* Por Paulo Ribeiro *

Gritou coisas da Bíblia, do consolo escrito nela, uns três versículos adoentados que decorou: Sofrerás! Prantearás! Teus pecados nos pulmões por primeiro.

Que estes são tudo, até mais que o coração.

Que os pulmões têm parte com Deus, que engolem o vento dele. Pra Deus entrar ali e pôr as mãos, pra Deus por ali ficar um pouco e depois o escarro.

Deus que vem. No tossido, bronquite divina em toda a sua extensão: tosse comprida. Cheia de graxa e pro Amém do Cristão.

Que morre do próprio. Deus onipresente até por dentro do pulmão.

Em pedacinhos as palavras do Bagorra. O seu expandir no velório, já que o negro era leporino e parece que suas palavras mais bíblicas tinham dupla entonação.

O Bagorra falando em Bíblia?

Era de tossir no velório.

Que faziam os velórios ao lado do snooker e o Bagorra nesta noite apareceu com os lábios cortados, leporino, fazia anos que se orgulhava de guardar uma escritura, vejam só. De uma terra herdada com rio em “s” e que precisava dessa escritura junto ao peito como o próprio coração. O melhor jogador de bilhar. De snooker, o que viesse.

Bagorra era o Campeão. Demorava, não vinha, mas quando aparecia não havia com quem ele jogar. E jogava de tudo no snooker com quem viesse: latão de abacaxi, casaco de lã, dinheiro em cédula pura. Era um presente dado ao freguês quando errava uma bola fácil e o negro se ria como quem diz: “Hoje tô pra mulher!”.

Com o chapéu e a capa impermeável já dependurados (quando não arregaçava então a jaqueta de napa) parecia beijar o taco quando ia começar. Um astro, galã, sobressaía o chapéu de feltro. Se jogasse de chapéu o Bagorra se arrodeava fazendo o chapéu arrodear junto. A pena do pavãozinho era amarela e ventava. E o Bagorra vá e vá passar um giz na extensão do taco inteiro.

Era um ritual. Tinha as mãos bem ossudas e diziam: “olhe os outros dedos do Bagorra. Não são dedos de Deus!?”, quando ele não usava sapatos e vinha de sandaliões. Jogava de pés descalços mesmo e tinha uma múltipla capacidade de acompanhar com o corpo o domínio exercido na tacada.

A bola branca deslizava ríspida na Oito em reta e ele dizia: “Essa foi pra África do Sul”.

Famílias se deslocavam só pra ver o Bagorra jogar sozinho, porque ninguém queria perder pra ele e virava apresentação. Era também pandeirista o moreno. Olhão verde, garantia com olharzinho uns quantos bilhões de moças, até que com a Santa casou.

Quando solteiro, as moças gostavam dele. Era um mimo, os labiozinhos partidos, era bom de beijar o rachadinho dele, diziam.

Diziam da cavinha que bifurcava o bigode e que daí vinha o maior charme do Bagorra.

Seus olhos verdes eram herança de todos os Remígio. Negros de olhos verdes. O Bagorra era filho do Gaspar. Gente do “Matadouro”, sabiam como lidar com um taco, como acertar uma jugular.

Um dia, apareceu o Bagorra com um casaco de pele e muito disposto a jogar. As mãos faziam cócegas. Ficou ali treinando, treinando e vá a dizer:

“A Bola 1 é para minha África”.

E fez.

A Bola 2 é por todas as Américas.

E encaçapou.

A Bola 3 é pela Europa.

A 4 era pela Oceania e na quinta alguém gritou que fosse pela Rússia Comunista.

Fez e faria mais bolas com aquela vontade de jogar sem rival. E que se via o Coração de Jesus na camisa aberta no peito dele por baixo do casaco de pele.

Imagine fazer todas aquelas bolas em homenagem ao mundo sem nem dependurar o casaco!?

Um exímio. Nunca tinha se visto um ser humano jogar igual. E que ele devia jogar o mais que tivesse, se é que jogava tão bem.

Foi na noite de uma moça morta que velavam ao lado do snooker.

O Bagorra fechou os olhos verdes, estalou os dedos ossudos. Tirou a escritura do bolso e desafiou então.

“Jogo toda a minha terra pra quem me enfrentar!”

Era um astro, era um ídolo, os outros morenos diziam que foi o lábio aberto o inventor do bilhar. Quem é que iria querer?!

A casa era larga, tinha uns 30 metros de frente e tinha as duas portas de recepção. Entrava gente pra jogo e gente pra se despedir. Se despediam do dinheiro mais. Porque no velório, geralmente, era um só. Jogo? Era o que mais havia: canastra, pôquer, snooker, caçapas a esvoaçar.

