* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Relato de um viajante LGBT+ à Capadócia na Turquia – PARTE II

Quando o avião tocou o chão de Istambul, o homem dos olhos de esmeraldas tomou seu destino e sumiu pela porta de saída do aeroporto. Eu, sistematicamente durante nossa conversa, o fui decepcionando. Ao saber que eu era casado, torceu o lábio para o lado num claro gesto de desapontamento ou reprovação. Quando lhe disse que não morava em Paris, baixou o olhar desconsolado. E a derradeira queda na expressão foi ao saber que muito menos tinha um “pequeno apartamento” para receber um amigo íntimo nas visitas recorrentes de trabalho  que a profissão de engenheiro o levava a fazer na capital francesa. Claramente eu entendi que havia deixado de ser seu alvo. Rapidamente, aqueles pares de esmeraldas que me fitavam ficaram desinteressadas e me deixaram em paz.

O que eu estava mais preocupado, na verdade, era em pegar meu voo de conexão para a cidade de Kayseri na região da Capadócia. De lá eu ainda teria que pegar um ônibus para a cidade de Goreme onde eu ficaria hospedado, pois era a mais próxima do congresso que participaria. Eu só tinha uma hora para atravessar aquele aeroporto enorme até o outro portão, ainda havia a imigração turca para passar, entrar definitivamente no país, e finalmente pegar minha conexão, era uma tensão…

Eu nunca havia ficado tão tenso para passar em uma imigração, nem mesmo nas vezes que viajei para os EUA, onde o interrogatório é de praxe para qualquer pessoa, eu ficava tão ansioso. Lembro em uma das vezes que cheguei ao aeroporto de Miami, e eu estava com meu ex marido que era norte-americano e já havia passado pela imigração através do portão dedicado aos cidadãos do país, e me peguei em um bate boca com o policial que havia me perguntado com quem eu estava e o que fazia depois que eu havia dito que estava indo passar as festas de final do ano com a família do meu marido (husband – em inglês) em New Jersey e ele insistia em querer me corrigir que não era marido mas esposa (wife – em inglês) e eu insistindo que era marido. Eu não estava confuso e muito menos pronunciando errado. As duas palavras em inglês são completamente diferentes e não havia confusão. A pendenga só terminou quando mostrei a nossa foto no celular e ele recuou, mas não foi porque entendeu e sim porque viu que ali poderia ocorrer um problema muito maior, nos EUA não se brinca com essas coisas, pelo menos isso.

A tensão ali em Istambul era completamente diferente, a brincadeira não seria brincadeira e a coisa poderia ficar muito séria. Os gatilhos estavam disparados. O que poderiam me perguntar? E se percebessem meu jeito? E se a implicância já começasse ali? Eu já estava em território turco e nada poderia ser feito além de enfrentar a situação da melhor forma possível. O calor estava terrível e pelo jeito o ar condicionado não estava dando conta. Eu andei apressado pelo aeroporto e cheguei na fila da imigração derretido, pingando suor. Eu não sabia se era só calor ou ansiedade ou ambos, vestia uma camiseta de algodão preta e por cima uma camisa de manga comprida a qual arranquei porque estava fervendo de calor. Passou um, dois, três sujeitos na minha frente rapidamente pelo posto policial da imigração. Chegou a minha vez e passei tranquilamente como os outros. Fui invadido por um alívio ridículo que me gelou dos pés a cabeça, a sensação da queda repentina de adrenalina pelo corpo é como se fosse um banho de gelo seco. Ridículo. Por que eu tinha de me sentir daquela forma? Eu não estava fazendo nada de errado! Eu estava chegando no país para trabalhar, para participar de um congresso internacional e fazer meu trabalho honestamente. Por que eu estava sentindo aquilo? Não era justo comigo. Eu só lembrei de pegar o telefone e ligar para meu marido que estava na França para avisar que já estava em Istambul e estava tudo bem. Ouvir a voz dele naquele momento foi muito importante. No grupo da família eu logo avisei que estava prestes a tomar a conexão para Kayseri e que tudo estava bem, para eles eu evitei passar qualquer tensão do outro lado do mundo.

