* Por Nuno Ramos * 

Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social.”

(Graciliano Ramos, Memórias do cárcere, 1953)

O menino mais novo teve uma ideia e apresentou-a timidamente ao irmão. Será que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem-vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas cavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças que elas porventura carregassem.

Tirei essa longa citação de Vidas secas, de Graciliano Ramos, um retábulo quase medieval (a comparação é de Antonio Candido) de cenas orquestradas pelo ciclo da chuva e da seca. Há nessa pequena cosmogonia todas as forças que animam a obra de Graciliano — um sossego anterior às palavras e aos nomes, um descanso de coisas que não foram feitas por gente, oposto às forças imprevisíveis que essas coisas, quando nomeadas, despertam. Essa luta “moebiusiana” atravessa toda a sua obra, e vale a pena realçar seu desenho.

O entrecho de Vidas secas é conhecido: uma família (Fabiano, Sinhá Vitória, dois meninos sem nome e a cachorra Baleia), fugida da seca, chega a uma fazenda em ruínas, ali encontra trabalho e permanece enquanto a chuva permite, pondo-se novamente a caminho quando a estiagem retorna. Além desse grande ciclo mesológico (presente a cada página, em especialno temor que as personagens têm dele), tudo retorna no livro, espécie de ruminação de uma única consciência coletiva espalhada na família, na cachorra, nas coisas todas. O que têm em comum é essa estrutura cíclica característica tanto da natureza exterior quanto do que vai em suas mentes, de modo que o uxo de consciência, em vez de singularizar a psicologia de uma personagem, volta-se curiosamente para fora, incluindo o real minucioso, que fala através dele. Trata-se, de fato, de uma espécie de consciência única, talhada por frases-retorno, obsessões, manias, temas que voltam e voltam, num curioso estilo indireto livre que, mais do que aprofundar o ponto de vista de uma personagem, quer habitar a região entre elas. Não de todo nascidas, parecem mergulhadas aindaumas nas outras, de modo que o espaço entre a onisciência do narrador e a particularidade de cada personagem, característica do estilo indireto livre, é cosmogonicamente validado, aqui. A narração passa de uma personagem a outra sem dificuldade e por isso o capítulo sobre a morte da cachorra Baleia é tão natural — o narrador penetra no bicho como nos homens, sem que haja muita diferença entre eles. Há um animismo de fundo, uma partilha entre bicho, homem, clima e coisa, espécie de desgraça mútua que a todos irmana e contém, que influencia profundamente a voz narrativa.

Num ensaio já clássico, Eduardo Viveiros de Castro chama a atenção para a singularidade do animismo indígena. Seguindoa trilha das análises de Lévi-Strauss sobre o mito no pensamento ameríndio, que numa de nição geral trataria da perdade um tempo onde homens e bichos seriam iguais, Viveiros de Castro conclui que, ao contrário da suposição da biologia evolucionista moderna, não foi o homem que evoluiu do bicho (éramos todos animais e o homem evoluiu), mas o bicho que se diferenciou do homem (tudo era humano e os bichos perderam sua humanidade). “Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais”. Para o animismo ameríndio, tudo é humano, mas não ao mesmo tempo. Humano é aquele que se põe na posição do humano, aquele que ocupa, digamos, seu pronome — a onça, por exemplo, que pode devorar um homem, é quem está na posição humana ao atacá-lo, e sua vítima, longe de humana, vacilou (afastando-se, digamos, de sua aldeia, sozinha ou possuída por maus pensamentos) e deixou-se tomar por comida de onça. Se “Meu tio, o Iauaretê” (1962), conto de Guimarães Rosa em que a personagem se transforma metonimicamente na onça que descreve, presta-se sob medida para a análise dessa ideia, fico pensando se não há em Graciliano um outro acesso, também interessante. A fluidez do narrador em Vidas secas não vem justamente da capacidade de ceder sua voz — seu pronome? E, de modo geral, sua obra ao mesmo tempo econômica e multifacetária não terá no caráter vacante do eu seu interesse principal? Chega a ser difícil aceitar que Angústia e Vidas secas sejam livros de um único autor. A morte da cachorra Baleia tira sua força dessa fresta, e é talvez seu melhor exemplo. Tudo nela é humano, entendido aqui como o vivente capaz de definir seu próprio circuito. As preás, o céu de preás, a névoa descendo sobre ela, têm a intensidade e a brevidade dessa posição,que logo será ocupada por outro. É essa frouxidão pronominal que põe a consciência enojada de Graciliano e dos narradores de Graciliano em contato com os seres e o mundo, acionando um resíduo encantado por trás do inventário minucioso do que há e do que é. Sem ela, talvez toda a sua obra tivesse cado paralisada por uma espécie de repugnância consigo e com o mundo.

