A estação dos sonhos

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Por Mariana Portella *

As luzes da praça continuavam acesas. O vento súbito, o ruído da moto, certas cores gritantes, nada conseguia demovê-la naquela primeira manhã. Parecia hipnotizada. Cruzou com um colega de trabalho e nem sequer se deu conta. Alguns metros depois balbuciou um leve e inútil cumprimento, como quem busca compensar a distração.

Sabe doutor, aqui estão, nesse pequeno pacote, os grandes sonhos que pude reunir em duas ou três noites de vigília cívica. Eu sempre imaginei que o meu País seria um dia uma nação. Uma senhora nação. Hoje sou menos crédula. E sinto uma dificuldade enorme de sonhar. Quem sabe o sr. não me restitui essa esperança, que já me alimentou por tantos anos?

Agora sou obrigada a acordar cedo. Às sete horas. O analista só me conseguiu este horário, depois de muita espera. O pior é que a esta hora, eu estou em pleno sonho. Como interromper, e correr o risco de chegar ao consultório de mãos, ou melhor de cuca vazia? Aos poucos vou acostumando. Vale a pena. Volto em seguida e durmo até o meio-dia. Quase sempre reponho a tempo o estoque dessas lembranças refugiadas.

Outro dia atravessei o Largo do Machado a jato, a bolsa nervosamente apertada contra o peito, como se protegesse uns breves murmúrios, talvez algumas ressonâncias partidas. Ah! o meu analista! Nem posso imaginar um atropelamento, todos esses segredos expostos à visitação pública; a minha intimidade devassada, perdido o penoso trabalho de seleção do abandono.

Você sonha?

Eu não. Eu ronco.

Que estúpido!

O meu analista disse que o sonho é hoje a realidade de ontem. Sacou? A realidade, cara, a realidade! Minha irmã quis me encucar, com a gracinha de que os sonhos são alucinações. Que cretina. Também o que ela ouviu, vou te contar.

Jogaram uma bomba no calçadão. Era cedo, e não havia ninguém.

Que sorte.

Que sorte, não. Que pena.

O meu analista é quem tem razão. Você já reparou como o pessoal anda chato? Levaram tão a sério o anúncio da caderneta de poupança, que resolveram poupar o sonho. E francamente o sonho é um negócio que não dá para poupar. Ah! o meu analista!

O único cara que merece ser ouvido é o meu analista. Pena que ele quase não fala.

*

Mariana Portella é mestra e doutora em Comunicação e Cultura. Acaba de lançar o seu primeiro romance, O outro lado da sombra (Rocco)