As Esferas do Dragão, primeiro trabalho de ficção do jornalista e pesquisador em filosofia e ciência da informação Duanne Ribeiro mescla autobiografia e fantasia, depoimento pessoal e referências da cultura pop, entre as quais se sobressai o desenho Dragon Ball, que dá a estrutura da narrativa. O tema do fundo da história é a morte – como diz a sinopse, o livro narra “a procura do autor por sete orbes mágicos para ressuscitar o avô”.

O avô de Duanne Ribeiro, Antonio de Oliveira, faleceu em 2009. As Esferas do Dragão parte desse acontecimento e se desdobra em uma epopeia que recupera uma série de relações afetivas, mergulhando na tessitura própria dos universos de familiares, amigos e conhecidos do autor. Isso no quadro de um mundo fantástico que costura imagéticas de várias origens e que é pontuado por dissertações sobre o que significa morrer.

O livro sai pela Editora Patuá. O lançamento acontece no sábado (6 de abril), das 19h às 23h30, no bar Patuscada. Veja o evento criado no Facebook aqui.

Leia os trechos iniciais do livro abaixo.

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Episódio 1 – Útero

O deus veio babuíno e astronauta.

Veio anunciar que a tristeza engendra a urgência da aventura. A epopeia deu-se à luz — como ervas daninhas nas frestas do asfalto — nos silêncios do meu choro. A morte do meu avô impunha partir em viagem: era mandatório encontrar as esferas do Dragão e ressuscitá-lo. Sete globos cristalinos e alaranjados, aldebarãs de oito centímetros de diâmetro esconsos em locais aleatórios nas lonjuras, identificados por cifras infantis — uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete estrelas — manifestações fragmentárias da joia Cintamani, provedora de desejos, apanágio de budas e leviatãs, força mística originária. Reunidas, invocarão o deus-réptil gigantesco, a singularidade da qual surgirá vigoroso — oitenta e uma escamas brancas de carpa, olhos vermelhos de coelho, chifres de veado cobertos de veludo, patas alvas de tigre armadas de quatro garras de águia, cabeça de camelo, pescoço de cobra, ventre de vôngole e orelhas de touro moucas. Defronte à sua pujança, minha fé ofidiófila estupefata, demandarei. Horrível e bom, concederá. Na noite estrelada haverá um abraço.

Mas, antes, babuíno e astronauta, veio, negocioso.

Episódio dois – Três de Julho

A fala prevarica. Por exemplo:

— Ele não resistiu.

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Em um três de julho que é sempre ontem, uma das suas crises outra vez quebrou a tarde. Na cama hospitalar que de uns tempos para cá ocupava o lado direito do móvel em que dormira metade da sua vida, ele parecia sofrer o mesmo sofrimento regular o suficiente para ser acolhido com tédio. O crucifixo de madeira na parede, os espelhos arqueados no dossel, o interruptor estendido para que não fosse preciso levantar para ligar/desligar a luz — sua decrepitude já era tão comum quanto tais objetos com que povoara o seu conforto. Os recursos anestésicos da vida são inúmeros e potentes.

Mas não era a angústia de sempre — como gostávamos da angústia de sempre!

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O desespero da minha avó: ineficiente. A diligência dos vizinhos: de um funesto oblíquo. O rosto do enfermeiro: um veredicto. A ambulância desperdiçou a sua pressa na avenida. Ele havia olhado para mim, a boca aberta, o rosto magro e mau barbeado, acho que tinha medo. Agora no veículo olhava eu para ele, sua face à deriva, atormentada. Mas ainda parecia ser a angústia de sempre.

No Hospital Municipal Vereador José Storopolli, eu me distraí por horas com a minha confiança na normalidade, com os planos do dia seguinte, com a luneta mágica de Joaquim Manuel de Macedo. Enfim, disse o médico, tinha o olho esquerdo feito de vidro, ele não resistiu, algoz, ele não resistiu.