 Não é à toa que em seus livros pareça tantas vezes paradoxal que os narradores escrevam e que o próprio livro exista.

Imersa em sua espiral modorrenta, a família forma assimum indivíduo multifacetário, bastando-se. Há certa felicidade nessa dança das cadeiras descosida em que todos vão aparecendo, sumindo, voltando, como o ciclo mesológico. Os pequenos impulsos para fora — o desejo de uma cama, a necessidade de ir à cidade, o desterro causado pela seca — é que perturbarão seu equilíbrio. Forças externas sacodem a fusão e a homogeneidade dos cinco retirantes, como Fabiano logoverá, ao ser pisado, e posteriormente espancado, pelo soldado amarelo (de quem não se vingará, quando tiver oportunidade). Tomando a obra de Graciliano como um todo, o principal instrumento dessa perturbação será, de modo geral, a educação, e a alfabetização em particular.

Vale a pena transcrever, ainda que parcialmente, a longa lista de insultos à educação e à alfabetização em Infância (1945) — “arma terrível”; “maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas”; “dever sonolento”; “venci as miseráveis dentais”; “aterrorizava-me a lembrança do exercício penoso”; “quando iam cicatrizando as lesões causadas pelo alfabeto”; “as letras renitentes iriam afligir-me dia e noite, sempre”; “papelordinário, letra safada”; “desse objeto sinistro guardo a lembrança morti cadora de muitas páginas relativas à boa pontuação”; “desgraçada sílaba”; “eu embrulhava estupidamente a leitura”; “páginas detestáveis”; “desgraçado título”; “peguei com repugnância o antipático objeto” (o livro do Barão de Macaúbas) — culminando no adorável “Terteão”, nome próprio tirado do ditado pedante, a ser decifrado na leitura: “Fala pouco e bem, ter-te-ão por alguém”. Esse Terteão é o próprio alfabetizado, na visão de Graciliano — uma forma de escrita pedante que, um pouco como Dom Quixote na leitura de Foucault, ganhou pernas e veio efetivamente ao mundo. O ensino do alfabeto, em Graciliano, é quase sempre uma cena de tortura.

Em Infância, atravessa todo o livro uma luta entre um elemento dispersivo, um sono extenso, associativo e vago, espécie de leseira edênica, e um chamado à ordem, à lembrança (como o “onde está o cinturão?” com que o pai o espanca). A alfabetização é o instrumento dessa passagem, desse ingresso no mundo concreto e de nido dos nomes e dos homens. O narrador, no fundo, leva tudo a sério demais, acredita em tudo, como sua mãe, apavorada com o anúncio do fim do mundo na revista mensal que lia, de olhos arregalados e pronunciando alto cada sílaba. Infância é uma decifração perigosa de signos, com o castigo iminente morando em cada pergunta. Aprender é submeter-se a uma astúcia (empregada pelo pai terrível para atraí-lo para a leitura). “Os melhores [mestres] que tive foram indivíduos ignorantes”.

A poesia sonolenta e dispersiva, anterior ao nome e à forma, como um arrasto horizontal que atravessa o livro, é antagonizada pela estrutura vertical, hierárquica, imposta pelos que podem, pelos que leem, pelos que sabem. Ao éden associativo donarrador de Infância (e da família de retirantes de Vidas secas) opõem-se a educação e o conhecimento, como principais ferramentas do poder que têm alguns poucos sobre todos os demais. Esse poder é a face secreta de cada hífen, vírgula, dental, bilabial. “Uma lição de escrita”, um capítulo de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss (livro escrito em 1955, a partir de material anotado nas décadas de 30 e 40 — contemporâneo, portanto, das obras de Graciliano que examino aqui), que descreve em termos bastante pessoais uma “cena de origem” da escrita, caracterizada como astúcia e mímica do poder, mostra total confluência com o ponto de vista de Graciliano.

