S e eu contar, ninguém acredita. Foi mais ou menos assim. Maximiliano era o tipo do cara de apartar briga. Não xingava, evitava trombadas no ombro, chegava no horário marcado, na verdade, meia hora antes, ele não sabia, mas o víamos adiantado e se escondendo na esquina para ninguém perceber sua presença antes do encontro. Maximiliano gostava do barulho das goteiras quicando nas calhas do telhado do vizinho e do cheiro de etanol do posto de gasolina. Maximiliano cuidava dos cães e gatos do bairro, agendava em seu caderninho o dia e o horário dos passeios com cada pet. Alimentava-se pouco no almoço, um punhado de arroz, uma concha de feijão, um filé de frango mal passado e duas folhas de alface temperadas com sal e azeite, Maximiliano abominava vinagre. Depois de trinta e três anos ocupando o mesmo teto que seus pais, Maximiliano decidiu se mudar. Ele e seu novo amigo e futuro companheiro de apartamento pegaram o Cometa das dez e quarenta e cinco da noite na rodoviária, passaram pela Washington Luiz, Anhanguera e, por fim, a Bandeirantes. Na cidade grande, Maximiliano foi à procura de emprego, carregando uma pasta transparente de cor azul e texturas verticais, pegou a linha vermelha do metrô, desceu na amarela e fez baldeação na Ana Rosa, destino Tucuruvi. Espalhou currículos pelo bairro, o zelador de seu prédio o informou que na Zona Norte seria mais fácil de conseguir trabalho. Maximiliano tentou em autoescola, lan house, petshop, mercadinho, adega, loja de calçados, farmácia, assistência técnica, vendedor de capinhas personalizadas de celular, ring light e balconista de pizzaria, era bom em tirar pedidos. Nada. Desiludido, voltou para seu apartamento e se jogou no colchão. Queria dormir, ainda eram quatro horas da tarde, estava exausto e precisava de energia para lavar a roupa abarrotada havia cinco dias no canto do quarto. Não passou de meia hora de sono e Maximiliano foi acordado por seu companheiro de apartamento, André. Carregava uma mochila preta no ombro. André estava ofegante e suava nas mãos, dava para ver as manchas em sua camiseta retrô alaranjada da seleção da Holanda de 1974, ele sabia decorada a escalação da final contra a Alemanha, de Jan Jongbloed a Johan Cruyff, o dito Carrossel Holandês, amargou o vice-campeonato, mas ficou marcado como uma das maiores equipes futebolísticas da história. Foi isso que seu pai lhe falou. Mas não foi sobre Copa do Mundo que André havia vindo falar, Maximiliano esfregou os olhos e aguardou o colega de apartamento começar o assunto. André abriu o zíper da mochila, penetrou a mão no forro, descolou o velcro, algo como um esconderijo, e tirou dali um revólver. Puta que pariu, André. Maximiliano pulou do colchão igual cão puxado pelo rabo e foi até a janela. Olhou para os prédios da frente, ninguém bisbilhotando, recompôs-se e pediu explicações a seu colega de apartamento. Ele havia comprado o revólver em um antiquário da Rua São João, esquina com Alameda Glete. O revólver era uma pistola calibre trinta e oito, oxidada fosca com cano curto de 70 a 76 milímetros, tambor com capacidade de seis balas, porte velado, punho preto de borracha anatômica, o disparo mais preciso é de três segundos. Discreta, de raias pequenas e leves, sendo de mira com inserto, é confortável e fácil de esconder, cabe no buraco do assoalho ou atrás da privada. Maximiliano pediu que André levasse o revólver para longe do apartamento, Seu parceiro de apartamento lhe respondeu não ser possível, pois precisava da ajuda de Maximiliano, que tipo de ajuda, retrucou indignado, preciso que você fique com a arma por uma semana, vou viajar, pra casa dos meus pais e não posso levar pra lá, porra, André, e por que comprou, cara, olha pra ela, é linda, né, não? Não fode, o que é que eu vou fazer com um revólver em casa? É só esconder, deixar em algum lugar onde você nem usa que a semana passa rapidinho e, quando eu voltar, vejo o que faço com ela. Não, caralho, bicho, isso é inaceitável. Não vem com moralismo, Max, é por uma semana, por favor. Maximiliano coçou a testa, bateu duas vezes com a palma da mão na nuca, deu um grito tímido de raiva, balançou a cabeça e disse não poder fazer isso, eu não roubei, Max, eu comprei, é minha, não vai dar beó, não é isso, André, rapaz do céu, cacete, eu nunca vi uma merda dessa de perto e agora você me traz uma pra dentro de casa, é mais ou menos isso, Max. André, você tá querendo alisar onça no lugar de gato? Não, Max, meu amigo, vai ser divertido. Divertido? Posso tropeçar nela e meu sangue vai enfeitar a sala inteira, quando você voltar, te peço, por favor, que limpe o teto cheio de pedaços do meu cérebro, aí você vai ver o que é diversão. Max, por favor, fica com o revólver, é só por uma semana. Só por uma semana.

Escrito de spray vermelho na parede

da esquina da Angélica com a Martinico Prado:

Não fomos feitos para a mesma estrada.

