* Por Eleonora Frenkel *

Acabo de ler o novo livro de poemas de Dennis Radünz, Ossama: último livro (Editora Letras Contemporâneas/Editora da Casa). Digo poemas porque o são poemas livres, tão livres que se permitem por vezes não sê-lo, como num entressonho em que o poema delira e se faz passar quase que por um roteiro de filme de ficção científica. Nem tão ficcional, entretanto, se nos lembramos de qualquer telejornal, noticioso dos ataques e dos feridos, diários e desmedidos.

Esta ossama que nos entranha no corpo da poesia, também nos estranha ou nos inexplica sobre tudo aquilo que tanta ciência não descomplica. Um corpo poema dissecado que, como a Ondina, pintura de Walmor Corrêa (que ilustra esta resenha), esse cachorro-peixe ou esse peixe-mulher, se expõe ao estudo anatômico de um organismo inventado. Não há ciência que explique a invenção. Não há ciência que explique o intolerável. Há uma carga ossosa, um peso dos restos da História, que carregamos sem saber para onde ou nem mesmo como vieram a se tornar possíveis. A ossada da memória, a grande porção de destroços que acompanha a vida, é também aquela que se desfaz na terra, que a nutre e fortifica. É quando a ossama se abre para a hosana, para a saudação de louvor e alegria, para a celebração e o agradecimento.

“Ossama” se anunciara no último verso do último poema do livro “Extraviário” (2006), em que se anota “o escritor margina a sós a sua própria ossama”; o poeta escreve à margem de si uma coleção de ossos, de palavras soltas que alicerçam um corpo. Escrever é ex-pôr, pôr para fora de si um conjunto de palavras que serão o cadáver ou os restos das coisas que nomeiam.[1] A linguagem é a morte da coisa e o “poema aterra o poeta”, como já se manifestara em seu “Exeus” (1996). A escritura, entretanto, é o procedimento através do qual o detrito na terra se transforma em húmus e fortalece nova vida. O corpo do escrito agrega à matéria dura das palavras o calor do líquido que se move entre elas, a viscosidade viva que as faz aderir uma à outra. O poema se move fluido como a água, o sangue ou a seiva que vigora a vida.

O leitor tem diante de si um organismo, uma forma de vida pluricelular, à espera de ser amado. O sufixo –ama  reúne os ossos em uma ossama; é o –ama que congrega, é ele que reúne a coleção. É o leitor, ao amar o texto, ao se entregar a ele de corpo inteiro, que o faz viver, que lhe dá calor, ritmo e tom, que transforma o espaço criado em acontecimento renovado. “Ler é impulsão, porque pede um aceno do corpo inteiro”, dirá Dennis em um de seus momentos de jornalirismo, e “ler é também pulsão, porque se faz dos ritmos do idioma e suas pausas de respiro. É pulsação de palavras, entre o som e o sentido”.[2] O convite é a uma leitura em voz alta. A voz cobre de pele o corpo do escrito. O tom da voz sibila a música das palavras e fricciona o corpo do leitor e o corpo do escrito. O ritmo move a leitura.

Começa-se o livro pela exumação [um poema visual – readymade],[3] pela ação de desenterrar, de cavar a terra e encontrar as forças que nutrem as árvores e os restos que sedimentam a vida. Nossas ruínas, nossos mortos, a vida que nos antecede, as vidas que perdemos, aqueles que restam em nossa memória; as mortes que congregam nossas vidas porque delas nos lembramos com amor. Assim inicia a leitura, vamos a ela com tudo que já morreu em nós e com tudo que nos faz viver. Atravessamos o texto com nossas experiências, mas nos deixamos atravessar por ele; a leitura desorbita o si mesmo, nos convida a sair do prumo, a nos deslocar do eixo e das certezas que nos fazem sujeitos acabados. A ”via de extravio” que se abre no “Extraviário” nos diz: a poesia é um caminho para se perder. Se a leitura desapropria o sujeito, ela é também a apropriação da impropriedade do texto, que não possui um único sentido, mas que se presta ao equívoco e ao erro, ou melhor, ao movimento casual da errância, ao passeio sem destino certo. Como diz Ricardo Piglia: “um leitor também é aquele que lê mal, distorce, percebe confusamente”.[4] A leitura desfaz o texto e quiçá não seja a ele que lemos, mas sim a nós mesmos, ao nos vermos no reflexo das palavras sobre o papel, ao deixar-nos tocar pelo texto. O que nos toca no que lemos?

