* Por Lorraine Ramos Assis *

Milena Martins Moura (1986), poeta, editora e tradutora, é um dos nomes em destaque nos últimos anos dentro do campo da literatura brasileira contemporânea. Editora da revista Cassandra – voltada para produções de autoria feminina -, autora de quatro livros, tradutora e pesquisadora das produções literárias sobre o erotismo, Milena lança seu mais novo livro “O cordeiro e os pecados dividindo o pão” (Editora Aboio/2023).

A composição poética dessa obra pode ser analisada sob o prisma dos dois elementos que dão título a essa resenha. Ao imprimir o sagrado através do corpo, a escritora transforma o feminino diante da transcendência entre o mundo metafísico e o cotidiano relatado em seus versos, seja na cidade de Ouro Preto até lugares não nomeados, subvertendo-os à interpretação do leitor para que ele descubra do que se trata dada as narrativas ao longo do livro.

Algumas figuras tornam-se comuns: corpo, carne, língua, vida e morte. São fluxos de consciência, estrofes e versos amparados pela voz frenética do eu lírico que torna visível a construção de imagens. A todo momento da leitura, os textos se mostram em aspectos ora interrogativo/questionador, ora afirmativo. Retirar lições dos “maus presságios” dos “feitos que não deviam ter sido”, mas ainda perceber que um corpo de uma mulher é como o fogo. Ele não é consumido pelo último.

Em paralelo com o sociólogo e crítico literário René Girard (1923-2015), o sagrado está relacionado à violência, tal qual o erotismo para Georges Bataille (1897-1962). No primeiro poema de “O cordeiro e os pecados dividindo o pão”, podemos notar associações não somente do sagrado, mas também do profano. “O sacro e o santo/molhados da espera/com a sede dos abstêmios/e dos crédulos em desgraça/e eu graal sacrílego/estou nua e disso não me envergonho”. A força da enunciação se insere em tons sensoriais, evocando um quadro de símbolos que nos remetem a figuras divinas, e nelas estão dimensionadas a afirmação do desejo de não se sentir pertencida, pois quem narra o poema não se envergonha do ato considerado profano.

Após o trecho acima, o sinônimo do verbo molhar também torna-se parte da configuração da obra, a exemplo do título “apenas um poema cuspido antes da chuva”. Cuspir é o ato de se expurgar do corpo, da boca, algo que não se deseja (ou que é forçado a não desejar). Põem para fora o que é impuro, igual ao profano, caracterizado por elementos tanto puros quanto impuros. “e existe luto em morte/e existe luto em vida/quem é vivo é sempre o morto/de outro vivo/morando entre os dentes/debaixo da língua”.

Em diálogo com autoras como Hilda Hilst e Albertina Bertha, Martins se arma de recursos tais quais metáforas sensoriais, o lugar da mulher na sociedade, o erotismo voltado tanto para a esfera introspectiva e crítica do corpo e sua sinestesia. Em “Poemas malditos, gozosos e devotos (2005)”, de Hilst, a aproximação com Deus se dá pela linguagem, tanto por aspectos sintáticos, da sintaxe e seu jogo de palavras quanto pelas temáticas recorrentes da autora.

A obra é constituída por uma relação dialética, tendo em vista não somente figuras sincronizadas, repetidas, mas pela possibilidade do interlocutor e de sua impressão ao se deparar com um longo poema, e não poemas dispersos entre si. Milena, ao dar essa atenção ao eu, esse signo fragmentado, está a todo instante na libertação de si e de demais corpos femininos, colocando na esfera do sujeito poético a pulsão de criar um lugar, e não o lugar-comum de um corpo o qual se sente subalterno.

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Lorraine Ramos Assis é escritora e crítica, autora de O duplo refletido (Folhas de Relva Edições)

 

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