Ao chegar no aeroporto de Kayseri eu ainda tinha uma viagem de ônibus por mais quase uma hora até chegar ao meu destino que era a cidade de Goreme. Com a bexiga apertada, fui ao banheiro do aeroporto e em uma das portas estava escrito numa daquelas pichações típicas de banheiros públicos de qualquer lugar do mundo, em inglês, e em tinta branca como daquelas tintas que usávamos na escola para apagar coisas escritas à caneta: “Morte as bichas!”. Haviam outros escritos em língua turca, acredito, que não tenho capacidade de traduzir por nem saber o que possam dizer. Porém, me chamou a atenção por estar escrito em inglês afinal, na Turquia assim como no Brasil e na França, mesmo em espaços de turismo a comunicação é, digamos, complexa mas não é o caso aqui. Ninguém é obrigado a saber outra língua a não ser a sua língua-mãe. Aprender outra língua ainda mais a inglesa é um esforço antes de mais nada social e econômico. Uma pessoa que decide aprender língua inglesa, por exemplo, vai precisar investir uma quantia financeira razoável e precisa ter um aparato social e doméstico importante para conseguir se dedicar ao aprendizado da língua e sabemos que os governos não oferecem qualquer incentivo para que a população possa se dedicar a esse aprendizado. O aprendizado de língua inglesa na Turquia, como estratégia social e econômica devido a grande roda do turismo que é a base econômica do país, é tão negligenciado como nos nossos países da América latina, por exemplo, o nosso Brasil. Levanto ainda uma hipótese que essa questão pode ser ainda mais de cunho político para evitar o acesso da população a outras informações que possam levar a uma crítica do sistema governamental autoritário. O acesso a outras línguas dá acesso a outras ideias, ideias perigosas que podem levar a uma reivindicação de liberdade. Livros não traduzidos de uma língua original, por exemplo inglês ou francês, para a língua turca não permite que as ideias cheguem lá. Sobre esse acesso a outras línguas, outros saberes e culturas voltarei ao assunto no próximo capítulo pois tem muito a ver com os encontros que tive no congresso.

Voltando ao ‘escrito’ no banheiro. O estranhamento que eu tive em me deparar com a ameaça escrita em língua inglesa em um aeroporto era porque era destinado para além das pessoas turcas.. Os outros escritos ali poderiam ser a mesma coisa ou pior mas, como não sei nem dar bom dia na língua turca, sou incapaz de saber. O em língua inglesa tinha um destino certo: o estrangeiro que estava chegando no país. Vou ser mais certeiro: o estrangeiro, homem, gay e ocidental que ousa  pisar naquelas terras. Ora, o escrito não estava na praça pública, em um restaurante ou em um bar-café. Estava dentro de um banheiro público em que a intimidade masculina está explícita e desnudada.

A recepção era clara aos turistas ocidentais.  A questão polêmica da ocidentalização é um tema quente e importante na Turquia. A obra literária do escritor turco ganhador do prêmio Nobel de 2006, Orhan Pamuk [1952-] é transversalmente permeada desse conflito político-cultural na Turquia entre manter a cultura tradicional do oriente e a abertura da ocidentalização a partir da queda do império otomano e levante da república turca no início do século XX. A Turquia vive essa contradição entre orientalismo e ocidentalismo cultural que deságua em uma crise republicana com a queda da união soviética. Os tradicionalistas, já nos nossos tempos, tomam a pauta dos direitos LGBT+ como parte desse problema. Para eles, o “movimento gay” vem das ideias do ocidente para corromper as tradições do mundo, religião e cultura mulçumana e toda e qualquer ideia defendida dessa perspectiva deve ser combatida. Nessa cegueira fundamentalista temos situações embaraçosas para dizer o mínimo quiçá até cômicas se não fossem trágicas, recentemente o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, na reunião da ONU fez críticas as cores estampadas no salão da conferência acreditando que o colorido era em referência a bandeira LGBT, quando na verdade a multiplicidade colorida representa as dezessete cores do desenvolvimento sustentável. Patético.

