* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

  1.           Uma noite com um Sócrates

“Você pode sentir mais preconceito aqui dentro do que lá fora, por exemplo…”, me disse Nico, um médico na casa dos cinquenta anos e que mora na ilha de Creta em Atenas, Grécia. O conheci por lá na noite que passei na cidade na minha volta da Turquia para França. Na ocasião, estávamos em um bar-restaurante LGBT+ no centro de Atenas quando puxei esse assunto com ele. Eu não conseguia me desconectar da curiosidade e queria entender um pouco sobre o cotidiano LGBT+ na Grécia mesmo que minha passagem fosse rápida. “Eu posso passar meses sem perceber um olhar estranho de algumas pessoas na rua, mas aqui dentro, eu vou ser rejeitado a cada 5 minutos por ser um homem acima dos 40 anos, por não ter o corpo escultural, por ter cabelos brancos, por não ser isso ou aquilo”, continuou ele, “A nossa comunidade LGBT pode ser tão mais cruel em preconceito quanto a sociedade ali fora”, retificou ele. “E olha que estamos nas terras do ‘Banquete’ do nosso eterno Sócrates, meu caro”, finalizou Nico vertendo prazerosamente uma dose generosa de Ouzo – uma bebida de anis – como se bebesse cicuta em uma cena de despedida. O clima naquele bar-restaurante LGBT+ de Atenas era de uma festa de noite de verão. A felicidade transbordava em todos os rapazes ali. Se beijavam, bebiam, dançavam, festejavam. Entravam e saiam do local com naturalidade de mãos dadas e abraçados. Era uma noite de verão muito quente e a cidade estava borbulhando. “Há tranquilidade para a gente curtir a noite e a vida em Atenas”, disse Nico quando perguntei sobre segurança no país, “Não se censure em Atenas”, completou. Ali, a preocupação que transparecia naqueles rapazes era só se divertir. Era nítida a tranquilidade nos comportamentos naquele local e nas ruas ao redor. Os corpos estavam soltos, livres de certa maneira. Diferentemente da Turquia, a Grécia mantinha um pouco mais de liberdades e direitos para a população LGBT+ e eu não conseguia deixar de lado as lembranças de poucos dias atrás quando eu estava conversando com os rapazes turcos quase em segredo atrás de um biombo…

De madrugada, a caminho para o aeroporto em Atenas, parei para admirar a Acrópole – iluminada e imponente no meio da cidade. Ali diante daquele monumento cravado em uma colina, testemunha milenar de levantes e quedas de civilizações repassei toda a conversa que havia tido com aquele homem grego. De alguma maneira Nico não estava de todo errado. O preconceito tem várias camadas, de alguma maneira vamos lidar com uma das facetas do ódio alheio. Todos os dias recebemos um lote grande de informações e no meio delas, está como a nossa estética deve ser, como nosso modo de agir deve seguir ou seja, além das defesas cotidianas que precisamos ter para sustentar nossa existência na sociedade, nós ainda precisamos ter forças para defender nossa existência dentro da própria comunidade. A questão trazida naquela conversa já tinha uma outra dimensão, já não era a mesma que eu havia experimentado até horas antes na Turquia. Os rapazes gregos poderiam se considerar vitoriosos e numa felicidade plena pois já haviam conquistado alguns direitos sociais e políticos em relação aos rapazes turcos, mas com certeza sofriam uma outra dimensão de preconceito como apontado pelo colega Nico. De um lado os rapazes turcos me contaram sobre o preconceito na vida pública, do outro os rapazes gregos me falaram do preconceito na vida privada. A única coisa que nos resta é aprender a nos defender para não sentir a dor do ódio ao ponto dela nos paralisar e não conseguirmos combatê-lo.

 

  1.         Aula de gramática

No momento que eu começo a escrever esse texto já passávamos mais de um ano da guerra da Ucrânia; uma semana da chacina dos três médicos na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro; dois ataques sangrentos e com mortes de estudantes a escolas no Brasil; já 48 horas da guerra entre Israel e o grupo Hamas; e as mesmas 48 horas de um terremoto enorme que devastou o Afeganistão. Eu comecei a escrever em uma noite após voltar da aula de francês. Eu estudo francês em uma escola para estrangeiros na cidade onde moro na França. Proposta de educação linguística e cultural tradicional. Eu realmente gosto muito de ir às aulas todas as semanas. Além da língua há muita discussão sobre cultura francofônica. É um momento da semana quando converso  sobre os clássicos da literatura, os programas de bobagens e engraçados na TV francesa com outras pessoas estrangeiras. A grande maioria da turma está em situação de refúgio de guerra ou de perseguição política no seu país de origem. Poucos, como eu, fizeram o processo de imigração por uma escolha pessoal e profissional. Geralmente os encontros entre nós são divertidos porém, naquele dia de aula, o clima estava tenso. Na minha turma há  ucranianos, russos, israelenses, algerianos, palestinos, afegãos, congoleses, camaroneses, indianos, italianos e turcos. Diferente dos outros dias, que era um falatório altíssimo e alegre com diversos sotaques de francês no encontro antes da aula, naquele dia imperava um silêncio melancólico. Claro que a professora francesa percebeu. “Está tudo bem com vocês?”, perguntou ela efusiva. O silêncio continuou. “Cansados do dia de trabalho?”, continuou ela tentando animar a turma, como se a vida do estrangeiro fosse só o trabalho duro, sem qualquer resposta de interação. O irônico era que ninguém queria falar em uma aula de língua quando para todo mundo é importante falar. “Bom, então vamos continuar nossa aula de gramática”, finalizou distribuindo uma folha imensa de exercícios, com frases aleatórias e descontextualizadas para praticar a gramática. 

