Por Eduardo Sabino *

Turismo para cegos, romance de Tércia Montenegro (Companhia das Letras, 2015), contém no título uma síntese muito boa dos caminhos em que os personagens embarcam. Laila é uma artista plástica com uma doença degenerativa que logo a levará à cegueira. Pierre, seu aluno, um funcionário público invisível aos colegas de trabalho.

Juntos em um relacionamento improvável (desde o início, nada em Pierre atrái Laila), os dois seguem um roteiro de viagens em cidades de Minas e pelo Nordeste. Isso quando Laila já está completamente cega, justificando, de modo literal, o título do romance, embora o turismo proposto tenha vertentes subjetivas: as descobertas e progressos de Laila na vida sem a visão, seus exercícios e jogos de adaptação (sonoros e táteis) ou, ainda, a cegueira de um novo relacionamento, um casal se tateando no escuro (Pierre é quase um desconhecido quando ela resolve morar no seu apartamento).

No instante em que Laila não mais enxerga, ganha uma intensidade assombrosa seu interesse pela visão. Ela continua trabalhando nas artes visuais, com a ajuda de Pierre, e segue na obsessão por viagens até não haver mais dinheiro. Pierre, que investe suas economias nesse turismo interminável, não compreende o desejo da namorada, não entende como pode haver interesse nas paisagens não mais visíveis. Para Laila, o interesse vem justamente da perda irrecuperável de uma forma de contemplar o real. “Viajar é a única forma de eu saber que o mundo existe” (pág. 98).

A estrutura do livro reúne capítulos curtos e nomeados com títulos que se repetem nas três partes do romance: “Não há inocentes”, “A paz transitória”, “Os deuses petrificados”, “O inventário”, “O afogamento”, entre outros, talvez um recurso para demarcar padrões narrativos, momentos de trégua na relação de Laila com Pierre e com seu novo mundo, além de conflitos e observações existenciais, lembranças, reviravoltas, detalhes e percepções da cegueira (como em “O inventário”).

A narrativa flui em primeira pessoa, com uma personagem-narradora de início muito distante do casal em foco.  Quem narra é uma atendente de um pet shop, não nomeada, onde Pierre e Laila adquirem um cão-guia. Ela observa o casal a distância, sem nunca arriscar qualquer tipo de relação com Laila, sabendo do namoro através de Pierre, com quem se encontra e conversa regularmente.

É de se estranhar, a princípio, a distância mínima que a narradora se estabelece de Laila (se ela só pode ser descrita por intermédio de Pierre). De onde vem a capacidade da vendedora, um tanto mediúnica, de entrar na cabeça de Laila e descrever suas sensações de ângulo tão privilegiado? Tudo isso se torna mais natural no terceiro ato, quando o romance dá vida a essa narradora e descobrimos sua obsessão por Laila, suas anotações durante o trabalho, a vontade de ser escritora.  De certa forma, ela não apenas contempla o casal, mas o toma como modelo-vivo, preenche as lacunas na imaginação. Se deslumbra com o que ouve sobre Laila, mas também a idealiza, dá vida a uma personagem.

Laila se opõe ao caráter manso e subserviente de Pierre. Não por acaso, sempre crítica e irônica ao jeito do outro, ela batiza o cão-guia de Pierre. Apesar das necessidades especiais, Laila foge do estereótipo de namorada que precisaria ser cuidada e protegida (como parece querer Pierre desde o início). Com ela – seu comportamento por vezes frio, distante e imprevisível – Pierre é quem se sente constrangido e desamparado.

Existe um uso frequente na linguagem de referências à cegueira e a visão, embate que atravessa o romance, deslocando-o às aproximações e recuos de Laila e Pierre. Laila tem sempre o domínio da situação, nunca dando a entender claramente suas vontades, o que faz de Pierre, muitas vezes, o verdadeiro cego do relacionamento. Aproximar-se de Laila, emocional ou sexualmente, é como sair do breu, enxergá-la um pouco melhor:

Quando Pierre ficou completamente nu, quis abraçar Laila, esconder-se pressionando seu corpo contra o dela. Não pôde, entretanto, tocá-la. Com um sinal imperativo, ela o imobilizou na postura vulnerável, apenas para que a visse andando, os braços no alto como uma dançarina. Deixou os cabelos ondularem no escuro – poucos passos até alcançar o estrado da cama. Então puxou num único gesto o vestido, jogando-o pelo avesso como uma pele morta. Pierre precisou que ela acenasse várias vezes, para finalmente se aproximar. Laila estava deitada, cheia de sombras pelas pernas, que se abriam como duas pálpebras (pág. 55).

Bons momentos à parte, o romance também apresenta alguns capítulos de constância monótona. Uma repetição das andanças de Laila com o cão-guia, vivências e descrições mais corriqueiras de classe média, aulas de natação que se repetem nos exercícios, a presença um tanto desbotada dos pais de Laila e de um adestrador de cães, reduzidos a poucos gestos.

Ainda que integrem um conjunto, alguns capítulos, por outro lado, têm a força de pequenos contos. É o caso de “A escapatória”, ponto alto do livro, um humor que é raridade nos outros capítulos. Laila e Pierre vão a um restaurante onde ele marcou um encontro com colegas de trabalho que mal conhece. Laila, que está ali nitidamente a contragosto, leva Pierre, o cão-guia, cujos restaurantes são obrigados a aceitar a entrada. E o pior: não o alimentou antes.  Em uma cena inusitada e cômica, o cachorro se aproxima das mesas, salivando, assustando os clientes, enquanto a dona faz o tipo “cega extravagante”, tateando o rosto dos novos conhecidos.

Talvez, agora vejo, falte ainda citar uma outra interpretação aos sentidos do “Turismo para cegos”. A do leitor percorrendo um novo romance, universo este onde adentramos de mãos vazias, ignorantes, no escuro. Porém, com toda a simbologia da cegueira mitológica, os olhos furados para o desvio das aparências e a retenção do que não se vê. Não por acaso, Tércia convida, logo na dedicatória: “Aos que sabem contemplar”.

Não sei dizer se estou entre os eleitos. Certamente detalhes passaram despercebidos no trajeto e serão resgatados por outros leitores. De toda forma, a viagem proposta valeu o turismo literário.

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Turismo para cegos, de Tércia Montenegro (Companhia das Letras, 224 págs.)

Avaliação: _pena-01 [bom]

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Eduardo Sabino é escritor, editor e jornalista, autor do livro Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias (Editora Novo Século, 2009).  Mantém o blog “Solo Insólito” no endereço eduardosabino.com. É colunista da São Paulo Review

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