Logo na saída do aeroporto de Kayseri fui procurar o rapaz que me levaria para outra cidade em mais uma viagem de quase uma hora de ônibus. Havia um grupo grande de rapazes com cartazes nas mãos esperando os passageiros que chegavam. Não entendi o que estava acontecendo, mas dois rapazes começaram a discutir entre si de forma acalorada. Um gritava com o outro e eu não entendia nada, logo virou uma confusão generalizada entre eles quase chegando em agressão física! Alguns tentavam separar enquanto outros incitavam a briga. Um empurra-empurra daqueles parecidos com os de estádios de futebol no Brasil e, em meio aos gritos, na maior naturalidade, o rapaz que me aguardava com uma plaquinha escrita com meu nome completo me achou perdido em meio ao tumulto. Passamos entre a nuvem de confusão daquele monte de homens e ele me perguntando se eu tinha feito uma boa viagem e eu só me preocupando em passar logo e desviar de algum possível soco perdido. No micro-ônibus eu perguntei para ele o que havia acontecido para aquela confusão ter se instalado e ele só me disse: “Ah, é o jeito dos rapazes daqui: são como cavalos bravos”.

Eu cheguei no hotel, peguei as chaves do quarto e desmaiei na cama de cansaço, dormi com a janela aberta mesmo. Acordei a primeira vez no meio da noite com o som de uma voz no auto falante, um homem entoando uma prece, conclamando todos  para a prece na mesquita. Eu estava em um hotel no topo duma colina que dava uma visão panorâmica para toda cidade de Goreme. Da janela do quarto eu conseguia ver a madrugada da cidade, com as luzes acessas nos telhados das casas, tendo o silêncio quebrado por aquele canto alto e melancólico o qual depois,  uma pessoa que entende a língua explicou ser um chamado para deus.

Fiquei ali admirando aquele som com os olhos fechados por alguns minutos e sentindo aquele lamento. Confesso que uma das coisas que mais me emociona na vida são expressões de fé. A ligação humana, da carne com o místico, o invisível e o incompreensível – seja ele qual for – me toca. Aquele canto mulçumano tinha algo puro que só a fé no sagrado nos faz sentir. Solitário, de algumas poucas palavras, não assustava mas acalentava. No fundo qualquer manifestação divina é para embalar a alma e eu senti ali, novamente, o afeto verdadeiro que já havia sentido outras vezes dos meus amigos mulçumanos. Os rapazes muçulmanos que tenho conhecido na amizade no meu tempo de vida na França tem essa doçura afetuosa, misteriosa e melancólica no olhar e na vida igual ao tom do lamento que cortava aquela madrugada. Muitos passam por sofrimentos terríveis do refúgio e ainda fogem de condições culturais opressivas em suas  comunidades. Eles não são como cavalos bravos, mas sim assustados. De alguma forma estava pairando naquele ar um afeto verdadeiro e de expressão do amor que existe na fé islâmica que pouco penetramos do nosso lado ocidental devido a carga histórica e pejorativa da religião como nos é apresentada.

Voltei a dormir. Eu sonhava que eu estava em um campo cercado por cavalos lindos, fortes e imponentes. Uns corriam e outros galopavam relinchando e baforando fumaça do nariz. Agitados, os cavalos do meu sonho, pareciam querer fugir de um campo cercado. Inteligentes, os cavalos do meu sonho pareciam organizados para arrebentar a cerca que os limitavam. Acordei, novamente com esse barulho que pareciam esse bufar dos cavalos pelo lado de fora na rua. O sol começava a transformar a escuridão da noite em um céu laranja claro. Abri as cortinas brancas que esvoaçavam e descobri que o barulho que era similar ao bufar dos cavalos no meu sonho vinha dos balões os quais,  feito enormes bolhas de sabão, aos montes, subiam no céu de Goreme. Balões de várias cores, tingiam o céu da Capadócia que amanhecia alaranjado. Foi uma das cenas mais lindas e poéticas que já vi até agora na vida. Eu senti uma calma imensa dentro de mim pela primeira vez em dias. A beleza daquela cena produziu uma poesia viva, havia substituído em menos de 24 horas o horror da ansiedade que eu vinha sentindo até ali. Como toda essa situação tinha sido capaz de me produzir sentimentos e sensações tão contraditórios daquela forma? O preconceito deixa marcas terríveis nas nossas percepções do mundo…

