* Por Aminthas Angel Cardoso Santos Silva *

Tinha o brincalhão e sorridente Graço um meio-irmão, provavelmente, mais velho, caboclo, como na Bahia chamamos mistura de negro com índio. Honrado era seu nome. Puxara à aparência da avó indígena, que compartilhava com Graço. A índia mãe da mãe deles.

Ambos os irmãos desceram de Sergipe. Divina Pastora. Lugarejo. Atraso. Nenhuma chance de progresso. As casas enladeiradas por dentro, da porta ao quintal, seguiam o terreno em declive. Como será que tomavam sopa aquelas gentes? Tinham descido os dois irmãos por Entre Rios e por aquelas bandas de lá de Esplanada, onde tinha gado a ser levado à Feira de Senhora Santana, mãe de Maria de Nosso Senhor e haja boi e haja porco e haja tudo. Objetivo, a Cidade das Trezentas Torres, a Cidade da Bahia, onde Cristo Redentor, acalmando o largo mar, perto da praia da, igualmente, larga Barra, viria a ter primeira estátua, no Brasil.

Também tinha Graço uma irmã chamada Eloquente, bem sarará, ainda mais do que ele. Eloquente iria para o Rio morar, depois de adulta. Reza a lenda que um homem de condições financeiras boas por ela se haveria enrabichado e seguiram àquela que à época era a capital da república com “r” de ratoeira e não com “R” de risada, que é coisa muito boa de se dar.

E mais outro irmão tinha Delgado, nome de batismo de Graço. Um germano, de nome Pacífico, cujo fim não se sabe muito bem, somente ainda não se sabe, na medida em que e à medida que, reconstruímos nossa muita História. Que tenha vivido e morrido em paz desejamos do fundo do coração.

Chamava-se, como se sabe já, o sorridente homem Delgado, tal como o que lhe era ano mais novo, grande escritor da pequenina terra da Paraíba. Muito bebia Graço. Caso sem jeito. Teve mãe adotiva. Chamava-se Glicéria, A Adorável. Acabou de ser criado no vilarejo de Portão, em Santo Amaro de Ipitanga, hoje, Lauro de Freitas, município contíguo a Salvador da Bahia.

Que raios de motivos teriam feito Graço migrar tão jovem, com seu irmão maior? Num tempo em que mulher e analfabeto não votavam. É possível imaginar um tempo como aquele? Na república velha, quase ninguém podia votar. Era aquilo democracia? Perguntaria no século XXI uma viking interessada na Bahia.

Tanto a mãe, como o pai de Graço, além d`A Adorável e de seu meio-irmão mais velho dele nasceram no tempo do império, à altura do imperador, chegado aos eugenistas, que muito queria descaracterizar o Brasil, no que o país tinha e conservou de melhor, sua gente, sua cor, sua mistura encantadora e sua cultura popular. Teria arruinado a todos houvesse logrado êxito. A viking não sorriria a ouvir a palavra “Bahia”.

No mais, é preciso prata! Dinheiro. Dandá pra ganhar tentém. Graço cresce, de Portão segue para a Roma Negra e aprende a usar os braços. “Trapicheiro, naquele tempo, não ganhava quase nada” e trabalhava feito mula. Laborava Delgado, no tempo que a água chegava até o prédio da Associação Comercial, porquanto, até aos pés do belo monumento aos desinformados que lutaram e ganharam a Batalha de Riachuelo, o mar batia.