Vivia vindo gente à carroça, carreta, charrete, de a cavalo.

De éguas nunca se ouviu. Que recebessem a hóstia, que saísse de dentro de égua qualquer forma de Senhor.

Mas que serventia também teria isso?

Deus? Morte?

Que parecia a pergunta pra aposta?

Deus? Morte? Beber um rio?

Mas o Bagorra, o mais moço dos Remígio, dava o campo se não bebesse. Dava à Banca, dava contra quem quer que jogasse.

E a careta enfezada que fazia era por isso: não sabia o que o levava a Deus.

Não sabia e contra este também jogava.

Que entendido em rio como ele, Deus não buscou provar com água o próprio filho que matou?

O sudário do rosto dele não é isso? O tamanho dos furos nas santas mãos também não?

Que foi a tacada da noite. O Bagorra Remigio se ajoelhou e disse que aquilo ali era uma aposta com Deus. Que até com Ele jogava. Se errasse, perdia o campo com a escritura.

Ô, Bagorra Remiginho!!

Inteligente na matemática e que na tacada da noite apostava contra Deus.

Que lhe alcançassem o fancho, que o Bagorra novato se aprumando no cocho, que pedindo penico pra enfrentar.

Mijava na morte!

Queria o taco torneado, o lenho da Santa Cruz. Que feito dela, do mesmo Ipê afamado, o fancho que lhe alcançaram. Dava o campo se não fizesse.

E a Bola Negra, a de esmalte, azarada, a Noiva dos Solteirões, ia correr bem por ali. Na contra-tarimba, pegaria o efeito, e voltaria mais por cá. Já sem efeito, em linha reta e pegando mais velocidade.

Tchbummmm!

O Bagorra se socorreu por esta tacada do fancho. Pediu penico no bom sentido, que era mijo e caridade em uma só vez.

Que a cor da esmaltada saiu perdendo o vernizinho colorado e era a mesma cor da jaqueta de napa dele.

Era igual.

E o Bagorra deu a tacada e ficou nos punhos esgarçando a napa. Se arregaçando a napa pra região dos cotovelos depois de jogar.

Devia ter se preparado pra isso antes, não depois de jogar.

Mas que era o nervoso.

A dó que deu do negro nos nervos foi coisa de se dizer. Tinha só um capãozinho com riozinho em “s” e inventa ainda de jogar.

O Bagorra jogando um rio de dinheiro e calculando no taco pra não errar. Esse era o evento: que as mãos furadas dele nessa noite, que o azar, a tacada perdida foi por culpa da morta que ele pagou o pecado.

Um velório do lado. Que o Bagorra jogou um rio inteiro em “s” e nem uma morta respeitou.

Era num velório do lado.

Que ele batia três vezes no cocho, azarado, enfezado, intrigado sem embuchar. Até brigar brigava se surgisse comentário ali. Queria entregar o rio em silêncio e começar então a pagar seus pecados. Que tava se sentindo em seu próprio íntimo ser um dos 12 que Jesus desconfiou.

Precisava rezar. Precisava de boleta, precisava de reza de comadre, não lembrava do quê mais?!?

“Como é que me perde o rio onde apareceu a mula de São João Maria, Jocemar Remígio?”

O Bagorra. Filho de Gaspar. Neto de um outro que morreu.

Que ainda banhado em suor, açucarado de mel, o moreno, hum-hum, cumpriria a aposta. No outro dia mesmo chamasse o Velocino escrivão.

Ele ia entregar a terra dele prum capuchinho. Era o gosto dele, botasse por ali o dedo. Que levantava a camisa e mostrava o caroção. Tinha caroço e tinha flâmula do outro lado da sala. O Sete Baiano na parede pegada ao bilhar.

Este era o recinto.

Esta era a calada da noite e que o foragido da sorte, foragido do jogo, o Bagorra entrou então no velório de menina pra contar.

Benzeu-se, e começou a falar do rio que perdeu, com seus lábios leporinos falou aquelas coisas da Bíblia e denunciou: que entregava o rio, mas que ia dar da pólvora dele capando a partir deste dia. Que mantinha o fio do bigode, manteria a palavra, mas que ia virar num ranço. Seria só um homem do mal.

E este o segredo dele: diziam que pra capela pro São João Maria tinham tirado o dinheiro do rio dele. O Rio do “S”, esse que ele ia entregar.

Que os Heiurque, ricos proprietários das terras antes, com mula e tudo, na barranca com uns copos de leite, acharam dinheiro ali. Bem onde antes era só pedregulho. E que o Heiurque mais velho falava em dividir terras, mas só depois que tirava as panelas de ouro. Que o Heiurque deu em comunidade aquele pedaço de capão pros Remígio depois de pelar a serra, depois de secar o rio.

