* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

A partir do título desse ensaio proponho uma reflexão sobre os usos das linguagens no nosso cotidiano LGBT+.

A linguagem é política. No mês de junho participei de inúmeras reuniões sobre diversidade e inclusão. Parece que só em junho é que o tema é importante. Pior, é só nesse mês e nesse contexto que se presta atenção no que se diz sobre LGBT+. Houve uma que me chamou bem atenção e não era sobre esse tema em específico. Era uma reunião que discutíamos alguns resultados de pesquisa e havia a presença de uma pessoa com um cargo de gestão de diversidade e inclusão em uma organização bem importante. Lá pelas tantas, no calor da discussão da reunião, eu soltei um caso para ilustrar o que estava argumentando sobre o que discutíamos que uma pesquisa realizada pelo IBGE feita pela primeira vez coletando dados sobre orientação sexual da população brasileira mostrou resultados que apenas uma pequena, ínfima, porcentagem (1,8%) da população se declarava LGBT no Brasil[1]. As expressões, entre blasé e formalidades de empatia, foram: “nossa, que absurdo”, “nossa, que errado”, “nossa, que sem noção”, “nossa, isso está errado”. Completei, para chacoalhar e problematizar o clima “clean” corporativo, que estava tudo muito estranho na pesquisa, pois o que eu mais conhecia era “bixa e sapatão” por todos os lados. O aparente autocontrole corporativo virou fumaça quando usei esses termos, os olhos da fulana a tal da gestora em D&I, se arregalaram, a boca torceu para o lado esquerdo e o rosto fechou em reprovação automaticamente. A reunião azedou dali em frente porque percebi que falar “bixa e sapatão” era como se eu tivesse cometido em grande erro e não soubesse me comportar adequadamente, eu passei a ser lido como um selvagem em meio ao civilizadíssimo mundo corporativo. Percebi o climão que havia se instalado e logo, também, percebi a tragédia anunciada que é a despolitização personificada em um cargo de D&I pelas empresas. Acredito que ao assumir um lugar de poder em D&I em como gerir corpos, mentes, carreiras e interesses de um grupo é uma posição que exige profunda adesão, conhecimento e engajamento nas políticas de linguagem e situações como essas não podem passar desapercebidas. Linguagem é poder, linguagem é identidade, linguagem é política são as premissas chaves nos campos da linguística contemporânea, estudos culturais e sociolinguística. Qualquer forma de repressão ou ocultamento de uma expressão de linguagem pode esbarrar em preconceitos e tentativas de silenciamentos. A reivindicação é que “bixa” ou “sapatão” sejam categorias de linguagem de orgulho e respeito e não de xingamentos como sempre ouvimos das pessoas agressoras e opressoras. Revirar de lugar essa lógica de agressão, ou seja, transformar a palavra com intenção de ferir em uma expressão de identidade é uma forma de resistência nossa do movimento LGBT+. O filósofo espanhol Paco Vidarte (1970-2008), em seu livro “Ética Bixa” (2019), em especial no capítulo “A bixa como sujeito político” chama atenção e convoca para o nosso empoderamento da “bixa”, “sapatão”, “maricona”, “trava” e etc como forma de afirmação da nossa identidade, que mais tarde será chamada de queer, antes de qualquer outra performance social. Ou seja, antes de nos apresentarmos como pessoas médicas, advogadas, professoras, devemos afirmar o que primeiro somos: bixa, sapatão, caminhoneira e trava. Depois vem outras formas mais bonitinhas de apresentação. Ou vamos cair na armadilha no que chamo de complexo do governador-candidato-corporativo-neoliberal: “eu sou um governador gay e não um gay governador”. Virgine Despendes (1969) não escreveu o livro “Teoria King-Kong” (2016), convocando as excluídas e as mulheres não padrões, para agradar pessoa gestora hetero-cis-branca de D&I de organização neoliberal disfarçada de inclusiva. Pelo contrário, propõe na mesma linha de Vidarte a subversão dos padrões de corpos e mentes do cenário do protagonismo político.