Eu não consegui dormir mais. Trabalhei um pouco no computador. Tomei um banho. Não era ainda dia de início do congresso e eu estava destruído da viagem longa e do calor escaldante que fazia na região da Capadócia batendo quase 40 graus. Mal comi coisas no café da manhã do hotel e voltei a dormir. Segui as recomendações do dono do hotel que esperasse até umas 15 ou 16 horas para sair para andar pela cidade quando o sol já estivesse mais ameno. Nesse horário decidi sair para almoçar. Ao contrário da noite, que só tinha o silêncio rasgado pela prece da mesquita, o dia era bem barulhento. A cidade de Goreme fervia de turistas e eu tinha que sair e enfrentar o dia, tinha que ver o que se passava. Eu precisava andar naquelas ruas e saber se ainda refletiam a calma e o abraço do amanhecer alaranjado com as bolhas de sabão gigantes preenchendo o céu.

Eu estava faminto e queria comer algum prato típico turco. Era muita informação na rua. Lojas com muitas coisas vendendo. Coisas coloridas. Muita gente na rua andando em todos os sentidos. Há muitos turistas de todas as partes do mundo num grande movimento. Eu encontrei um restaurante que achei simpático, com uma sacada enorme e bem ventilada. Eu estava de óculos escuros e não enxergo as coisas muito de longe. Quando cheguei na porta fui abordado por um rapaz que trabalhava ali, um pouco mais baixo que eu, forte e barbudo, dois olhos amendoados, castanhos escuros cuidados por cílios grossos e compridos. Simpático, foi me apresentando o menu do restaurante e oferecendo o prato típico do dia. Aceitei sem questionar, confiei na recomendação. Enquanto esperava a comida chegar ele ficou ali ao lado da minha mesa puxando assunto. Tentou ensaiar umas palavras em espanhol, pois quando eu disse que eu era brasileiro, ele achou que eu falava espanhol. Corrigi e ele ensaiou algo em português como “tudo bem; obrigado; samba; caipirinha”. Dei risada com a forma como ele tentava buscar algumas palavras que conhecia em português. “Você tem um sorriso bonito”, disse ele, em inglês, sem cortes. Fiquei desconsertado e a primeira reação que eu tive foi tirar os óculos escuros e os pendurar na camiseta. “E tem os olhos bonitos também”, continuou me encarando e piscou…

A comida chegou na hora. Ainda bem porque eu não estava sabendo lidar com a situação. Um prato com frango, cuscuz e vegetais grelhados tudo na brasa. Tudo isso acompanhado com pasta de grão de bico, coalhada e um molho de pimenta. Enfiei na pressa um pedaço imenso da pimenta chamuscada na boca e quase virei o dragão inimigo de São Jorge da Capadócia cuspindo fogo. Eu não sei se aquela forma de tratamento era cultural ou não, não queria criar qualquer situação complicada ali. Ele voltou para a porta do restaurante para recepcionar os clientes, mas manteve os olhos na minha direção até eu ir embora. Na primeira oportunidade voltou à mesa e me ofereceu um café turco, disse que era oferta da casa. Eu não gosto de café turco, mas quando eu vi estava tomando duas xícaras… Na hora de ir embora fez questão de perguntar o meu nome e se apresentou como ‘Aslan’. Disse para eu voltar ao restaurante e piscou novamente. Eu voltei outras vezes naquele restaurante nos dias seguintes com amigos que me acompanhavam no congresso. Eu não comentei nada com meus amigos sobre, mas acho que perceberam. Ele, ao me ver chegando com os colegas, abriu sorriso. Ele estava lá e a simpatia exagerada era sempre comigo o que foi notado inclusive pelos colegas, que são heteros, e que me acompanhavam.

