V izinho

Primeiro, o susto. Enquanto eu digitava a infinidade de números e senhas que garantiriam a transferência do dinheiro, o sujeito entrou no mesmo salão recheado de uma dezena de caixas eletrônicos. Sujo, maltrapilho, cor de pele indefinida por manchas e camadas de fuligem e poeira, calçava chinelo em um dos pés, o outro estava descalço. As tranças formadas pela falta de corte e lavagem ultrapassavam a altura do seu ombro, confundiam-se com os pelos da barba e do bigode. As roupas, camisas e calças sobrepostas, rasgadas, acomodavam-se com certa ordem naquele corpo; até pelo tempo em que estavam ali pareciam saber bem onde ficar. Havia também o cheiro, morrinha característica da falta de banho.

A chegada dele mudou o foco de minha irritação, das minhas preocupações. O homem, sujo daquele jeito, vestido com aquelas roupas, decidiu se postar em frente ao caixa que ficava ao lado do meu. Ficamos assim, a menos de um metro do outro, apartados por uma pequena barreira de acrílico, discreta e quase inútil separação entre os equipamentos. Só nós dois no salão que lembrava a cabine de comando de naves espaciais de antigos seriados. Perigo, perigo, perigo!, vontade de imitar o robô covarde da TV quando se via diante do desconhecido. Até então, eu cumpria a rotina mensal de, à noite, no limite de dia e horário, ir a um caixa eletrônico e transferir parte do dinheiro que me sobrara pra conta do filho da puta responsável pelo fato de sobrar tão pouco dinheiro na minha conta.  Uma obrigação decorrente da falência do tal grande negócio que não tinha chance de dar errado — sopa no mel, mamão com açúcar, deveria ter desconfiado dessas duas espúrias combinações. Nunca vi alguém colocar sopa no mel, mamão com açúcar não passa de uma grotesca redundância. Até tomei alguns cuidados, conversei, consultei, avaliei. País crescendo, muita gente entrando no mercado de consumo, Cristo decolando na capa daquela revista inglesa. Como o major que cavalgou a bomba atômica no filme no Kubrick, pendurei-me no pescoço do Redentor — foi como cair do alto do Corcovado. Quebramos em menos de um ano, tive que passar a devolver, todos os meses, o dinheiro emprestado pelo meu sócio. Eu não tinha alternativa, não havia chance de negociação, delação premiada, acordo de leniência, tornozeleira eletrônica, conversa com ministro de tribunal superior. Ou depositava ou perderia meu último patrimônio, o nome — até por quanto tempo? — limpo na praça. As instituições financeiras funcionavam normalmente.

Mas sócio, dívidas, além de projetos e país fracassados deixavam de ter importância desde a entrada do vizinho que, com sua presença, me ameaçava; bastaria que estivesse armado com uma faca ou um estilete pra me obrigar a desfalcar ainda mais a minha conta. E se ele, evidentemente um louco, resolvesse me atacar com a arma que, eu suspeitava, trazia escondida sob as muitas vestes? Não haveria como negociar com aquele sujeito parado diante da máquina. Qualquer movimento meu poderia ser interpretado como ofensa, agressão. Melhor fingir que nada acontecia. Eu teria de seguir o roteiro que me obrigava a transferir aquele dinheiro, todos os meses retardava ao máximo a tarefa, mas precisava cumpri-la, deixar pro dia seguinte implicaria mais despesas, juros, multas. O jeito era achar que tudo estava normal.

Nesta cidade tão violenta, entrar numa sala cheia de caixas eletrônicos não chega a ser uma experiência tranquila. Principalmente fora do horário de expediente, à noite. A gente nunca sabe se aquela pessoa que ali ao lado é um cliente ou não passa de um assaltante à espera da próxima vítima. Certeza mesmo, só a do medo compartilhado — em condições normais, qualquer um treme nas bases ao notar que outra pessoa entrou no salão de caixas eletrônicos, e teme ser assaltado. Um morre de medo do outro. Diante das máquinas, agimos como jogadores de futebol, basquete ou vôlei que, pra resguardar segredos táticos ou pra xingar alguém, põem a mão perto na boca quando falam algo. Nos caixas, a mão em conchinha é usada pra dificultar a visão do teclado onde digitamos senhas e chaves de acesso, combinações numéricas capazes de liberar o acesso às nossas contas, aos nossos saldos; gostamos de acreditar que cinco dedos em curva serão suficientes pra impedir um golpe.

