Ana ou Macabéa

* Por Matheus Arcaro *

Para Clarice

 

Você poderia fazer as unhas hoje. Estão quebradas, esmalte comido. Como se as pontas dos dedos fossem morangos mofados, mordidos pela metade. Poderia também passar por trás daquela árvore gorda, sentir o perfume das azaleias e seguir pela ponta dos pés até o portão lateral do parque. Mas você prefere sentar-se no mesmo banco de ontem. E de antes de ontem. E da semana passada. Um banco de cimento, encosto chanfrado com a logomarca desbotada da sorveteria Ti-Ti-Ti, a provável patrocinadora da instalação do assento.

Você poderia vir ao parque no fim da tarde, com um casaquinho fino, bege ou azul claro, para não pegar friagem nas costas, e apreciar o pôr-do-sol feito um bebê que olha para a mãe recém-chegada do trabalho. Mas prefere sair de casa às três da tarde, quando vê, na parede, o ângulo reto formado pelos ponteiros do relógio. Com o sol açoitando o pescoço, você aperta o passo até chegar ao banco cinza sob a árvore e ali fica por quarenta minutos, às vezes uma hora. No último ano, você só não veio ao parque por duas vezes: quando seu gato morreu – aos dezessete anos, cego e quase sem pelos – e quando esteve com gripe. Já tinha saído gripada de casa outras vezes, claro, mas naquele dia, o vírus comeu você por dentro, como se implodisse seus ossos. Talvez fosse pneumonia ou algo mais grave, mas como se deixou curar com ervas e repouso, sem médicos, antibióticos ou agulhas, jamais poderá se certificar.

Você poderia ter escolhido outra saia, a preta ou a azul marinho, aquela um pouco mais curta, dois dedos acima do joelho. Mas prefere a marrom. Poderia ter passado um batom mais escuro em vez do rosa ou um feito um penteado que valorizasse seu rosto comprido. Mas prefere o rabo de cavalo, a blusinha mais solta, estampada com flores amarelas, e os chinelos de tiras largas. Afinal, não seria adequado estar com os chinelos de dedo, que são exclusivamente para a faxina matinal. Primeiro o quarto: aspirador de pó, pano seco nos móveis, pano úmido no chão. Depois, a cozinha e a sala, mesmos movimentos. No banheiro, água sanitária e desinfetante, porque não suporta ver escurecidos os rejuntes dos azulejos. Por fim, o quintal, com a mangueira para regar as plantas.

Você poderia ter dormido até as oito horas. Ter tomado capuccino em vez de chá de erva cidreira. Poderia, inclusive, ter se casado com Joaquim quando tinha vinte e três anos. Rapaz de boa família, serviço fixo. Ia perfumado visitar você, levava ramalhete ou bombom, você dizia que ele não devia se preocupar com essas coisas. Sentia uma comichão fraquinha no meio das pernas com o abraço dele, como se alguém cansado estivesse a fazer cócegas. Teve a impressão de ouvir ele dizer, certa vez, para o amigo de trabalho, que você tinha gosto de café requentado. Tempos depois, ficou sabendo que ele tinha se casado com sua prima distante, Verônica, esta sim, você supõe, com comichões que merecem este nome.

Você poderia estar rica se seu avô não tivesse entregado, numa mesa de baralho, as quatro fazendas da família. Graças a Deus, todo poderoso, guardião dos seus passos, que sua avó conseguiu salvar uma delas. Você, filha única, sua mãe filha única; com o que chegou das terras e das vacas, você comprou duas casinhas: a que mora até hoje e a que rende um aluguel razoável. Faltou comprar uma porção de vida, três litros de sangue mais quente, digamos, um pouquinho de ódio ou talvez ambição. Mas essas coisas todas você não encontrou em prateleira alguma. Aliás, nem procurou. Até porque só encontra algo quem sabe o que está procurando.

Você poderia estar brincando com seu filho agora se as paredes do seu útero não fossem como folhas de papel vegetal. Rafael (ou Clarice) teria onze anos, quase doze. Marcos foi um dos três homens com quem você dormiu pelada. Não, não. Foram dois, na verdade, porque com o Rogério você não chegou a dormir. E nem a ficar completamente pelada. Ele apenas se movimentou em cima de você, feito uma britadeira, por dois minutos e meio. E falou que tinha que voltar para casa com urgência. Bom, foi o Marcos que mencionou, com fineza, a finura do seu útero. Apontou a mão espalmada para a sua barriga e balançou a cabeça para os lados. Foi ele também que se esqueceu do seu aniversário quando estavam juntos havia nove meses. E esqueceu de você semanas depois. O sonho do Marcos era ser pai, acho que ele disse isso a você uma vez.

Você poderia ter descoberto quem é seu pai, tentado arrancar dele ao menos uma justificativa, uma desculpa. Não que fossem cear juntos nos natais seguintes ou pedir a ele conselhos amorosos. Mas, se pudesse xingá-lo ou arremessar desprezo nos olhos dele, talvez diminuíssem o buraco em seu estômago e as manchas vermelhas em seus cotovelos.

Você poderia ter conhecido a Grécia e a Turquia, poderia ter escalado o Monte Fuji e comido macarrão instantâneo em Machu Picchu. Poderia ter voado de asa delta ou, se o medo fosse grande demais, passeado de balão sobre uma floresta. Poderia ter cursado veterinária, como cogitou algumas vezes, poderia ter esquiado, poderia ter assoprado mais velas de aniversário. Entre tantos poderias, você vira o corpo para trás e, ao passear os olhos, pousa-os naquela flor. Pousar não é um bom verbo: você arremessa os olhos e os fixa naquela pequena flor que não estava ali ontem.

Você conhece este parque feito o box do seu banheiro, como é possível aquele cravo vermelho ali, despudorado? O cravo não parecia ter se desentendido com a rosa ou com qualquer outra flor. Parecia, isto sim, ter viajado durante a madrugada: da Revolução que liderara contra Salazar em Portugal, direto para este pedaço de terra. Mas estranhamente ele não parecia um estrangeiro. Ele era cravo, completo. O cravo, dançando com o vento, estremeceu suas paredes internas e você, então, pensou em caminhar até o cravo, arrancá-lo e, com ele entre os cabelos, chegar em casa, pintar as unhas de vermelho e dançar nua em frente ao espelho, ouvindo Tanto Mar, do Chico Buarque. Pensou, mas ficou sentada no banco cinza.

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Matheus Arcaro é escritor e Mestre em Filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social.