 

III.        Por que escrevi sobre uma viagem à Turquia?

Essa não foi a pergunta mais frequente que recebi durante a escrita e publicações dos primeiros três textos da série, porém foi a que mais me tocou. Ela veio acompanhada de uma provocação de “porque o relato de viagem de um homem cis, branco a um outro país pode ser tão mais importante que os relatos dos problemas reais do Brasil?”. Num Primeiro momento é fácil aderir a esse argumento porque ele é realmente sensível, mas ele não dura mais que a velocidade da luz. É preciso perceber que as opressões em um determinado canto do mundo estão intimamente ligadas às opressões nossas no Brasil. Todas falam da busca por liberdades e direitos humanos. Escrever observando os medos, as injustiças e as injustiças, as liberdades e as não liberdades, a experiência no mundo é uma forma de denúncia das opressões das populações LGBT+ que ainda seguem acontecendo em todas as partes do mundo. As perseguições e opressões as populações LGBT+ tocam todas as camadas interseccionais e elas são reais. Na busca por justiça social, não podemos cair no jogo das injustiças de que há existências que valem mais do que outras. Evocando Judith Butler: todos os corpos importam! Ou pessoas integrantes da população LGBT+ que são condenadas e mortas em países verdadeiramente autoritários não são nossas irmãs? Perto de realidades como a da Turquia, o Brasil é um paraíso (palavra usada com doses de ironia) para a população LGBT+. Por outro lado, estivemos à beira da tragédia política, em especial, para a comunidade LGBT+ no ex (des)governo de Jair Bolsonaro. Dias atrás houve uma votação de políticos brasileiros, na calada da noite, para reverter direitos conquistados por nós como o casamento igualitário. Nos EUA, país que faz uma auto propaganda enorme de ser uma nação que defende as liberdades individuais, há estados proibindo a apresentação artística de drag queen e buscando outras formas de repressão. Na Itália o governo de extrema-direita de Giorgia Meloni deslegitimou a formação de dezenas de famílias homoafetivas e continua a perseguir a comunidade pelo país. Na França há o fantasma permanente da chegada de Marine Le Pen à presidência da república nas próximas eleições armada com o discurso anti-LGBT+ (que chama de wokismo) e xenofobico. Em diversos países do continente africano, por exemplo em Uganda, pessoas LGBT+ estão sendo perseguidas e mortas cotidianamente. Anos atrás, a Turquia, era um dos oásis de liberdades para as populações LGBT+ no oriente médio. Hoje é um drama ao ponto de ter paradas do orgulho proibidas e militantes presos como criminosos por meses. Tudo isso sob os olhos cegos de organizações internacionais. Política é coisa séria e é tão vital quanto fazer exercícios na academia, tomar água e se alimentar. Um sopro de ventos tortos e as coisas podem mudar seriamente para pior. Trazer e discutir experiências é manter as realidades vivas, é construir museus de imaginários para acesso público. É fazer valer os direitos humanos. Quando falamos sobre a luta por direitos civis e humanos é preciso ampliar as experiências para além da estética apenas do homem gay, branco, cis e padrão que dá a palestrinha anual de diversidade e inclusão usando linguagem neutra no mês do orgulho na firma ou do grupinho poliamor, que discute Foucault, de classe média e desconstruída dos bairros descolados das capitais. A luta por direitos humanos é multicultural, multilinguística e tem múltiplas estéticas. Qualquer caso de censura e impedimento de liberdades de existências está fortemente ligado na mesma luta: fazer valer os direitos humanos. Ou o caso das mães e casais lésbicas italianas é mais importante que o caso das mulheres lésbicas perseguidas e condenadas à morte em Uganda? Uma só pessoa LGBT+ que não tenha sua liberdade de existência e seus direitos respeitados deve despertar indignação. Estamos todos ligados na mesma luta ou não estamos? 

