A escritora Viviane Ka, uma das fundadoras da São Paulo Review, está na Grécia para uma residência literária e pedimos a ela um diário de suas descobertas por lá. Leia abaixo: 

Diário de bordo

 

Foi uma resolução repentina.

Acho que foi depois de um certo aniversário, a data caiu como uma pedra no meu colo,

a consciência do tempo passando.

Sempre fui inquieta. Sempre precisei de experiências, a eterna insatisfação é um desvio psicológico, mas acho que aqui não é o espaço de escrever como cura. Escrever sempre me deu tudo, todas as motivações, a razão para respirar.

O certo é que eu precisava mergulhar em outras águas depois de tantas perdas pós-pandêmicas. Fazer o que nunca fiz e sonhava de longe, como se fosse possível sonhar de longe. Acordar o daemon, a voz da energia criativa, o duende de Garcia Lorca, aquele que sussurra e transforma os monstros em musas.

Sempre tive vontade de fazer uma residência artística. Não sabia direito como funcionava mas imaginava a mente e o coração voltados só para a poesia, deixando a paisagem e o deslocamento atravessar a vida e a escrita. Deixar-se atropelar por um novo cenário, por diferentes histórias.

Iniciar uma travessia que valeria por mil sessões de análise.

Comecei a fuçar os sites, como quem não quer nada, enganando o mecanismo preguiçoso e acomodado que às vezes toma conta da alma.

Diversos lugares interessantes do mundo estavam com chamadas abertas para artistas: estúdios em uma montanha remota na Islândia, uma biblioteca milenar no interior da Espanha, casas compartilhadas na Armênia. Mas uma proposta capturou minha atenção: Grécia. A chamada deles funcionou como um canto de sereia para mim: convocando artistas all over the world para uma jornada de inspiração e criação em um local abençoado, na cidade de Kavala. Só o nome já soava mítico, como um cavalo desenfreado. Organizei um projeto de livro que já estava em processo de escrita, sobre três mulheres atravessando três décadas, juntei algumas imagens inspiradoras de artistas que me movem e mandei para os curadores. E foi assim que começou minha travessia. Eles me acenaram e eu me joguei no mar.

1/07

Verão: difícil sofrer esse processo de sentar e escrever com o sol bruto lá fora.

Eu cheguei com a ideia de desenvolver o livro com as personagens femininas, pesquisar e relacionar suas estruturas psicológicas baseadas nas deusas gregas. Além disso, queria visitar as cidades onde nasceram as poetas Maria Polydouri, uma Rimbaud grega e a poeta Sapho. Mas louco é quem tem ideia fixa. Quando cheguei em Kavala, uma cidade antiquissima da Macedônia, entendi que teria que mergulhar fundo na experiência de imersão na residência. E isso significava escrever sobre tudo o que eu estava vivendo. Explorar todos os cantinhos da casa com meu computador e caderninho e como Marguerite Duras, olhar pela janela da memória. Esquisito isso pois queria escrever sobre o instante e não sobre lembranças. Desde que cheguei não escuto nenhuma palavra em português e até meu pensamento tem estado em língua estranha.

Comecei escrevendo poemas. Como parte do projeto de estar em residência artística, imprimi alguns destes poemas (em português, inglês e grego) e saímos colando (com cola de farinha e água) em paredes de pedras de casas abandonadas. Me acompanharam nessa guerilla poética noturna, duas outras residentes: uma grega e uma croata. Uma ação que adorei fazer, com o coração batendo rápido, ainda bem que conseguimos nos camuflar nas sombras das oliveiras.

Fico pensando

se ao cair uma pena de gaivota no mar

eu comece a entender todas as línguas do mundo.

Entender sobre o que conversam

as duas meninas gregas na beira d’água.

Entender o que a família turca fala incessantemente.

Entender do que as ondas reclamam

compreender qual a linguagem das ilhas.

Demora muito a travessia de um navio

séculos aquele que ancora sobre uma nuvem.

 

3/07

Primeira pessoa que conheci quando cheguei foi o dono do mercadinho de bairro.

Cheguei tarde da noite e estava morrendo de fome. Antes tive que passar pelo porto com suas luzinhas amarelas e para meu espanto haviam pelicanos atravessando a rua! Pelicanos! À noite, o clima era bem diferente do que o imaginado. Um filme noir de paisagem marítima. Um desaparecimento. Algo acontecendo nos porões dos barcos. Muitas gaivotas gemendo, gangs de gatos perambulando. Qual o nome desse sentimento que é uma mistura de êxtase e pavor? Talvez exista uma palavra grega para definir.

Voltando ao dono do mercadinho, era um pirata saído de um navio fantasma. Parido das entranhas de um barco. Havia nele algo tão antigo quanto a cidade. A mercearia parecia arrumada como um sebo de livros, só o dono entende qual a lógica do empilhamento das ervas secas e dos queijos escondidos embaixo do balcão.

Ele ficou espantado com uma brasileira na cidade mas sabia tudo de política. Perguntou o que eu fazia por ali e eu disse que vim para escrever. Escrever uma história de terror, ele perguntou?

Eu, que estava com medo da solidão e de todos aqueles cheiros diferentes, escrevi uma. Aqui está ela: no próximo capítulo.

*

Viviane Ka é escritora e está em residência artística em Kavala, Grécia em Eutopia Art Residency.

@vivianekah

 

 

 

 

 

 

 

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