Claro que há também no livro uma força contrária — o encanto do menino que descobre a leitura (e que aparecerá, emtoda a sua ambivalência e potência destrutiva, na personagem Madalena, de São Bernardo [1934]). Atraída pela fábula, pelas histórias rocambolescas, essa força essencialmente evasiva parece capaz de criar janelas e trazer vento à arquitetura claustrofóbica que caracteriza o mundo dos narradores de Graciliano (o claustro de seu último livro — Memórias do cárcere [1953] —configura literalmente o que os demais já pressupunham). Mas, se dá lenitivo, a leitura de romances não faz frente à opressãoe à violência. A alfabetização é essencialmente uma arma do tirano, como o bordão e a palmatória. E se tantos narradores de Graciliano escrevem é ainda neste vetor de conforto, de analgésico, de acerto de contas consigo — de intervalo, em suma, diante da violência do real.

São Bernardo é nesse sentido o mais profundo livro de Graciliano, aquele no qual a educação e a alfabetização ganharão papel de destaque no próprio entrecho. Há uma consciência literária no narrador, desde a frase de abertura (“Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão de trabalho”), que chega às raias do inverossímil em pessoa tão bruta.

O mundo para Paulo Honório (que aprendeu a ler na cadeia e de lá parece nunca ter saído) divide-se entre alfabetizados e analfabetos — ou, ao menos, entre aqueles que utilizam a literatura como evasão (romances) e os Terteões da vida, que a utilizam como instrumento de mando e de opressão. É essa divisão que arruinará sua vida, ao colocar dentro de casa (e apaixonar-se por) uma professora, representante dileta do primeiro grupo (“Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal”). Madalena é a antipropriedade e a antiprodutividade juntas, e não apenas por não se adequar à lógica da avareza e da produção milimetricamente enxuta e regrada. Ao abrir um novo campo de signos, que Paulo Honório não domina, ela inverte de uma só vez todo o jogo vital de seu marido, transformando o dono de São Bernardo, primeiro, num completo despossuído (não é isso o ciúme?) e, em seguida, após o seu suicídio, num completo vadio (“E cruzei os braços”). Essa inversão absoluta é o grande tema do livro, e tem na alfabetização a sua espinha dorsal.

Todo o ciúme de Paulo Honório tem por matriz a tentativa desesperada de ler, de compreender o que Madalena escreve: “Comecei a mexer-lhe nas malas, nos livros, e a abrir-lhe a correspondência”; “[…] via embaixo um pedaço de escritório, uma banca e, sentada à banca, minha mulher escrevendo”; “Deixa ver a carta, galinha”; “Mostra a carta, perua”. A linguagem de Madalena é improdutiva e ambivalente, cometendo a imprudência de “desencadear as forças” terríveisque têm as coisas nomeadas, como temiam os dois irmãos no trecho de Vidas secas que citei no início. “O que eu dizia era simples, direto, e procurava debalde em minha mulher concisão e clareza. Usar aquele vocabulário vasto, cheio de ciladas, não me seria possível”. E, mesmo em terreno conhecido, o que Madalena dizia acenava à possibilidadede um mundo distante da produtividade, da propriedade, da reprimenda do relógio. “E se ela tentava empregar minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa”.

“Ocultar com artifícios o que devia ser evidente!”, esse o grande perigo representado por Madalena. Pois, diante do artifício, Paulo Honório transforma-se num… leitor. Comotodo ciumento, vê o mundo como uma produção incessante de signos que efusivamente dirigem-se a ele — do pio da coruja às cartas de Madalena que a velha Margarida levaria sabe Deus a quem. A potência de Madalena, assim, não é tanto erótica, mas poética. Ela abre o possível do mundo muito alémda força de vontade férrea de Paulo Honório, multiplicando-o, não tanto com o desejo que desperta, mas com a ambivalência e a improdutividade, com a “falta de medida” que imprime a tudo aquilo em que toca. E quando literalmente dirige-se a ele, como na carta de despedida que voa magicamente até suas mãos, Paulo Honório não consegue ler o que tem diante dos olhos (“Diabo! Aquilo era trecho de carta, e de carta a homem. Não estava lá o nome do destinatário, faltava o princípio, masera carta a homem, sem dúvida”). O princípio era ele, o destinatário era ele, o homem era ele. Madalena, na conversa mansa que têm antes de seu suicídio, recusa-se a esclarecê-lo sobre isso, transformando-o no sujeito ausente de sua própria existência. Tudo ainda é seu, mas ele mesmo já não está ali. Quando, depois da morte dela, pode ler a carta inteira e descobre a quem ela se dirige, já não tem importância nenhuma (“Li-a, saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade”). Frase que poderia (agora, ao final do livro) definir sua vida como um todo.