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Como não houvesse algo dentro de mim que pudesse reagir a isso, eu não senti nada. Foi tímida e canhestra a dor que tomou impulso e se adensou; primeiro, a dormência. Entristecer-se é também um atuar de acordo, para tal causa apresento tal efeito. Antônio de Oliveira morreu, e me faltava a formação para perder um pai (mesmo assim me culpo: não o amava o bastante?). Na sala fechada do doutor, alguns minutos mais tarde, ele me forçava a compreender as burocracias do luto. Uma necropsia era necessária, mas se houver um médico que possa dar um laudo não precisa, fixamente me olhava, eu assentia com a cabeça, tenho de falar com a minha mãe, enquanto isso minhas pernas se enchiam de fraqueza (considerei: “Não é que isso acontece? Ou será que estou fingindo?”) e eu tive de me escorar na mesa. Atenção completa nas pontas dos dedos, na madeira. As lembranças a despontar como estrelas, delineando o irrecuperável; narrativas construindo um buraco negro.

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A fala implode. Por exemplo:

Atravessei o hospital até a saída, constatando que, contudo, o mundo continuava. Lá fora, na rua ao lado, sem iluminação, disquei uma responsabilidade.

— Mãe.

Onde outra palavra? Eu quero falar: é preciso falar: é meu dever falar. Fale.

— Mãe.

Mas ela já entende. Despedaça-se. Seu choro agudo. Meu soluço torturado.

— Duanne…

No fim de tudo estamos tão próximos quanto no início de tudo.

***

De madrugada, tivemos de ir ao necrotério para vestir o cadáver do meu avô. Minha mãe não quis ir, não estava pronta (eu a culpei por isso, por crer que era uma obrigaçãodos filhos), então fomos eu e meu tio. Recordo as débeis luzes dianteiras revelando as ruas vazias; não lembro de nenhuma das muitas palavras ditas por ele. Chegamos e nos levaram ao corpo na plataforma de metal. Frio e retorcido como a vida o havia deixado por fim; o caduceu tatuado no peito, em um verde esmaecido; lavado (tê-lo-iam lavado com cuidado ou a jatos de mangueira, feito um bicho?); o nariz entupido de algodão, para evitar o fedor putrefato. É uma honra estar aqui e fazer isso por ti, vô. Colocamos suas calças sociais escuras, sua camisa de botão, seus sapatos. Em dado momento, meu tio, desde sempre a imagem da dureza, começou a chorar (pensei: conteria a si mesmo se se lembrasse de que posso vê-lo? Eu nunca o tinha visto assim e abaixei a cabeça por pudor e respeito); com voz infantil, disse suas últimas palavras, pesadas de ternura e acompanhadas de uma carícia na bochecha do pai.

***

Foi então que avistei o babuíno pela primeira vez. O símbolo na carne, liberado agora pela morte, o convocara. Pois embora viesse como Toth, guardava a afeição de Hermes pelas cobras gêmeas que adornavam seu bastão alado. Vestia uma espécie de sotaina de camurça verde cujo peitoral e gola alta eram feitos de couro marrom-escuro e liso; por baixo, usava uma grossa blusa de lã, da qual se podiam ver as mangas desfiadas indo até os pulsos. Os pêlos estufavam os tecidos. Seu chapéu em formato de lua cheia sobre lua crescente brilhava com a luz da lua minguante lá em cima. “De mim vêm os prodígios de que te orgulhas, escriba. De mim a condição de possibilidade dos esconderijos a céu aberto e das penicilinas do imaginário. Prestidigitador, plagiário, te ofereço uma resposta. Um caminho a caminhar. Porque faz tanto tempo que não me refresca um heróiindo-se pelos percursos! — e eu sinto fome. Toma este presente antecipado e considera a viagem”.

Dissuadido do calor da minha solidão, eu o observara fixamente, e foi com algum grau de medo que aceitei o que me entregava — a esfera de quatro estrelas. Algo nela me atraía demais, uma fundura, não o que informa, soluciona, segreda, mas a expectativa tensa de uma mensagem. A possibilidade vibrava na palma da minha mão direita, assim como na mente comichava a palavra “herói”.

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