* Por Lúcio Humberto Saretta *

Autoestrada para o nada

Gaivotas voam entre mastros e as nuvens cinzas do fim da tarde. Apoiado na mureta, um jovem observa a azáfama de marinheiros puxando cordas e fazendo nós sobre o convés. Gritos eram dados e velas eram içadas, até que um dos marinheiros soltou as amarras, e o barco lentamente foi se afastando. À medida que o barco ganhava águas profundas, o rapaz deixava-se levar por sensações inquietantes, como, por exemplo, a ânsia em desvendar o seu futuro como jogador de futebol.  A sua história, hoje sabemos, seria repleta de episódios curiosos, belos e perturbadores.

Antes de ser vendido ao Genoa, Gigi Meroni (foto) vestiu a camisa do Como, clube da sua pequena cidade natal. Na urbe portuária de Colombo, Gigi logo caiu no gosto popular, muito graças às suas picardias e fintas que deixavam os zagueiros atônitos. Tanto é assim que a sua transferência para o Torino, em 1964, gerou fortes protestos entre os aficionados rossoblu. De qualquer maneira, na fria Turim, Gigi continuou a mesmerizar as audiências, novamente se tornando ídolo da torcida. Fora de campo, Gigi era todo um personagem, portador de manias que desorientavam a rígida sociedade italiana da época. Em vez de passear com um cachorro, Gigi gostava de passear com uma galinha amarrada em um barbante; em vez de comprar roupas em uma loja, o próprio Gigi desenhava os seus trajes; em vez de namorar uma moça solteira, Gigi apaixonou-se e foi morar com uma mulher casada. A sua vida privada tinha dessas coisas, e o ponteiro direito que escondia a bola com astúcia dos rivais não tinha pudores em exibir os seus dramas mundanos. Após mais um dia de treino sob a batuta do técnico Nereo Rocco, Gigi chega ao seu lar: um sótão na praça Vittorio, no centro da cidade. A noite cai. Dando vazão à sua veia artística, a tela disposta sobre o cavalete, as tintas de várias cores na aquarela e o pincel em sua mão, Gigi pinta. Olhos e cabelos de negror brilhante, o nariz um pouco pontudo, assim como o seu queixo. O autorretrato de um ser à margem, como um animal selvagem, frágil e impossível de ser capturado.

Na manhã seguinte, através da janela da sua pequena habitação, Gigi observa as turbas espessas que se movimentam para ir ao trabalho. Lentamente, enquanto soa o apito, muros cinzentos engolem os magotes de operários, até que os portões da fábrica se fechem. Na praça, pombos procuram por migalhas no chão, bondes passam e crianças seguem o rumo da escola. O jornaleiro grita anunciando as novidades, e um elegante senhor degusta um cigarro sentado à mesa de um café. Entretanto, no interior da fábrica agora tudo é movimento e o murmúrio febril da linha de produção. Máquinas e engrenagens funcionam a todo vapor, irmanadas aos operários que lutam insensivelmente sem ver a luz do dia. A cidade de Turim é o berço da indústria automobilística italiana, e a FIAT o seu principal esteio.

O ambiente interno das fábricas, contudo, nem sempre era pacífico. Quando a Juventus, controlada pela família Agnelli, ofereceu uma fortuna pelo passe de Gigi Meroni, uma pequena revolução teve início. Como a família Agnelli era também dona da FIAT, muitos operários torcedores do Torino ameaçaram boicotar o trabalho caso a “Velha Senhora” rapinasse o seu ídolo. As refregas entre os dois clubes de futebol da cidade, aliás, eram uma constante, dentro e fora das quatro linhas do campo. Uma das pilhérias recorrentes aplicadas pela torcida grená era a de que os operários torcedores da Juventus estariam, ao comprar o ingresso para os jogos do seu time a cada domingo, apenas devolvendo o dinheiro recebido pelo patrão no fim do mês. De qualquer maneira, o primo rico deixou o primo pobre em paz, e a transação envolvendo Gigi acabou não prosperando.

Em outubro de 1967, após mais uma partida do Torino pelo campeonato italiano, os jogadores voltavam para o conforto do seu lar. Tendo sido uma das peças fundamentais na vitória sobre a Sampdoria, Gigi ansiava reencontrar o seu amado sótão, suas telas e pincéis. De repente, ao avançar instintivamente para atravessar a rua, Gigi foi tolhido por um carro. A farfalla granata saía de cena com apenas 24 anos de idade. A fatalidade comoveu toda a Itália, mas sobretudo as pessoas simples, como os marinheiros de Gênova e os operários de Turim. A torcida do Torino, após a perda do seu fabuloso esquadrão dos anos 1940, em um acidente aéreo, via em Gigi uma espécie de redentor e filho predileto. Agora esse filho era arrancado dos seus braços, como se o destino estivesse a zombar e castigá-la, sem um motivo aparente, outra vez.

Como disse Pitigrilli, “a mais bela e sanguinolenta conquista da máquina é o homem”. Graças à busca frenética pela conquista dos céus, o “Grande Torino” havia perecido; graças à ânsia pelo progresso nas cidades, Gigi Meroni perdeu a vida. De um modo curioso e perverso, a certa altura da história poderíamos dizer que o papel de ídolo em nossa sociedade passou a ser ocupado pelo automóvel, e não mais por um ser humano, fosse ele um cantor ou jogador de futebol. Possuir um carro se tornou um símbolo de status, e as pessoas começaram a colocar essa espécie de deus de quatro rodas sobre um pedestal. As mais variadas marcas e modelos, cores e designs habitavam os sonhos de consumo do cidadão ordinário; o ronco do motor do carro era algo sedutor, e muitos fizeram dele uma quimera e uma razão para viver. Autoestradas foram construídas para possibilitar o tráfego cada vez maior de veículos, tornando cinza paisagens que eram verdes ao redor do planeta.

