Por Paulo Vasconcelos *

Após a morte de Umberto Eco (1932-2016), Nelida Piñon afirmou em rede televisiva a sua importância e falou do seu trabalho de humanização da cultura, no sentido de vasculhar a história, como bom medievalista, esmiuçando os seus esconderijos ideológicos de tantos vieses.

Eco nos deixou um testamento de fé sobre a cultura, e nos incita a ler para desvendar mistérios e entraves políticos escondidos nas entrelinhas de um texto. Amante do livro e de sua história, apregoou a memória e destacadamente aquela fixada nos livros, nas bibliotecas.

Nenhum intelectual italiano, nas últimas décadas, esteve tão presente na cultura acadêmica no Brasil e com um vasto público no romance. Eco  chegou por aqui nos anos 70 com seus ensaios teóricos e ficou, espalhou-se entre um público não acadêmico com sua ficção.

Sua produção teórica nos remeteu à linguagem, à estética e à mídia (incluso os meios digitais) com crítica incisiva. Foi um dos grandes teóricos da Escola Sociológica Europeia na teoria da comunicação e semiótica.

Em O nome da rosa (1980), junta suas grandes variáveis perseguidas – a política, a teologia, a estética e a economia –, construindo uma metaficção historiográfica, sem perder fôlego discursivo com o imaginário popular.

Passado num monastério do séc. XIV, o romance demonstra um escritor com fôlego para, em quase seiscentas páginas, buscar de forma similar à de um detetive, um livro, metáfora sobre a qual assenta a narrativa. Debruça-se, assim, sobre a intriga dos poderes, a crítica à igreja, suas heresias e idiossincrasias dogmáticas.

A obra foi sucesso, foi levada ao cinema, e, depois, vieram outros mais. Seus sete romances ensejam uma postura ideológica nítida sobre o homem e seus perigos de desumanização.

Este Alexandrino, que adotou Milão como sua terra para produção, dedicou-se à docência na Universidade de Bolonha, sem deixar de lado sua obra ensaística. Sua condição de filósofo, decerto, levou-o à semiótica, o que o ajudou a construir os argumentos nos seus ensaios e a fazer uma crítica contributiva às várias correntes teóricas daquele campo, mas dentro de uma condição de quase discípulo de Peirce.

Apreciador da estética, teve como orientador o professor italiano Luigi Pareyson. A estética era para ele era algo entranhado na cultura. Para ele, o outro está na obra mediante a sua ação de recepção e postação de sentido. Aqui, Eco humaniza o sentido da obra na curvatura de sua fruição.

Mostrou-nos a teologia como um abismo e socorro do homem. No papel de experimentador das mídias na RAI, contemplou-as todas, até mesmo as digitais, e viu abismos profundos da comunicação, como uma teologia midiática, em que o homem se remete a esse deus como se fora um superior a ele.

Palavras da tradutora de Eco no Brasil

Ivone Benedetti, traduziu o livro Número zero, lançado em 2015, no Brasil. De uma família de imigrantes italianos e espanhóis, cursou Letras na Universidade de São Paulo, onde também defendeu tese de doutorado em 2004, sobre poesia medieval francesa.

Sua vida profissional dividiu-se durante muito tempo entre o magistério e a tradução (além de Eco, traduziu Sartre, Voltaire, Foucault, Vargas Llosa, Barthes, entre outros). Em 2009, estreou como ficcionista com o romance Immaculada, que ficou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010. No mesmo ano, lançou o livro de contos Tenho um cavalo alfaraz. Está no prelo (pela Boitempo) seu novo romance Cabo de guerra. Tem várias obras publicadas na área de tradução e de língua portuguesa. Fala-nos Ivone:

Por quais obras principiou sua leitura sobre Umberto Eco?  E quais (ensaios ou romances) as que te trouxeram mais perto dele? Como deve ter ocorrido a muita gente, meu primeiro contato com Eco foi através de O nome da rosa. Isso logo depois do lançamento no Brasil, na segunda metade da década de 80. Depois li outros romances (A ilha do dia anterior, Baudolino). No início dos anos 2000, na fase de construção de minha tese de doutorado, o pensamento de Eco foi fundamental (Arte e beleza na estética medieval, Interpretação e superinterpretação, Os limites da interpretação).

Você encontra o teórico da linguagem, semioticista, mesmo nos romances, a exemplo de sua linha textual e discursiva? Sim, muito, mas não explicitamente (ainda bem). Nos romances, Eco é um grande narrador capaz de construir tramas interessantes em cima de uma urdidura erudita. Acredito que essa característica seja a mais marcante, seja o seu, digamos, ‘carimbo’. No entanto, diria que os termos da sua questão deveriam ser invertidos: o narrador Eco se encontra no teórico Eco, de tal maneira que a leitura do Eco teórico é tão agradável quando a do Eco ficcionista. Ele consegue dizer coisas extremamente complexas de um modo saboroso.