Existem dois tipos de pessoas, as que estão paradas no século passado e as que não sabem estar no novo século. Qual deles você é? Maximiliano observou o garçom e não conseguiu responder. Pagou a conta e saiu do bar, desceu a Brigadeiro Galvão, queria chegar ao apartamento e assistir ao jogo de futebol, Corinthians estreia na Libertadores, antes, decidiu comprar um pacote de amendoim japonês e seis latinhas de Stella, passou no Dia, só tinha latão de Brahma gelado, pegou três e levou duas barras kit kat. Na fila do caixa, à sua frente, um policial, talvez saindo do serviço, talvez corintiano e fazendo o mesmo que Maximiliano, comprando besteiras para comer durante a partida de futebol. Na cesta dele, notavam-se quatro papeis higiênicos, seis longs de Skol, um saco de Doritos de novecentos gramas, além de uma dúzia de ovos caipiras em caixas de papelão verde, Granja Dois Irmãos, escrito na etiqueta ao centro, linguiças fininhas da Sadia, um pedaço de bacon no saco a vácuo, cinco macarrões instantâneos de sabores variados – carne predominava – e um tubo de Ketchup apimentado. Na saída do mercado, Maximiliano percebeu o policial no meio do quarteirão, estava parado com as sacolas no chão, celular na mão, digitava, enviava mensagens? Maximiliano desconfiou, considerou ter sido seguido, capaz? O policial de tocaia, estudando seus passos? Ele era bom. Maximiliano só percebeu agora, não havia esbarrado com ele no bar nem na ida à padaria pela manhã. Maximiliano estava com a testa empapada, o pescoço oleoso sobressaindo da gola da camiseta rosa, puxou um maço de barba do queixo, uma forma de raciocinar e arquitetar a escapada. Tô sendo seguido, já era, vou ser preso, fodeu. Maximiliano decidiu não entrar no prédio, perderia o primeiro tempo do jogo, aproximou-se do policial, procurou encará-lo, passou rente ao braço esquerdo dele e continuou seu trajeto contrário, com pressa. O policial não o seguiu, continuou parado, bisbilhotando o celular. Aliviado, Maximiliano retomou o percurso até seu apartamento, fechou apressado o portão e visualizou a rua mais uma vez, ninguém de farda por perto. Maximiliano tomou o elevador, quarto andar, deu duas voltas na chave, retirou os sapatos e os jogou no corredor, deitou no sofá da sala, respirou fundo três vezes, enxugou o rosto e a nuca na fronha do travesseiro, pegou controle remoto e sintonizou no jogo, Corinthians vencia por um a zero, abriu a latinha de Brahma e despejou os amendoins na mão.

O medo é capaz de ferver o corpo e evaporar veio de músculos pelos poros, tremem-se as circulações e paralisam o coração por um milésimo de segundo. Maximiliano tentou raciocinar o ocorrido na rua, por que estaria sendo seguido? O susto à espreita, o bote poderia ser letal, a suspeita são dentes caninos na jugular. Precisava se acalmar, ter segurança. Maximiliano se ajoelhou de frente à pilha de roupas sujas no canto de seu quarto, cavou as bermudas, cuecas, camisetas, calças, meias, lençóis e, no fundo – escondido enrolado em uma camiseta polo vermelha –, retirou o revólver. O desejo amarra a cautela num poste e sai às ruas pra causar, Maximiliano passou o dedo indicador no cano da arma, deslizou a vareta do extrator, arranhou o suporte do tambor, tateou o gatilho, desenhou com os dedos seu formato, os nervos reagiram à tentação do aperto do mecanismo, o revólver estava carregado, seis deita-corpos, Maximiliano hesitou e agarrou o guarda-mato, logo em seguida pegou no cabo, levantou e baixou o braço, sentiu o peso do revólver e o devolveu à montanha de roupa suja. Maximiliano queria dormir, bateu o cansaço, foi até o colchão. Apagou a luz do quarto, pegou o celular e pesquisou sobre armas, escorregou o dedo, passou pelas matérias de roubo à mão armada, como desarmar um ladrão, observou as perguntas recorrentes sobre qual o preço de um trinta e oito ou qual o trinta e oito mais em conta, revólver com condição especial de preço, dez vezes sem juros, 38SLP, arma usada, oito tiros, seis tiros, nove, munições, homem é preso por matar à bala sua namorada, a polícia averigua se foi crime passional, modelo RT838, bandidos disparam contra a viatura da PM, menor circulava com automática pendurada na bermuda, mata os pais e se suicida, qual o tamanho do buraco de uma arma de fogo, como levar uma arma escondida para a escola, criança perde a mão ao brincar com arma do pai, avô mata filho com revolver nunca usado na guerra, rapaz manuseia arma do século XVIII, precisa ter empunhadura, desmontagem, aprimoramento e montagem, mudou a contravenção penal, use uma arma com o cano dobrado,  em estoque, RT410/5 36, metralhadora, cuatro pulgadas, uma vez disparado é morte na certa, Suporte-Trilho-Oxidado-Luneta-Carabina-Rifle-Puma, center fire caliber, compromisso com a excelência,  As primeiras impressões de uma Taurus, G3Toro9mm, conferência e preparação, clube de tiro na São Bento, vinte minutos de carro, uma hora a pé, trinta e sete minutos de metrô e ônibus. Manual de armamento e manuseio seguro, Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador, CACs, cartilha do seu revólver. Maximiliano dormiu imaginando a gélida sensação do ferro na pele.

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O conto Eleonora Gunn faz parte de Muqueta, novo livro de Jorge Ialanji Filholini. A obra traz histórias de protagonistas que refletem, em primeira pessoa, sobre a solidão, o pessimismo em torno de um futuro, a perda fatal de pessoas próximas, o conflito de amizade, questões sociais, memórias perturbadoras e o panorama político dos anos anteriores. Muqueta inaugura o selo EditoRia, da Ria Livraria, e será publicado em junho e, a pedido do autor, será vendido por no máximo R$15,00.

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Jorge Ialanji Filholini escreveu os livros Somos mais limpos pela manhã (Selo Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti, e Somente nos cinemas (Ateliê Editorial, 2019).

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