Outra situação pitoresca foi na barraca de sorvete de massa em uma das ruas do centro de Goreme. Um rapaz que vendia sorvete de massa (uma massa de sorvete mais densa e gordurosa da que estamos acostumados) que passava o dia gritando “IceeeeCreeeeaaam!” para todos que passavam. Um dia à noite, voltando do jantar com um dos colegas (do mesmo restaurante relatado), paramos em um pequeno mercado ao lado da barraca de sorvete dele para comprar água. Meu colega entrou no mercado e eu fiquei na porta. Ele não hesitou em piscar para mim e me chamar para conversar, perguntou meu nome e de onde eu era, me elogiou e ofereceu um pouco de sorvete de chocolate em uma colherzinha. Quando fui embora,  sorriu e piscou novamente e assim foi  em todas as vezes que passei por ali. Os colegas já brincavam: “teu crush do sorvete tá lá”. Eu comentei com meus colegas o meu espanto de como os rapazes eram direto nas investidas. Posteriormente, conversando com uma amiga turca, ao retornar para França, sobre essas impressões e ela trouxe uma análise bem interessante. Segundo ela, a região da Capadócia tem leis fortes de proteção ambiental e urbana o que torna a região uma bolha de refúgio para pessoas “cool” no país. Soma-se a isso a Capadócia ser um destino de muitos turistas estrangeiros para a Turquia o que torna o ambiente mais “liberal”. A tolerância nessa região tem um forte apelo econômico em um país em profunda crise econômica, política e social. Maltratar um turista pode causar um mal estar e afugentar mais turistas de uma região que vive basicamente de turismo. Dessa forma, torna o clima de maior “liberdade” e “conforto” para um homem gay. Mas, não é bem assim… não há lugares (bares, boates) LGBT+ na região. Um dia quase enfartei o rapaz do hotel quando perguntei se havia banho turco gay na cidade, se fez de desentendido em inglês, francês, italiano e português que também falava. O aplicativo Grindr não funciona e é proibido no país. Há muitos casos de turistas desavisados que conseguem, via truques cibernéticos, abrir o aplicativo na Turquia e podem acabar caindo em armadilhas de homofóbicos e outros fundamentalistas e sofrer violências físicas e psicológicas sérias. Então, a paquera direta e tradicional dos rapazes está explicada: a repressão e proibição fazia encontrar outros caminhos para viver os afetos. O desejo dos rapazes era como uma massa pressionada por uma mão de força implacável, mas que escapava, deliberadamente e sem controle, entre os dedos…a resistência política tem caminhos lindos de se fazer presente.

No dia seguinte começou o congresso. Um calor tremendo e sem ar condicionado nas salas de apresentação da universidade. Aliás, uma arquitetura lindíssima da universidade entre o antigo bizantino e o moderno. Assustador, por sinal, foi ver policiais fortemente armados no portão da universidade perguntando aos carros que entravam qual era o destino. Nunca havia visto isso em uma universidade, parecia que estávamos entrando em um território de perigo, na verdade, uma universidade sempre é um lugar de perigo. Cheguei esbaforido na recepção do congresso e sai desembestado para procurar a sala de apresentação. Eu tinha uma apresentação logo no primeiro dia e, na sala onde seria a apresentação, havia um jovem rapaz que estava trabalhando na organização do evento. Estava completamente atrapalhado para colocar as apresentações dos palestrantes no computador. Não tinha internet, ele não sabia a senha, não conseguia rotear a dele, ele no nervosismo gaguejava e não conseguíamos entender o que ele dizia em inglês. Enfim, uma confusão danada entre pessoas de várias línguas diferentes tentando se comunicar em inglês para algo simples e sendo que já havíamos enviado a apresentação em power point antes e outra coisa que notei por lá: conexão com internet é problemática em vários lugares além de bem cara. Até que finalmente um dos palestrantes dos EUA roteou a internet dele do celular para que mandássemos a nossa apresentação para o e-mail particular do rapaz. Depois de alguns minutos de atraso, o rapaz conseguiu colocar as apresentações dos outros palestrantes no computador. Era a minha vez de colocar a minha apresentação no bendito computador e eu não entendia o e-mail dele onde tentava soletrar para mim. Ele gaguejava nervoso em inglês, eu não entendia, eu queria sumir de pavor. Como estava aquela confusão da internet eu também, claro, não conseguia conectar no meu computador. Ninguém entendia nada e ainda juntou a confusão com as tecnologias pirotécnicas da maldita lousa digital que não sei para que servem além de causar ansiedade na gente. Eu comecei a ficar um pouco apavorado com aquela atrapalhação toda dele e uma colega palestrante da Bélgica surgiu milagrosamente no meio do tumulto com um pen-drive que me emprestou para eu passar minha apresentação. Irritado, eu estendi a mão com o pen-drive para o rapaz que automaticamente bateu os olhos na minha tatuagem no braço. Eu não sei explicar, mas a física quântica explica, que foram poucos segundos, mas a sensação foi que passaram décadas de tempo ali naquela fração de tempo em que ele olhou a minha tatuagem, arregalou os olhos, os subiu para mim, fitou os meus olhos e sorriu sem malícia, mas aquele sorriso de uma criança que encontrou algo. Só quem é LGBT sabe o que estou dizendo e a tatuagem fez seu serviço de sempre: falou sem palavras. A sala estava com uma quantidade razoável de pessoas. Eu estava um pouco nervoso, era minha primeira fala no congresso e eu tinha apenas vinte minutos para apresentar algo sintético, objetivo e em uma língua que não é a minha materna para uma audiência crítica e interessada no que estava para ser dito. Por mais experiência que eu tenha com essas situações, é sempre uma exposição que me tira do eixo. Eu não sei porque, e só fui entender dias depois quando já havia voltado para casa na França, eu fiz a minha fala naquela sala com uma plateia que eu não enxerguei, mas eu só enxerguei aquele rapaz que ficou ali assistindo e balançando a cabeça positivamente para cada coisa que eu dizia.