Três tachões de moeda de ouro, dizem.

Que o Bagorra esse agora perdia. Ao invés de fazer um casebre novo, um habitado novo pra ele, pra Santa, e os futuros filhos, puxava era uma água benta pra morta lhe perdoar. Até pra se arejar.

Podia um homem suar de calor numa noite de frio?

Dessem mais água pro Bagorra. Até pra sua higiene.

Tudo era muito limpo em volta do “s” do rio e não tinha ali probabilidade de ter mais panela de ouro. Que só teve antes. Que foi quando o Heiurque passava com a mula e o açúcar.

Parou nos copos de leite pra descansar e foi quando viu a mula de São João Maria a pastar.

Quase não acreditou. A mula de São João Maria aparecia pra mostrar panela de dinheiro e o Heiurque mais velho se sentiu bem melhor.

Tapeou a mula por vibração, deu um “humhum” mais exaltado e foi em direção ao raso do rio.

Pois não é que os índios antigos tinham botado o dinheiro dos padres bem ali?!?

Na curva da cascatinha, bem no “s” do rio.

Ia cavar?

Mas se fosse só uma mula que se fazia?

Isso. Se fosse só uma mula imitada. Não ia cavar em vão?

Cavar na água. Era uma indicação de índio.

Que é que ia fazer?!?

Arriscar.

Se endinheirou.

E depois, fez a estátua de São João Maria e mais uma capela pro santo e São João tudo feito de pó de gesso mais cal.

Pastando no limpo a mulinha apareceu pra ele.

O Bagorra sem rio puxava a jaqueta de napa pros cotovelos e não se ‘arrenpedia’ de jogar.

Era o melhor taco da região. Era até mesmo apreciado agora dentro do velório.

Parecia que até estava sendo um velório abençoado por andar por ali o Campeão. Tratado como tal!

Que pelas chagas de São João Maria, disse uma morena mais velha, que o Bagorra não entregasse o rio por jogo. Que o velório era um sinal pra impedir essa contravenção moral.

E a Santa, e os futuros filhos? O que ia dizer pro Gaspar de quem herdou??

Que essas negras velhas sempre protegiam os mais necessitados morenos, fosse ele humilde ou Campeão.

O capuchinho que ia ganhar o campo odiava essa morena benzedeira, essa morena benzedeira com instinto de preservação dos dela.

Um frei Gillonay, bem belga, odiava essa Carmosina. Que ela chegava na capela pras missas, serpenteando por trás do rio, o “s” em Dilúvio, e a presença da negra era vista.

Na verdade era uma cristã que vinha ali ouvir a palavra de Cristo e nada havia nela de mais oculto pra se dizer.

Como a água vindo a escorrer vinha a palavra do padre. Bem belga, ouvindo crimes e pecados em confissão.

A Carmosina recebia essas palavras do capuchinho contra o seio.

Até se trair.

Com que ordem entrava ali? Quem estava a caçar?

Que o Gaspar Remígio, esse, sim, de ocultismo, não queria a preta velha ali em capela, em missa e confissão por praga rogada, que a negra velha voltasse pro seu fogão.

Que saísse.

Saía. Mas que terra e filhos o caçula dele, o Jocemar, nunca mais ia ter.

Praguejava.

E a Santa do Bagorra ficou uns cinco anos seguidos se engravidando. Tava louca pra sempre se ficasse assim se engravidando.  Mas até umas bonecas de pano já eram parte da gravidez que ela tinha. E a Santa aprendia com cada gravidez e ficava bem igualzinha. E continuava se engravidando e era o jeito que procurava de ganhar um filho. Com amor, tudo rosa e carinho, a Santa tinha feito um enxoval com a imitação de asa. Com amor, tudo azul e carinho, a Santa tinha feito um enxoval com a imitação de anjo. Pro tiro não sair errado, a Santa do Bagorra tinha já preparado até enxovalzinho pra gêmeos. Era um jogo de cueiro e fraldas e a Santa, se descuidassem, levava ainda mais a sério a chegada do seu primeiro. E levava. Vivia olhando o peso. E de tanto se ver nas nuvens, a mulher que não engravida, engravida por si mesma. E fica com umas formas rosadas, e fica a pele melhorada e muito excedida no sal. Por isso que a Santa do Jocemar Bagorra sentia muita sede e bebia tanta água que não conseguia mais entender. Da primeira vez que se fez de grávida a Santa do Bagorra se urinava de contente. E nem é assim quando se está.

E, por isso, o Bagorra nunca teve filhos, que ficou meio enlouquecido, e hoje perdeu as terras no bilhar.

*

Conto que dá titulo à coletânea homônima do autor, recém-lançado pela Kotter Editorial.

 

 

 

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