Trabalho pesado. Tinha trapiche como o diabo. Da Calçada à Igreja de Santa Luzia, no Pilar! Na Bahia dos camponeses de Tolstói, homens a mourejar. Da Igreja de Santa Luzia à Igreja do Corpo Santo, homens sendo gastos. Na Bahia, de Baudelaire, homens, feito formigas saúvas a carregar folhas verdinhas e gigantes, mourejando. Homens laborando. Carregando fardos pesadíssimos de tudo quanto era coisa e mercadoria. Era nego de tudo quanto era tipo. Era sertanejo vindo do buraco do tatu. Era gente que usava carroça. Eram homens descansando, no fundo das carroças. Usavam seus chapéus de sortidas maneiras e de variegadas sortes. Cada cabeça, uma sentença – ô tempo antigo. Cada guará por sua senda, na cabeça de pindoba. Era saveiro e Mar e Bahia de Todos os Santos. Era o corpo vivo e ativo e atrasado daquela Cidade da Bahia. Casais apaixonados, sorrindo mutuamente. Gente negra e bela. Mulheres de saia e de vestido. Apaixonadas, de braço dado com noivo, de mãos dadas com namorado e, se casadas, passavam a andar com a comadre. Parece a mágica finda. Bahia. Fábrica de moer gente. Fóssil recalcitrante.

Se vendia de tudo, nos trapiches. Cidade Baixa. Menos carne e farinha, porque era proibido ali comerciar, e gente, ao menos oficialmente, não mais se vendia, fazia algumas décadas. As mulheres e meninas pretas se davam, em troca de abrigo e de comida, a trabalhar em casa dos “brancos” baianos.

Ao lado do Solar d` Unhão ou perto do Moinho, haja trapiche. Gente carregando fardo e mais fardo, do mar para a terra. Cambaleia daqui, claudica dacolá. Bairro do Comércio. Onde hoje é a Marina, Trapiche Adelaide. Preto ri pra não chorar. Fundação Casa do Cacau, onde hoje é quase ruína. Perto de onde fora a Praça e o Mercado do Ouro, outros tantos trapiches.

Corre-corre arcaico. Lentidão. Perversidade. Perigo. O Moinho da Bahia queimará. Trapiche Aliança, entre o Solar d`Unhão e a Praia da Preguiça, igualmente, na região daquele que fora o maior dos portos das Américas e que mais africanos recebeu, durante a vigência legalizada do tráfico feio e até depois, viu?! E bem depois, pra enricar paulista e carioca, para o progresso da pátria, para as lavouras de café do Sul.

Queimará o Moinho da Bahia, deixe queimar tudo. Tanto negociado e tanto negociante. Porto onde chegaram tantas gentes por mercadoria tratadas. Tanto uso e tanto usado. Quanto abuso e abusado pela larga e velha Bahia de Todos os Santos têm entrado. Tanto há, por milagre, resistido.

Capoeira na Rampa do Mercado. Jogadores de grande categoria. Três Pedaços, Onze Homens, Inimigos sem Tripa. O ritual. Jogo. O jogar. Ginga. Dança. Mandinga. Malandragem. Filosofia de vida. Negaça pra não morrer.

Naqueles alis mourejava nosso homem, que brincava com todo mundo, do Elevador Lacerda ao Elevador do Taboão, do Plano Inclinado Gonçalves e ao do Pilar. Sempre rindo. Cantarolando. Graço, batizado Delgado. Amiúde, não era muito de chapéu. Usava a cabeça vermelha livre. Era o Sol um de seus amigos? Descia para com ele jogar dominó?

Quem o ajudava a trapichar? Era o vento? Chamava ele ao vento? Sabia fazê-lo, havendo vindo de outras paragens, do Agreste? Tivera tempo de aprender ao vento chamar? Acostumara-se ao mar da Bahia? E as gentes em lombo de animal de carga. E a gente pobre dava de comer a animal de carga e tratava o companheiro de sina tão bem quanto a gente de bem os tratava aos pobres de haveres e, assim, ia nossa Bahia, a Cidade das 365 Igrejas. E Graço com a cabeça livre de chapéu. Os olhos sem viseira. Com quem aprendera a olhar? Aprendera e preferira esquecer? Em todo caso, sua cabeça vermelha e amarela era de Sol. Ela não podia comportar chapéu.

Graço, sarará, nego duas vezes.

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Aminthas Angel Cardoso Santos Silva é compositor, músico e diplomata. Primogênito de casal de professores da rede pública de ensino, nasceu em Salvador da Bahia, em 10 de junho de 1977. Formou-se em Psicologia pela UFBa e, ora, serve em Estocolmo.

 

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