No dia seguinte pela manhã, desci do táxi na porta do prédio do evento do congresso e enquanto esperávamos os outros colegas o rapaz estudante do dia anterior estava ali, em um canto fumando. Ele me chamou, estava mais calmo, não gaguejava e falou em um inglês muito bom que havia gostado do trabalho. Eu estava numa curiosidade imensa para saber mais sobre ele, sempre tenho dessas de querer saber o porquê das pessoas. Fui logo colocando um bocado de questões. Ele estava interessado em conversar e me disse que era estudante de graduação de matemática na universidade e que estava muito feliz de estar trabalhando ali. Que era um trabalho voluntário e muitos dos estudantes viram a oportunidade para participar, assistir às palestras do congresso e conhecer pessoas de outras partes do mundo. Meu senso de detetive me deixava inquieto e eu queria mais e eu sabia, desde o dia anterior, que eu ali estava a beira de puxar um fio… Nem precisei puxar o fio, ele se puxou sozinho: “Você trabalha com questões de sexualidade, não é?”, perguntou ele timidamente e jogando a bituca de cigarro na grama. “Eu tenho mais alguns amigos que são estudantes e interessados nessas questões e estão trabalhando aqui no congresso. Eu falei de você ontem para eles… Você conversaria conosco? Só que tem que ser discreto…”.

Se a parada do orgulho LGBT+ é proibida na Turquia, imagina temáticas de LGBT+ em educação… “Veja com eles um momento e um lugar que conversamos sobre”, respondi. Da mesma forma impulsiva que decidi ir para o congresso da Turquia eu aceitei falar com os estudantes e fiquei “num pé no outro” e a minha ansiedade agora era saber quando e onde eu poderia conversar com os estudantes, o que queriam falar, o que iríamos conversar…

No dia seguinte, eu fui almoçar sozinho no refeitório. Eu havia me atrasado para o almoço, pois havia ficado de papo com uma pesquisadora no final da palestra dela. O refeitório era enorme e cheio de mesas enormes, como era final de almoço eu estava sozinho em uma mesa de um canto e já havia acabado de almoçar, estava mexendo no celular e naqueles minutos, quando a comida está chegando no duodeno, eu só vi um vulto ao meu lado que vinha tirar o prato da mesa. Era ele, o rapaz. Ele estava trabalhando, agora, auxiliando no refeitório. “Professor, pode ser agora? Os rapazes estão aqui”, disse ele.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com