Alguns anos depois do desaparecimento de Gigi Meroni, enquanto esperava a chegada do ônibus, Carlyle relembrava momentos da sua juventude e do tempo distante em que também ele fora capturado pela mística e o fascínio do automóvel. Nascido no interior, o elegante rapaz e filho de família rica acabou rumando para Belo Horizonte, onde, na década de 1940, tornou-se jogador do Atlético Mineiro. Carlyle era uma figura à parte, desfilando com seu carro pelas ruas da cidade, em uma época em que poucas pessoas tinham semelhante privilégio. Vestindo a camisa branca e preta do “Galo”, Carlyle revelou-se um elemento mordaz e impetuoso. Amiúde, no calor das partidas, Carlyle surgia na área rival com sua fleuma característica, pronto para impulsionar investidas e gols do ataque atleticano. O time formado por Kafunga, Chico Preto e Murilo; Mexicano, Zé do Monte e Afonso; Lucas, Carlyle, Lauro, Lero e Nívio marcou época, sendo recitado nas ruas e bares como um poema de rima bela e misteriosa.

Um ônibus surge no horizonte, trazendo Carlyle de volta à realidade. Mas, à medida que se torna possível ler o destino do coletivo, o antigo atleta conclui que terá que esperar mais um pouco. Carros passam velozes, a fumaça negra e oleosa se dissipando até que Carlyle mergulhe em devaneios outra vez. Em suas reminiscências, agora Carlyle vê a cidade do Rio de Janeiro e os seus dias com a camisa do Fluminense. O campeonato carioca de 1951, do qual Carlyle foi o artilheiro, suscita um torvelinho de emoções pálidas e apaixonadas. Na ocasião, o Bangu do craque Zizinho foi um adversário duro na luta pelo título. Mas o Fluminense era uma máquina bem azeitada pelo técnico Zezé Moreira, e o caneco acabou indo para as cristaleiras do clube tricolor. Com ternura, Carlyle lembra dos seus companheiros de ataque Telê, Didi, Orlando “Pingo de Ouro” e Joel; lembra do final da sua carreira, da volta para Belo Horizonte e do trabalho como comentarista de rádio; lembra, ainda, das mulheres que amou e das brincadeiras da sua infância. E assim Carlyle partiu, subitamente atropelado por um motorista bêbado que invadiu a parada de ônibus.

Como se fossem bólidos do mal, os carros ceifam vidas diariamente, perpetrando um banho de sangue sobre o asfalto e fazendo com que lembremos das palavras do pensador Karl Kraus. Dizia ele: “o progresso técnico deixará apenas um problema: a fragilidade da natureza humana”. De fato, não é possível haver uma tragédia sem que haja um motorista atrás do guidão. A mesma debilidade que custou a vida de Carlyle, também custou caro para Cleveland Williams. Flagrado por policiais bebendo e dirigindo em uma estrada no Texas, o boxeador acabou sendo alvejado por um tiro ao resistir à prisão. Levado a um hospital, Williams sobreviveu, mas o episódio mudou para sempre a história do boxe.

Quando Williams enfrentou Muhammad Ali, em 1966, a sua força física e psíquica não eram mais as mesmas. Com a bala ainda alojada em seu corpo, enfrentando um oponente mais jovem e que, segundo especialistas, teve a melhor atuação da sua vida naquela noite, Williams foi nocauteado no terceiro assalto. Foi uma luta na qual Ali, de fato, dispôs para o mundo o ápice das suas formas técnica e muscular, minando as defesas do oponente com golpes certeiros enquanto flutuava como uma borboleta ao redor do ringue. De qualquer maneira, e, embora seja lembrado como um dos maiores pugilistas da história a nunca ter sido campeão, Williams poderia ter ido mais longe em sua carreira não fosse o incidente ocorrido dois anos antes. O tempo passou e Williams continuou sofrendo com as sequelas. Em 1999, quando voltava para casa após fazer um tratamento de diálise, o ex-boxeador foi atropelado por um carro. O motorista fugiu. Acostumado com uma luta justa nos ringues, onde dois homens com o mesmo peso trocam golpes, Williams não resistiu à força brutal da engrenagem motorizada que o pegou de surpresa.

Alarmados pela estranha banalidade de mais um dia na cidade, transeuntes observam o corpo do outrora galante pugilista estendido no chão. Entretanto, aos poucos a turba segue adiante, mansamente obedecendo ao mórbido e impassível ritmo dos carros ao redor.

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O texto faz parte do livro O beijo na lona – Crônicas de craques e crepúsculos, de Lúcio Humberto Saretta (Folhas de Relva Edições, 2023) . O autor é natural de Caxias do Sul (RS). Formado em Publicidade e Propaganda pela PUC-RS e Biblioteconomia pela UCS, é autor dos livros Alicate contra diamante, Crônicas douradas, Lições da barbearia, O louco no espelho (crônicas) e O cão e o violão (poesia). Como coautor, integrou as coletâneas Tetraedro (crônicas), Onisciente contemporâneo, Translações singulares, Não culpe o narrador, Tudo soma zero e Vigílias (contos).
Por duas vezes vencedor do Concurso Anual Literário, promovido pela Biblioteca Pública Demétrio Niederauer de Caxias do Sul. Com o conto “O menino, a praça e o tempo” foi finalista do concurso Brasil em Prosa, promovido pela Amazon, Samsung e Jornal O Globo, em 2015. Colaborou com diversos sites, como, por exemplo, Papo de Bola, Campeões do Futebol, Final Sports, Amálgama, Artistas Gaúchos, Olá, Serra Gaúcha!, Ludopédio, Revista Sepé, entre outros.

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