Traduzir Eco diante do que ele falou acerca da tradução lhe deixou mais à vontade ou não? “Que a tradução pode presumir uma língua perfeita foi uma intuição de Walter Benjamin: não podendo reproduzir jamais os significados da língua-fonte na língua de destino, é preciso fazer confiança no sentimento de uma convergência entre todas as línguas na medida em que ‘em cada uma delas, tomada como um todo, uma única e mesma coisa é entendida, que, todavia, não é acessível a nenhuma delas singularmente, mas apenas à totalidade de suas intenções reciprocamente complementares: a língua pura” (2007) Essa é a síntese do pensamento de Walter Benjamin, que Eco está reproduzindo. Essa afirmação de Benjamin já gerou muito debate teórico que, evidentemente, não cabe aqui rememorar. Prefiro ficar com todas as outras ilações menos idealistas de Eco, como, por exemplo, as baseadas em Gadamer, Wittgenstein e Pierce. Olha só isto: ‘Embora o significado de um termo seja tudo o que se pode inferir da plena compreensão do termo, em línguas diferentes termos aparentemente sinônimos possibilitam ou não elaborar as mesmas inferências. […] Se traduzo home por casa, bloqueio uma série de consequências que eu poderia inferir do termo inglês, porque, quando ando pela rua, vejo casas, mas não homes (a menos que me identifique com os sentimentos de cada um de seus habitantes). Se por trás da tapeçaria passar um camundongo, e não um rato, excluo qualquer inferência sobre as consequências pestilenciais dessa passagem (e posso fazer isso porque essas consequências não estão previstas em Hamlet, mas em La peste estão).’ Traduzi o trecho de Dire quasi la stessa cosa (que, em português, traduz-se literalmente por Dizer quase a mesma coisa). Sei que o livro foi publicado no Brasil (pela Record, com o título Quase a mesma coisa), mas não tenho essa edição, por isso traduzi o trecho do original italiano. Disso tudo que eu disse aí, vou extrair três inferências: a primeira é que a prática da tradução se abstém da nostalgia de uma língua perfeita (à qual é possível atribuir maior ou menor concretude, a depender dos conceitos que cada um tenha acerca desse construto teórico), pois, se nos ativéssemos só a ela, não traduziríamos.

E o próprio Eco desenvolve reflexões sobre táticas, estratégias e estratagemas para se chegar a dizer quase a mesma coisa, quando não a mesma coisa (pois muitas vezes se diz a mesma coisa, por incrível que pareça, e ele mesmo não exclui essa possibilidade quando diz ‘em línguas diferentes termos aparentemente sinônimos possibilitam ou não elaborar as mesmas inferências’.

A segunda é que não sei como esse trecho foi traduzido na edição em língua portuguesa, mas posso afirmar com segurança que ele não foi traduzido exatamente com os mesmos termos que usei, embora tenhamos, eu e o tradutor do livro, dado a entender as mesmas ideias. A terceira é que, na verdade, o tradutor não traduz termos, mas universos, campos, esferas de significado que são indicados pela interpretação ‘que precede toda tradução’, nos termos do próprio Eco. Só para lhe dar um exemplo, essa interpretação ditou aos editores da tradução brasileira que o termo dizer deveria desaparecer da tradução do título. Assim é a tradução.

A sua última tradução, recém-lançada, Número zero, teria algo próximo de uma perfeita ficção abonada intensamente dentro da crítica feroz do autor à comunicação de massa ou, de outro modo, pelos limites da informação? Acho que é tudo isso e muito mais. Aqui no Brasil, as resenhas foram unânimes em dizer que o livro trata do ‘mau jornalismo’. E pelo menos ao meu conhecimento não chegou nenhuma que se aventurasse a ir mais longe. Ora, o que Eco faz nesse livro é retratar com tintas fortes uma prática comum a todo veículo de informação: a interpretação dos fatos à luz dos interesses de determinado segmento social que esteja por trás desse veículo, que o sustente. Disso não se escapa, e imaginar que as coisas são diferentes é ingenuidade. No caso do jornal fictício de Eco (Domani, ou seja, Amanhã), a intenção da ‘interpretação’ é a chantagem (por isso as tais tintas fortes a que me referi). O que seria então o ‘bom’ jornalismo? Talvez aquele que se limitasse a ‘interpretar’ o mínimo possível, dando voz a interpretações diferentes.

O grau deletério da (inevitável) interpretação é a manipulação, quando não a pura e simples mentira. Isso caracterizaria o ‘mau’ jornalismo. Acho que, no Brasil, batendo nessa tecla, as resenhas prestaram um favor ao leitor porque o levaram a ver grande parte das práticas da nossa imprensa tupiniquim naquilo que Eco relata ficcionalmente. Mas, como afirmei acima, o livro não se resume a isso. E aí entra Eco, o semioticista. A que pode levar a constatação de que tudo é interpretável e interpretado? A graus diversos de desconfiança em relação à ‘verdade dos fatos’, à suspeita de manipulação e de mentira.

Essa suspeita pode chegar à paranoia que, em Número zero, é personificada por Braggadocio, aquele que desconfia de toda e qualquer informação, desde o manual técnico de um automóvel até a morte de Mussolini. Esta última ele ‘interpreta’ como uma não-morte: para ele, Mussolini teria sobrevivido à guerra, em seu lugar teria morrido outro. Braggadocio não acredita na informação de que aquele ser dependurado na trave de um posto de gasolina era o Duce. Acontece que a interpretação alucinatória deste fato é acompanhada por outras interpretações sensatas acerca de fatos comprovados (como a existência da organização Gladio e das conspirações que cercaram a reconstrução europeia após a Segunda Guerra no ápice da guerra fria).

A coexistência de interpretações febris e interpretações razoáveis acaba provocando a contaminação de um tipo de interpretação pelo outro: o que é verossímil acaba lançando suas luzes sobre o que é meramente insano, embora o inverso também possa acontecer, ou seja, os traços de inverossimilhança serem tão fortes que acabem transformando em duvidoso até aquilo que não deveria ser, pelo simples fato de tudo fazer parte de um mesmo discurso.

É o que acontece com o discurso de Braggadoccio: a sua ficção é tão bem construída, que a presença de fatos indiscutíveis ao lado de outros especulativos confere cunho de verdade a estes últimos e à teia de elos que os une. Aí está toda uma teoria da interpretação. Mas não é só isso, porque ela serve de base a uma série de dados culturais, políticos e históricos de um período conturbado da Europa e, em particular, da Itália.

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Paulo Vasconcelos é escritor, crítico literário e colaborador da São Paulo Review

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