A literatura como forma de exposição das traquinagens da linguagem. A literatura não é um “objeto” que se agarra facilmente ou se faz curvar diante das grades da teoria. Subversiva, a literatura espraia no espaço indisciplinado, anárquico da criação, da subversão e da crítica da linguagem. Posso mostrar dois exemplos bem ilustrativos, no livro de contos “Em nossa cidade amarelinha era sapata” da escritora Marina Monteiro (Editora Patuá, 2019), sobre como a imaginação literária nos faz traquinagens da linguagem.

O primeiro conto é “Bruschettas”. Na narrativa, uma personagem feminina vai à casa dos pais para um jantar. Um jantar que aparenta um mistério, pois será tratado um assunto importante. Há uma tensão no ar pelo lado da família sobre que assunto ela estava trazendo de tão importante. Por outro lado, a tensão não é pequena da personagem que é portadora de alguma revelação. A mãe corre de um lado para o outro arrumando o jantar. O pai tenta amenizar a tensão no ar com conversas aleatórias. Apenas o irmão mais novo, já sabendo do tema da reunião, observa calado a espera da tragédia prevista. O assunto é simples para qualquer pessoa: o anúncio do casamento. Sofia não demora muito, entre uma garfada e outra, de verter a notícia à mesa e causando um clima de indigestão complexo nos pais que não reagem bem a notícia. Questionamentos clássicos vêm à tona pela boca dos pais com facilidade colocando em xeque-mate o relacionamento, já longo de Sofia e da companheira, e até a legitimidade do sentimento de Sofia. Tal comportamento, para quem é LGBT+, não é novidade quando proclamamos nossos afetos, desejos e formas de relacionamento. Com o direito conquistado ao casamento, passamos a compartilhar direitos e privilégios civis antes apenas destinados ao mundo heterossexual. O mundo hetero-cis-normativo ainda não digere bem a extensão desse direito básico, então impera desqualificação e a tentativa de normatização de como as coisas devem ser para um casamento e de como devemos compartilhar afetos. É essa dimensão que a personagem Sofia vive ali na mesa com os pais quando comunica um passo importante na vida que em qualquer outra situação, hetero-cis-normativa, poderia ser motivo de festas e fogos de artifícios. A nós LGBT+ cabe as caras com expressões derretendo em reprovação com um posterior parabéns opaco e amarelado acompanhado de um “vocês sabem o que é um casamento?”. A confusão à mesa da família de Sofia avança ao ponto didático da linguagem quando ela tem que explicar ao pai que seu desejo afetivo-sexual é por mulheres e verbaliza que gosta de “buceta”. No auge desse clima, a mãe tenta amenizar que a filha gostaria de mais “bruschetta” que estão sendo servidas. A cena descrita por Monteiro é bem humorada e não há como não arrancar uma risada fácil da pessoa leitora. O interessante desse jogo é a traquinagem da linguagem para mostrar como a mãe da personagem está em fuga em lidar com o que a filha sente. A verdade sobre o desejo da filha causa um incômodo tão grande na mãe que uma simples palavra que descreve um órgão fisiológico passa a ser um horror e rapidamente o assunto tem que ser desviado. O incômodo é quase de uma psicanálise materializada em uma buceta vista como uma “bruschetta”. Em verdade, para as boas pessoas psicanalistas, vão adorar discutir e teorizar que o que a mãe de Sofia, inconscientemente, vê naquele instante não é uma bruschetta, mas uma buceta. Os mais aprofundados na relação da psicanálise com a linguagem, os lacanianos em que o “inconsciente é a linguagem”, arriscariam dizer ainda que a mãe de Sofia já sabia, inconscientemente, sobre o tema da conversa da filha, e preparou um prato especial não-fálico. Ou ainda os mais freudianos que vão arriscar em um “complexo de Electra” misturado com culinária. Talvez com a intenção de uma tentativa coletiva de “degustação”, “digestão” e “aproveitamento” de um tema espinhoso? O interessante é que bruschettas estavam à mesa para as pessoas provarem.

