda crise na sociedade de Antares. A assembleia promovida pelos sete mortos não sepultados de Antares vira uma espécie de CPI da cidade e acerto de contas e reivindicações de justiça social. As verdades trazidas pelos mortos, é claro, não estão limitadas à cidade de Antares, mas falam de um Brasil afundado no espírito autoritário, desigual, oligárquico, racista, excludente e por aí vai. A genialidade da alegoria de Veríssimo em “Incidente em Antares” consiste em colocar os mortos para falar e decidir os rumos da sociedade de Antares. São os sete mortos do romance que provocam as transformações sociais, pois não podem sofrer repressão. Quem vai calar os mortos? Quem vai prender os defuntos? Já os vivos, com direito a pensar e com espaço para mudanças, não o fazem, pois estão voluntariamente alienados e presos aos medos de repressão e alianças entre si no mundo. Os mortos já estão livres, inclusive para contestar e exercer seus direitos políticos. É preciso, então, estar morto para se expressar? É a pergunta que se impõe. Logicamente que não, mas metaforicamente o mesmo incidente aconteceu no Brasil no domingo das eleições do segundo turno: os mortos reivindicaram. Enquanto os vivos avançavam com mais de 40% dos votos para quem mata, os milhares de mortos fizeram o levante contra uma fantástica Antares de proporção de terreno nacional.
O fantástico da minha criatividade no processo de escrita estava esgotado. Esse era o verdadeiro diagnóstico do meu bloqueio de escrita. A realidade que vivemos sequestrou a possibilidade do “realismo fantástico” do imaginário que passou a ser real. As fakenews produzidas ultrapassaram qualquer linha de imaginação causando um efeito devastador na nossa capacidade de pensar em qualquer direção ao “absurdo”. O absurdo e o fantástico perderam sentido. Vivemos na pós literatura fantástica latino americana com as fakenews da mamadeira de piroca, do kit-gay nas escolas, do fechamento de igrejas, das crianças de cinco anos passarem a ser de posse do governo, do Pablo Vitar ser amante e estar “grávida” de Lula, e etc. Além do fantástico virar realidade como em plena pandemia da COVID-19 as vacinas serem negociadas com 1 dólar a mais de propina por dose; o misterioso orçamento secreto com dinheiro desviado da educação e saúde para bancar a máquina pública em favor do candidato da situação na eleição; milhares de “gatos” com remédio viagra e leite condensado para os militares; ex ministra dos direitos humanos inventar casos de abusos contra crianças e não denunciar; presidente da República “pintando clima” com jovens venezuelanas em um momento coletivo de tratamento de autoestima; deputada federal correr atrás de homem negro apontando arma em plena luz do dia em bairro nobre da cidade de São Paulo; apoiadores bolsonaristas protestarem a favor do crime de intervenção militar contra a democracia; LGBT+ declarar voto em extrema direita; e ex ministros das saúde estar mais preocupado em comprar sacos pretos para os mortos da COVID-19 que ter fornecido oxigênio na crise de abastecimento nos hospitais na cidade de Manaus em 2021. O fantástico virou horror de realismo. Não foi à toa que a capacidade de pensar e de esperança ficou despedaçada. Tenho certeza que não foi apenas comigo. O local cinza do não pensamento afetou milhares.
Mas é dos mortos no incidente no Brasil, que vou encerrar como na segunda parte do livro do Veríssimo. Os mortos produzidos pela negligência da COVID-19 a partir de 2020 no Brasil foram sepultados em covas coletivas por toda parte do país. No dia 30 de outubro eles voltaram, simbolicamente, para reivindicar e protestar contra o autoritarismo e descaso do governo que levaram a essa condição. A eleição foi decidida por uma diferença pequena de número de votos entre Bolsonaro e Lula, quase na casa do número exato contabilizado de mortos pela infecção pela COVID-19 desde o início da pandemia e mais outros milhares de fome, do dinheiro sequestrado da saúde e educação para o orçamento secreto. O golpe que esperávamos e constantemente prometido pelo presidente era via militarismo, mas quase veio via orçamento secreto. Entretanto, Bolsonaro sentiu na pele a importância que 1 milhão e mais um pouco de pessoas tem no mundo. Quem decidiu essas eleições foram os mortos pela negligência do governo. Antares de Veríssimo não é apenas o retrato do Brasil dos anos 70 de chumbo, mas é uma atualização do Brasil a partir de 2018 do governo Bolsonaro. A assembleia dos mortos no dia 30 de outubro teve alguma solução para a sociedade tão quão a da sexta-feira 13 na imaginária Antares. Em meio a essa crise da escrita, um amigo me disse que eu deveria me concentrar em literatura, ler e escrever literatura, ao invés de me debater com as verdades no mar de pós-verdades. Não estava errado. A recuperação viria pela recuperação do imaginário corrompido pelas fakenews. Nada como a literatura como bálsamo para tomar as rédeas e curar da alienação voluntária. “E dai? Eu não sou coveiro!”, frase infeliz do já considerado ex-presidente Bolsonaro em meio a dor e ao desespero da pandemia em 2020 que teve uma resposta agora. Veríssimo nos fez lembrar que não se mexe com a liberdade política dos mortos. Foram os mortos da COVID-19 que derrubaram Bolsonaro.
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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com