Escrever sobre a experiência em solo turco me foi o modelo de um convite à discussão que trago: a nossa batalha está realmente ganha ao ponto de ignorarmos a nossa irmandade pelo mundo?

 

  1.       Última cena

Meu voo de Atenas a Paris chegou bem cedo. Eu passaria aquele dia na cidade antes e voltaria para casa no dia seguinte. Antes de ir para casa de um amigo que iria me receber para hospedagem em uma região fora de Paris, saí para almoçar na cidade luz. Desci do trem RER na estação do Chatelet – a região que mais gosto de Paris. A estação estava lotada e aquela confusão de gente apressada vindo de todas as direções me deixou um pouco perdido. Demorei um pouco para me localizar nas inúmeras opções de saída da estação. Errar uma entrada ou saída de estação no metrô de Paris vai custar depois umas boas pernadas para recuperar o caminho certo. Eu estava cansado, com sono e não estava querendo mais perder tempo andando perdido na estação puxando mala e com mochila nas costas. Ao passar perto de uma pilastra, próximo a um misto de loja de guloseimas e café localizada dentro da estação, vi um rapaz de uns vinte e poucos anos, não tão alto quanto a mim e nem tão muito baixo, cabelo curto e olhos amendoados que me observava. Desviei o olhar dele por segundos para procurar ler as placas e tentar me encontrar. Quando voltei o olhar ele continuava me olhando. Dessa vez exprimiu um sorriso e um aceno positivo para mim com a cabeça. Olhei ao meu redor se o cumprimento era realmente comigo: e era. O movimento de vai e vem das pessoas parecia à parte de mim como um cenário de fundo. Quando retornei o olhar ele estava me chamando com o dedo indicador em forma de gancho. “Vem aqui”, balbuciou ele de longe. Eu fui, mais uma vez não pensei se deveria ou não. Quando eu percebi eu já estava diante daquele rapaz com duas amêndoas enormes em formas de olhos no rosto marrom. Era mais uma situação estranha. Agora era dar atenção e conversar com um estranho do nada na estação de metrô mais movimentada de Paris. Ele se apresentou timidamente com um francês carregado de sotaque claramente estrangeiro como eu. “Está procurando algo de bom para hoje?”, perguntou ele com um sorrisinho matreiro de canto de boca que já ofereceu uma resposta, “Por vinte euros eu posso fazer sexo com você. Eu tenho um local aqui perto”, continuou ele. Aquilo me assustou. Foi direto, incisivo. Disse o texto decorado na lata. A única reação que eu tive foi não verbal de levantar as mãos pedindo para parar, pois não estava interessado no que ele estava oferecendo. Mas na verdade eu não queria parar, de fato eu queria saber quem era ele. Eu queria outro tipo de intimidade. Com certeza ele já havia me identificado pela tatuagem no braço de eu já ter passado perdido umas duas vezes naquele local que ele estava. Comecei um diálogo diferente, sem o texto decorado da negociação de sexo que ele tinha decorado. Perguntei qual era sua origem, me disse que era sírio, que estava vivendo em Paris com visto de refugiado ou asilo político por perseguições por ser gay no seu país. Devido a essa sua condição social, tinha dificuldades para trabalhar e estudar no país. “Eu tenho vários amigos que estão na mesma condição”, disse ele, “Há o acolhimento legal, mas não o do dia a dia”, finalizou. Eu não quis demorar muito com a conversa, na verdade eu estava me sentindo mal com tudo aquilo. Eu senti um pouco de vertigem. Me despedi e me encaminhei para a saída mais próxima dali e por sorte era a que eu estava procurando. Antes de subir as escadas para sair da estação olhei para trás e o rapaz sírio já havia abordado outro homem. Eu fiquei dias com a imagem do primeiro olhar que trocamos. Não havia um olhar de desejo, mas de reconhecimento. Todo um universo de experiências de existência de duas pessoas LGBT+ passaram em segundos por aquele olhar. Por mais distante que nossas culturas fossem, nossas vidas, nossas existências, nossas experiências fossem aquele primeiro olhar nos conectou. Em poucos minutos de interação ele revelou toda a sua essência. Aquele primeiro olhar não era desejo, mas era um pedido de ajuda. Era mais uma camada de opressão contra nós que eu estava diante. Por dias, quando eu fechava os olhos, eu via os olhos daquele rapaz. Por dias eu me senti impotente por não ter conseguido fazer nada ali, mas sei que na minha prática na educação eu não ensino apenas “apenas gramática” nas minhas aulas. Acho que é um começo… A existência é cercada de várias linguagens e línguas. Língua não é um amontoado de palavras e regras, mas um movimento de empatia de querer se comunicar e entender um outro ser humano. 

Volto à questão que coloquei logo acima: a nossa batalha por justiça social LGBT+ está realmente ganha?

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com

 

 

 

 

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