Conhecemos as regras do jogo, o jeito de nos comportarmos naquelas antessalas de agências. Confiamos também que tudo dará certo, afinal, estamos entre semelhantes, isso não é pouco numa sociedade tão desigual. Ali, em tese, todos somos alfabetizados, todos temos contas correntes e algum dinheiro depositado. Na pior das hipóteses podemos estar no vermelho, mas em condições de sacar alguma grana, de pagar uma conta. Há um mínimo denominador comum entre nós. Como agir quando ali, ao seu lado, não há um cidadão como os que costumam frequentar caixas eletrônicos, mas alguém que jamais deve ter tido conta bancária, nunca viu o nome impresso num cartão magnético, não passou pela experiência de sacar dinheiro numa daquelas máquinas? Um felizardo: não precisou raspar suas economias pra sustentar um filho da puta que lhe desgraçara a vida. Sorte a dele, pelo menos neste último quesito. Não casa, carro, não estivera ameaçado de, depois de quebrar, ir pra cadeia pelo atraso de alguns dias no pagamento da pensão da filha. Ou, sei lá, vai ver que ele também, no passado, foi vítima de um golpe como o que me atingiu, início de seu processo de degradação. Como num antigo comercial de vodca, eu posso ser ele amanhã.

A ausência de conta, de cartão e de crédito não o impediu de começar a usar o caixa eletrônico. Seus dedos passaram a se revezar no apertar de botões, digitaram números de supostas contas, de indecifráveis senhas, os olhos percorreram a tela em busca de resposta aos tantos impulsos. Ele passou a demonstrar impaciência com a inutilidade de seus gestos, com a ausência de qualquer resultado, seja lá qual fosse o resultado esperado. O balançar de mãos e cabeça traduzia irritação por estar ali, tentando um diálogo com aquela máquina enquanto eu me exasperava com a obrigação de efetuar a transferência. Talvez tenha até lhe dirigido um olhar cúmplice, também tô fodido, mermão. Por um instante cruzamos nossos olhares. Concluí minha tarefa com um golpe desferido com força pelo indicador na tecla verde, ato que encerrava uma nova etapa daquele acinte. Uma tentativa de danificar a máquina, de gerar uma desculpa para um atraso. Movimento acompanhado do grito ritual de Vai, merda, vai! com que eu sempre encerrava aquela cerimônia mensal de autoflagelação.

Ao retirar o cartão e, assim, poder sair de lá, ouvi um barulho seco vindo do caixa ao lado. Ruído bem mais enfático que o provocado pelo meu dedo poucos segundos antes. Algo havia sido quebrado. Olhei à direita e vi que o homem acabara de usar uma pedra pra afundar o teclado da máquina. Ele não trazia uma faca escondida, mas uma pedra, dessas tão usadas no revestimento de calçadas cariocas. A mesma que, em seguida, ele usou pra quebrar a tela do equipamento — pedaços de vidro caíram no painel e no piso. Dei alguns passos pra trás, temi que minha testa fosse o próximo alvo daquele insano, sensação transformada em quase certeza quando ele se virou na minha direção, esboçou um sorriso por entre os pelos que lhe obstruíam a boca, e falou, baixinho, numa entonação surpreendentemente segura

— Vi o que você fez, ouvi o que você disse. Quer que eu quebre a sua também? — E apontou o queixo na direção da máquina à minha frente.

Sorri de volta, fechei os olhos, fiz um leve meneio com a cabeça, sinal de espanto e aprovação. Virei-lhe as costas e caminhei em direção à rua. Deu pra ouvir o som da quebra de mais um teclado. Antes de tomar meu rumo, olhei pra ele e, com um pequeno gesto, agradeci.

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Náufragos, de Fernando Molica (Editora Malê, 114 págs.)

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Fernando Molica nasceu no Rio de Janeiro. É autor de seis romances, sendo o mais recente, “Elefantes no céu de Piedade” (Patuá, 2021), semifinalista do Prêmio Oceanos. Dois de seus livros – “Notícias do Mirandão” (Record) e “Bandeira negra, amor” (Objetiva) – foram lançados na Alemanha e na França. Tem contos publicados nas antologias “O livro branco” (Record) e  “Dicionário amoroso da língua portuguesa” (Casa da Palavra), entre outras. É jornalista e trabalhou em diversos veículos. www.fernandomolica.com.br

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