Mas algo ca para Paulo Honório da morte de Madalena: uma insuspeita passividade. O mundo vai desabando ao seu redor (“Entrei neste ano com o pé esquerdo”; “O resultado foi desaparecerem a avicultura, a horticultura e a pomicultura”), as dívidas crescendo, as cercas avançando sobre sua propriedade, e a isso tudo o narrador responde com inépcia inédita (“Me invadiu uma grande preguiça”). O livro é a colheita dessa inépcia — a atividade do narrador transfere-se da fazenda para o livro, o presente da enunciação une-se enfim ao presente do enunciado, num tristíssimo acerto de contas consigo. O self-made man em versão alagoana, fundador agreste de um capitalismo tenso, violento e produtivo, unindo trabalho próprio infindável e exaustivo, exploração da vida alheia e concessão sob medida ao poder político local, é transformado numa espécie de Padilha, o humilhado antigo proprietário de São Bernardo, dado ao ócio e à pândega, mas agora em versão deprimida e autoconsciente.

Se há em todo Graciliano uma felicidade analfabeta que aprópria existência do livro que se lê contradiz, em São Bernardo esse movimento é explicitamente tematizado. Mas com uma volta a mais no parafuso. A alfabetização de Madalena, avançada, ociosa e poética, é parente extrema da quietude analfabeta, corroendo por dentro o jogo minucioso das medidas, dosprós e dos contras que caracteriza a alfabetização de cadeia de Paulo Honório. É ela que desperta assim, às avessas e paradoxalmente, as “forças que as coisas porventura carregassem” para o dono de São Bernardo. O semianalfabeto Paulo Honório está do lado do bordão e a alfabetizada Madalena do lado da quietude. A literatura, assim, na versão Madalena, desperta o perigo dos nomes, mas para abrir um mundo novo de ambiguidades, pios de coruja, paus-d’arco com ores, num retorno às brumas dos primeiros capítulos de Infância. A quietude extraordináriada conversa entre Madalena e Paulo Honório na igrejinha, umadas mais lindas cenas da literatura brasileira, vem dessa ambivalência do signo, que diz mais do que parece dizer, e com a qual Paulo Honório entrará agora em contato de nitivo e brutal — pois é já como defunto que Madalena conversa, sem que Paulo Honório consiga perceber. Parecem, no entanto, juntos afinal, como nunca antes no livro. Ela, por ter desistido de escrever (já escreveu, deixou a carta para ele em sua cômoda); ele, por ter desistido de ler. A ambivalência fechou-se. Ela vai “descansarum pouco” (morrer) e ele cai num sono “embrulhado e penoso”.

“O relógio tinha parado, mas julgo que dormi horas”, “Quando cheguei em casa, o sol já estava alto”. Aqui começa de fato o livro de Paulo Honório, o livro que lemos, distante de qualquer “divisão do trabalho” — no momento em que o relógio quebra. As “negociações com gente que grita”, o assassinato do vizinho depois de uma visita para averiguar se corria o risco de ser ele próprio assassinado, a avareza como mensuração minuciosa e implacável do real, tudo cede passo à consciência exaustiva, depositada em cada detalhe, de que o livro afinal é portador — estilisticamente portador. O narrador, que não mais amealha riquezas, amealha agora concisões, precisão vocabular, ausência completa de efeitos de linguagem. Sua avareza transferiu-se ao estilo, unindo assim, naquilo que lemos, o binômio cindido para o qual Antonio Candido chamou a atenção: a ficção, vista como forma, com os recursos de quem aprendeu afinal, num sentido bastante pleno (e sofrido), a ler e escrever, e a confissão de quem teve acesso à vida antes e independentemente disso.

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O texto acima integra o livro Verifique se o mesmo (Editora Todavia), de Nuno Ramos, em que o artista visual e escritor analisa literatura, artes plásticas, cinema, futebol, canção popular, em ensaios sobre Tunga, Caetano Veloso, Glauber Rocha, Graciliano Ramos, Oscar Niemeyer, Nelson Cavaquinho, entre outros.

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