O livro é espaço de contato. Como a escultura de que fala Didi-Huberman, ela assume um valor de pele: “Entre o ‘eu’ e o ‘espaço’, só há minha pele”.[5] E da escultura também dirá o filósofo que é “espaço para se perder”. Ele fará uma reflexão sobre a escultura de Giuseppe Penone e pensará a “diferença entre uma escultura que fabrica objetos no espaço – objetos de espaço, poderíamos dizer – e uma escultura que transforma os objetos em sutis atos do lugar, em ter-lugares”,[6] ou seja, em “acontecimentos”. Transformar o espaço em acontecimento seria a habilidade artística de nos fazer tocar os lugares inventados, ou, de criar o tempo do contato, o instante evanescente do agora que contém todos os tempos dos passados que nos constituem.  “É dentro de um espaço que se recolhe o valor do tempo, as memórias do tempo”, dirá Giuseppe Penone.[7]

Criar a matéria artística é esculpir o tempo do agora, é tocar a memória presente que contém todos os tempos precedentes. A escritura é, como a escultura, matéria e memória, espaço e tempo. “A memória dura apenas no presente”,[8] nos diz uma das crônicas de “Cidades marinhas: solidões moradas” (2009), o instante do toque é evanescente e móvel. O que punge, o que fere, o que emociona, o que encanta agora pode não fazê-lo agora. A mobilidade da leitura é também desaparecimento, como a música ou como a dança que, uma vez sentidas, não serão repetidas do mesmo modo, a despeito da rigidez das formas plasmadas na matéria do livro, do disco ou do vídeo.

À medida que a leitura se desloca, o livro se esvai. Passamos as páginas e o lido desaparece. Transformamos as palavras na matéria do papel em invisíveis: o ritmo, a voz, a imaginação; na palavra lida, desaparece o visível para fazer emergir o inventado. Em “Cidades marinhas”, livro em estado de desaparecimento, acompanhamos a leitura com a dissolução do homem de açúcar, esculpido e fotografado por Aline Dias; uma escultura que, ao contrário da aparente permanência de estruturas de ferro ou de vidro, nos fala do estado provisório do mundo. A escritura, escultura de palavras, é mais uma condição impermanente na História. É a manifestação da frágil e ilusória certeza de que o que está escrito, sedimentado ou edificado permanecerá.

Flávio de Carvalho diz que “as recordações da história se congregam nos resíduos abandonados pelo homem e não destruídos”;[9] sempre haverá o que resta, o que guarda, o que preserva, mas estes também estarão sujeitos ao ainda, ao que ainda nos sobra como lembrança. Entre os resíduos, o cronista lírico observa os sambaquis na Ilha de Santa Catarina e os lê nesse barroquismo identificado por Walter Benjamin nas ruínas, alegorias do caráter transitório da História: “Monumentos ao que não há mais”,[10] crânios, fêmures, úmeros de vidas que um dia existiram.

Não há desacerto cronológico em dizer que as ossamas perdidas nesses montes à beira-mar fazem tanto parte de nossas vidas quanto aquelas que restam nos destroços do que um dia abalou as maiores torres do mais pretenso estável centro do século XXI. Essa fragilidade da firmeza está na “Inconstância das Coisas desse Mundo”,[11] rimada na beleza de um soneto contra o qual se atenta. Não há forma estável, só há impermanência na natureza.

Lembramos em “Ossama: último livro” o avião, o voo, o choque, os explosivos, a explosão, os suicídios, as queimaduras, a fumaça, o cinza, a intoxicação, o desespero, a descrença, a paralisia, o terror, o mercado, as ações, o petróleo, e… quem sabe mais o que há nesse amontoado que tem arruinado a vida em tantos lados?

Como se refaz um corpo dilacerado? A técnica, a medicina, a burocracia pretendem reintegrar a preciosidade da vida, mas nem sempre se tem essa ventura. A leitura sim: pode dar nova vida ao corpo que aguarda frio dentro do livro, fazer correr nova seiva para nutrir os ossos abandonados ali. Ossamas. O livro acabado sempre pode ser recomeçado.

 

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[1] Maurice Blanchot, “A literatura e o direito à morte”, A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, pp. 289-330.

[2] Dennis Radünz, “Leitura como possessão”, Cidades Marinhas. Solidões moradas. Florianópolis: Lábias, 2009, p. 39.

[3] O poema diz: “Corpo aterra Hum Corpo” (D. Radünz, Exeus. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1998, 2ª edição, p. 41).

[4] Ricardo Piglia, O último leitor. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19.

[5] Didi-Huberman, Ser crânio. Lugar, contato, pensamento, escultura. Tradução de Augustin de Tugny e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: C/Arte, 2009, p. 70.

[6] Op.cit., p. 44.

[7] Penone Apud Didi-Huberman, op.cit., p. 64.

[8] D. Radúnz, “Tempo vezes tempo”, Cidades Marinhas, p. 60.

[9] Flavio de R. Carvalho, “As ruínas do mundo”, Os ossos do mundo. São Paulo: Antiqua, 2005, pp. 41-54.

[10] Benjamin Apud Radünz, Cidades marinhas, p. 22.

[11] D. Radünz, Extraviário. Joinville: Letradágua, 2006, p. 28.

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Ossama: último livro, de Dennis Radünz (Editora Letras Contemporâneas/Editora da Casa)

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Eleonora Frenkel é mestre em Estudos da Tradução, doutora em Literatura e professora de literatura hispano-americana na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Autora do livro Roberto Arl e Goya: crônicas e gravuras à água-forte (2015). Vive em Rio Grande (RS)

 

 

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