‘De dar nos nervos’, conto de Helena Terra

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Por Helena Terra *

Pifou outra vez o ventilador. Giovanna foi reclamar. Ela conhece um técnico de aparelho-de-ar-condicionado, um cara que mora no mesmo prédio que ela. Volta e meia pegam o mesmo ônibus. Depois ele desce uns pontos antes e vai sei lá para onde. Ele tinha ficado de vir na semana passada checar o barulho, o negócio zurrando dentro da sala estava de dar nos nervos. Não veio. Se pagarem, de certo, vem. Giovanna, ultimamente, anda descascando o esmalte e roendo as unhas. E, pra quem arruma aparelho-de-ar-condicionado, um ventilador não é nada. Custa pouco ele vir. Giovanna anda descascando o esmalte, roendo as unhas e derretendo feito picolé. A gente disse, professora, venha de shorts e chinelos de dedo. Todo mundo aqui anda de shorts e chinelos de dedo.  Mas ela é cuidadosa com essas coisas de vestidos e sandálias. Dia desses, sentada na terra, olhando para o céu, no céu não há pessoas, paredes, sujeira, ouvi a mãe rindo alto com uma vizinha porque a patroa dela chamou a gente de pés-de-chinelo. Na hora, pensei, a mãe enlouqueceu, nem se ofende, vou lá acertar umas contas com aquela madame, mas aí a mãe começou a explicar que o certo é dizer havaianas ou, em inglês, ló li pó pi ou qualquer coisa assim, e ela se enrolou tanto para dizer essa palavra que acabei também achando graça. A mãe tem trinta e três anos. Mataram Jesus Cristo quando ele tinha trinta e três anos. Ou trinta e dois. Não sei. Se eu tivesse ido para a igreja como ela tanto queria… Mas não me dou com deus. A mãe insiste que deus está em todos os lugares o tempo todo, olhando por nós. Que eu saiba, quem olha por nós é o Marquinhos. O Marquinhos olha pelos meus irmãos, pra mãe e um pouco pra mim. Se não fosse por ele, nenhum de nós escapava da revista. Desde que ele disse deixa comigo, Katielle, a polícia evaporou. Todo mundo lá de casa entra e sai e sobe e desce e anda pela comunidade na maior paz. O único lugar em que o Marquinhos não se mete, nem ele nem ninguém, é na escola. A Giovanna não quer saber de bandido. Foi isso que ela repetiu pra ele e pros meganhas, com o dedo levantado, sacudindo o braço, as pulseiras fazendo um som quase tão irritante quanto o do ventilador: aqui na escola, bandido de tipo nenhum entra! Nas duas vezes pensei é agora que a professora leva uma bofetada. Eles deram as costas, rindo mais alto que a mãe. O Marquinhos ri de um jeito estranho, devagar, mastiga o riso como se ele fosse um pedaço de carne. Em outros tempos, foi parceiro do meu pai. Contam que o pai foi o sujeito mais querido da área, um irmão de todos, cuidando de todo mundo. De certa forma, um deus. Morreu por vontade do diabo, com os intestinos esparramados entre os dedos da mãe, iluminado pelos faróis de um camburão.  Já o pessoal da polícia ri uniformizado sempre com as mãos sobre os ferros. Riem assim meio em ritmo de batucada, babando. A Giovanna vive dizendo pra gente tomar cuidado com esse negócio de mostrar peito, coxa e bunda. Na verdade, não me importo muito. Nem era para eu nascer. O desgosto do pai foi imenso. Culpa da mãe parir uma fêmea. Quem manda não abortar, mulher enfraquece a casa, ele falou antes de morrer. Giovanna diz o contrário. Vai saber.

* Helena Terra é escritora e artista plástica, autora do romance A condição indestrutível de ter sido (Dublinense)