Há outro conto ainda mais interessante que expressa o labirinto da linguagem, mais precisamente as perversidades dos usos das linguagens. O texto leva o nome do livro “Em nossa cidade amarelinha era sapata” e que conta a narrativa de Cecília uma garotinha que gosta de brincar de um jogo de rua chamado “sapata”. Muitos vão conhecer essa brincadeira por “amarelinha”, ou seja, aquele joguinho de quadradinhos no chão que temos que pular do céu ao inferno. Jogo inocente que não há quem não tenha jogado alguma vez na infância. Porém, no conto de Monteiro uma tensão vai se instalar. Cecilia começa ouvir pela boca da própria mãe que “sapata” é a denominação daquelas mulheres pecadoras que gostam de outras mulheres e que, portanto, é algo do mal. Na cabeça da menina brota um questionamento interessante de que gostar de “sapata” pode ser algo ruim e quem gosta de sapata não vai para o céu. Cecília, que já começa a se perceber um corpo diferente da identificação com outras meninas, absorve o “mal” que a palavra sapata está colocada e troca por “amarelinha”. Monteiro, magistralmente, traz com esse conto a discussão de como os preconceitos são construídos já na infância por meio da linguagem, de como palavras podem ser oferecidas como malignas e isso passa a construir um repertório pejorativo no repertório de cada um. Ou seja, o preconceito é construído junto com o desenvolvimento da nossa linguagem. Nós vamos atribuindo significados múltiplos às palavras e construindo situações em que fatos comuns podem se transformar em armas poderosas de opressão. Sapata, no universo inocente e infantil de Cecília, era apenas o nome de uma brincadeira que logo passa a ser associado a uma experiência em que o mundo tradicional e preconceituoso traz como negativa. Monteiro nos apresenta ainda mais uma camada interessante de análise que é a agressão ser associada a uma brincadeira. Afinal, a palavra “sapata” está em seu conto entre a brincadeira e a perversão, a nova estratégia do agressor que é uma espécie de bicho que morde e assopra. É comum, principalmente, no discurso político atual quando um líder diz uma agressão X, espera a repercussão, e posteriormente, diz que não foi bem X que queria dizer, mas entre o X ou Y. A violência neoliberal do uso da linguagem está nesse espaço entre a brincadeira e a perversidade de dizer coisas, lugar em que não existe forma ou que ela pode assumir a forma que se quiser.

Então, eu posso te chamar de sapatão, querida? Não é uma pergunta rara quando alguém de fora do universo LGBT+ nos faz na tentativa de estabelecer uma intimidade ou em demonstrar empatia conosco ou ainda, o que pode ser pior, tentar ser a pessoa descolada e engraçada. Porém, não é uma situação simples. Ter esse nível de comunicação conosco não passa por nenhuma dessas categorias. Entre nós sim, é uma maneira de expressão de resistência. Para quem está de fora ajuda na resistência escutar apenas e não arregalar os olhos. Essa sensação de desconforto que esse conjunto de palavras causa é que precisamos mudar no mundo em geral e não apenas entre nós LGBT+. Nossas existências não podem ser encaradas como palavras feias ou xingamentos, pelo contrário são formas de identidade. Nenhuma das nossas identidades são negativas. A naturalização e a desarticulação dessas palavras da boca do opressor como uso de mecanismos de ofensas é uma arma importante nessa luta diária contra a LGBTfobia. O livro de Marina Monteiro oferece mais um desfile de excelentes contos que abordam de forma bem-humorada e crítica as existências lésbicas dentro do universo LGBT+. Retomando ao título, “Eu posso te chamar de sapatão, querida?”. A resposta é, primeira, mergulhar na radicalidade e anarquismo da literatura, como o livro de Marina Monteiro, para encontrar possibilidades linguísticas e imaginárias importantes para uma civilidade real da experiência de uma população. A empatia, então, por nossas identidades pode começar a ser construída.

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Referências bibliográficas

GNERRE, Maurizio. Linguagem, Escrita e Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p.3-7

DESPENTES, Virgine. Teoria King Kong. Tradução de Márcia Bechara. São Paulo: n-1 edições, 2016

MONTEIRO, Marina. Em nossa cidade amarelinha era sapata. São Paulo: Patuá, 2019.

VIDARTE, Paco. Ética bixa: proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: n-1, edições, 2019.

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[1] Uma referência sobre a repercussão da pesquisa do IBGE na imprensa: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/29-milhoes-de-adultos-se-declaram-homossexuais-ou-bissexuais-no-brasil-estima-o-ibge/

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Na foto, Virginie Despentes (divulgação) 

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em Teoria Literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França. Contato: danielmanzoni@gmail.com

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