* Por Eltânia André e Ronaldo Cagiano *

“O relógio parecia multiplicar seus ponteiros. Tempos demais nasciam de suas entranhas. Mais que o mecânico tiquetaquear na parede, para mim ele é usina de abreviar a existência, soberba condenação. É estranha essa sensação que se apoderou de mim desde o momento em que levei o susto de uma noite precoce e compulsória invadindo meu olho esquerdo. Paris já não era mais uma festa, nem abrigo temporário. Por isso, a urgência se fez: voltar a Cataguases. A vida não teve tempo de acontecer. Sigo em frente com a única convicção: nada vai ficar. Nem a lembrança cascavilhando a memória. Nem o que pintou Da Vinci ou Portinari. Tudo é ilusão infinita, esfarinhada pela mó do tempo e do caos. Somos frutos podres nesse pomar invicto de impermanências, onde tudo está no devido lugar, porque assim é a ordem natural das coisas. Assim é a verdade supurada da vida.

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O relógio parecia multiplicar seus ponteiros. Tempos demais nasciam de suas entranhas. Mais que o mecânico tiquetaquear na parede, para mim ele é usina de abreviar a existência, soberba condenação. É estranha essa sensação que se apoderou de mim desde o momento em que levei o susto de uma noite precoce e compulsória invadindo meu olho esquerdo. Paris já não era mais uma festa, nem abrigo temporário. Por isso, a urgência se fez: voltar a Cataguases. A vida não teve tempo de acontecer. Sigo em frente com a única convicção: nada vai ficar. Nem a lembrança cascavilhando a memória. Nem o que pintou Da Vinci ou Portinari. Tudo é ilusão infinita, esfarinhada pela mó do tempo e do caos. Somos frutos podres nesse pomar invicto de impermanências, onde tudo está no devido lugar, porque assim é a ordem natural das coisas. Assim é a verdade supurada da vida.

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O homem com a maleta escarafuncha a lixeira numa mórbida curiosidade. Inventário de migalhas. Rescaldo do inservível. Viro a esquina da Consolação com a Paulista e o cenário metropolitano em seu escracho e denúncia revela-me a tênue fronteira entre a opulência e a miséria. Moço, pelamordedeus, me dá uma ajuda, tô pedindo porque não quero roubar, meu pai não pode trabalhar, teve derrame, está entrevado, e minha mãe precisa cuidar de meus irmãos pequenos, tão lá em casa sem comer desde ontem.  Um outro segue manivelando sua cadeira de rodas, esgueirando-se entre os carros enquanto dura o sinal vermelho, outdoor ambulante exibindo misérias, inscritas à mão num pedaço de cartolina: Sou sozinho, por favor me ajude a comprar um aparelho para minhas pernas. Que Deus lhe abençoe. E no rosto castigado pelo peso de suas dores, um traçado de rugas, sugere cansaços antigos, pela saudade dos olhares que um dia se cruzaram com os seus num canto qualquer da vida. Agora, a lágrima presa, a voz entrecortada pelas súplicas, concorrendo com os flanelinhas que se entrecruzam nos semáforos e os ambulantes em seus pregões de quinquilharias. Três chocolates por um real, aproveitem que é só hoje, vai aí, madame? E o cavalheiro, não vai levar?  O espanto aposentou-se nalguma instância longínqua.

 Há réstia de conforto para mim, que ando insensível e imune às calúnias que a vida decretou para essas tantas vidas que passaram no meu caminho no pouco tempo em que segui a avenida em direção ao Paraíso: Reserva Cultural, FNAC, Livraria Cultura, Casa das Rosas, Itaú Cultural, shoppings, galerias do metrô em sua imensidão subterrânea, ambulantes em clandestina oferta de piratarias para todos os gostos. Um contraste entre a opulência e as muralhas que nos apartam, dividem pobres e miseráveis, o umbigo cortado sob holofotes permanece no palco. E a angústia se disfarça na mesmice de um é assim mesmo, não adianta tentar resolver. A faixa de Gaza é aqui. Em cada esquina, bibelôs da miséria.  Cada mendigo é míssil atirado contra meu peito. A morte de civis inocentes, nas guerras políticas ou nas guerrilhas do tráfico, diminui a pessoa que sou. Invasões de terra, MST, drogas, corrupção pública e privada, máfia italiana, contos de fadas, alienação televisiva, escândalos do Congresso, Mensalão, propinoduto impune, Petrobrás eviscerada, homofobia impune, escalada conservadora minando lutas antigas, analgésicos e hipnoses da mídia e do consumismo. Mas as bombas que explodem do outro lado do mundo pagam pedágio à condescendência dos Estados hegemônicos e monopolistas e geram a carnificina que robustece nossa miséria social. As balas perdidas lançadas pelos comandos do tráfico no Rio e em São Paulo matam mais do que os conflitos no Oriente Médio, o trânsito brasileiro é máquina mais poderosa do que as bombas lançadas no Vietnã. O que é coletivo? O que é meu? Há mistura mórbida entre os mundos.

Pátria escura. Os gânglios da cidade expõem seus tumores com a morbidez obstinada do caos, vestígios da nossa decomposição, nessa tarde ferruginosa em que a inutilidade das coisas nos corroi e interdita o olhar. A dúvida continua a depositar seus ovos na minha consciência. A melancolia fazendo hora extra nesse caos.”

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Excertos do romance Diolindas (Ed. Penalux, 190 págs.), de Eltânia André e Ronaldo Cagiano

O lançamento acontece hoje (27/01), a partir das 19h, no Patuscada – Livraria, Bar & Café, na rua Luís Murat, 40

 

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