Leia diário de viagem da escritora e editora Viviane Ka, que foi para Grécia para uma residência literária.

Parte 2 do Diário de Bordo

10/07

Comecei a desenvolver o livro já com um título que tem um significado muito forte para mim, dentro da experiência que estou vivendo. O título é uma frase que o dono do mercadinho disse, mal sabe ele. A história de terror que ele me propôs escrever,estará dentro do livro.

 

De repente me toquei de algo que mudou toda a minha perspectiva de escrita.

Me toquei na visita a uma antiga tobacco house num sábado de sol que saí para explorar o old town.  Kavala teve seus tempos áureos, no século 19 foi a grande produtora e exportadora de tabaco para os Balcãs (agora as fábricas não funcionam mais).  Um perfume de madeira e sândalo paira no ar.

As tobacco houses estão espalhadas pela cidade e são casas abandonadas, de estilo industrial, paredes de pedra, habitadas por milhares de gatos. Uma delas é o Museu do Tabaco

 

Na lojinha do museu escolhi alguma coisa para levar de lembrança, um sabonete de tabaco. Mas a recepcionista do museu disse: wait e me mostrou uma vela cheirosa que continha todo aquele aroma que eu sentia flutuando no ar de Kavala e me explicou que à medida que ia derretendo ia brotando um óleo, que poderia servir de massagem ou para passar na pele. Sinta e ela enfiou a vela debaixo do meu nariz. Eu não ouvi o que ela disse. Não senti o aroma. Eu tinha decidido pelo sabonete muito antes de saber da existência de outra opção. É assim que a ansiedade funciona. Visitei o museu e saí. Já na rua, num calor de 35 graus, percebi que a vela era importante. Que era maravilhosa. Que era essencial para aprisionar a memória sensorial que o olfato desperta. Voltei correndo a tempo de ver a secretária trancar a pesada porta de madeira e virar a esquina. Eu nunca mais voltaria naquele lugar e a possibilidade de ter a vela extinguiu-se para sempre.

 

Percebi então que eu tinha que mudar minha atitude de escrita. Eu tinha que OUVIR o que as pessoas tinham para me dizer, sem pressa. Eu tinha que simplesmente parar o processo de antecipação. Só assim eu teria muito material poético. Foi assim que o livro começou a crescer e tomar forma. Saí de mim e mergulhei nos sussurros que navegavam à minha volta, me envolvendo em ondas. A noite caía e uma luinha despertou. Parei em uma taberna para experimentar um vinho vulcânico de gosto salgado e escrevi em meu caderninho sobre as histórias que Christina, minha companheira americana de residência me contou.

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Viviane Ka é escritora e está em residência artística em Kavala, Grécia em Eutopia Art Residency.

 

 

 

 

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