Quando se pergunta a hora é porque a hora chegou

Meu pai gostava de fazer Pá! Não pá de remover terra porque isso foi tarefa dos coveiros vestidos de laranja dos pés à cabeça, como garis pingando sob o amarelo vivo do sol a pino, os lixeiros de gente escondendo o corpo do meu pai no Cemitério do Gavião. Mas o Pá do meu pai não era uma ferramenta, apesar de ele amar uma obra, e isso eu só soube bem depois. Meu pai colocava o dedo indicador em riste, levantava o dedão e fazia Pá! Era tiro de brincadeira. Mas não foi de tiro que ele se foi. Quer dizer, de certa forma sim. De tiro de dentro. Pá! Feito um barril de vinho tinto explodindo.

 

M     B      A

O                                D

L                                             A

 

Nossas cabeças – as da Maria Júlia e da Maria Juliana de cabelos chanel vermelho-fogo, a minha de fios pretos que jamais conheceram tesoura, tipo Rapunzel – quase triscaram o teto do quatro por quatro. Então me lembrei de quando elas foram despachar o corpo do meu pai e pegaram carona imprensadas no banco de trás de uma caminhonete que saía do aeroporto para o terminal de cargas. No meio do caminho, um buraco na estrada quase fez nascer galos gigantes em suas cabeças de matagal em brasa. Na traseira, as cargas também pularam rumo aos céus e retornaram à caçamba:

– Assim eu vou ficar lascado, minhas filhas!

A Maria Júlia disse que meu pai tinha gritado isso lá atrás. Eu vou ficar lascado era uma frase típica do meu pai.

Agora, lascadas estamos nós neste caminho de volta, na buraqueira em direção à casa que por muito tempo fingimos estar trancada. Nesse sobe e desce danado, começo a achar que a memória é feito filme de câmera antiga, com vários pedaços estourados pela luz dos traumas ou esquecimentos, restando apenas alguns quadros que fatalmente vão se alterando no decorrer do tempo. Jamais uma lembrança é a mesma lembrança. Mas no embaralhamento do rolo me recordo com nitidez daquele que foi o pior dia, quando eu e a Maria Júlia tivemos certeza que meu pai iria empacotar, a hora tenebrosa do sangue vazando da caixa torácica, o sangue escorrendo no pulmão e deixando sem ar o homem que sempre foi atrás do ar mais puro, e na sua asfixia meu pai sussurrava que eu tinha que parar de fumar, que ia cortar minha mesada de adulta se eu não parasse de fumar, que eu não podia querer a morte quando ele estava lá lutando pela vida, que o último cigarro que ele acendeu foi quando nasci, na sala de espera da clínica, mas agora meu pai desfalecia na maca com o corpo solto e o ar se extinguindo, ele lá deixando a Maria Júlia, minha irmã médica, no buraco do jaleco branco, ele lá arfando na UTI enquanto pedia para a gente ir comprar um expectorante na farmácia, ele lá se desmilinguindo e a gente se dilacerando, ele lá sufocado e a gente vertendo as lágrimas para dentro para não chorar na frente dele, ele lá com os batimentos diminuindo e a gente fazendo penteado em seus cabelos cheios de óleo por causa da dermatite seborreica, ele lá com máscara de ar e os fios brancos reluzentes em pé, ele lá com cara de criança boba e eu segurando seu pé, ele lá com os olhos baixos e a gente de celular em punho tirando nossas últimas fotos, ele lá semblanteando um ser que medita e eu sendo expulsa do boxe porque não segurei os soluços, ele lá sendo levado para o procedimento de emergência e a Maria Júlia me metendo Olcadil goela abaixo, ele lá sumindo no gelado do centro cirúrgico e os médicos avisando a gente que ele tinha oitenta por cento de chances de não voltar de lá. Ele lá e a gente ali. Apartados para sempre.

Mas o para sempre nem sempre é do tamanho que a gente acha que é.

O tempo estacou e tudo se confundiu, e eu liguei para o Moacir dizendo que meu pai estava morrendo e que eu precisava muito dele, porque eu e o Moacir havíamos ficado juntos durante sete anos e aquilo era o mínimo que eu poderia pedir, e eu liguei para o Moacir e uma mulher atendeu e passou para ele, e o Moacir disse que ia me encontrar no hospital e eu ainda fui chorando no banheiro passar um corretivo nos olhos mas o Moacir não foi lá me dar um abraço, quase uma década juntos e só fazia um mês e ele já estava com outra, e eu ali perdendo de vez o primeiro e o segundo homem mais importantes da minha vida, e então eu liguei para a minha mãe e disse para ela pegar um avião correndo porque ela estava na terra seca cuidando da minha avó que nunca cuidou dela, e já não dava tempo da minha mãe se despedir do meu pai, e enquanto isso a Maria Juliana embarcava lá na Índia para provavelmente aterrissar no enterro do pai que ela nunca teve, então eu escorreguei pelas paredes e me coloquei em posição fetal naquele chão branco de bactérias tóxicas, e meus gestos preenchidos demais pareciam um tanto histriônicos para quem via de fora, mas ali dentro, me embrulhando em mim mesma, não havia canastrice alguma naquela dor insuportável que chega com suas malas de chumbo sem pedir licença para ficar.

Mas a gente não sabe de nada.

Eis que as portas do centro cirúrgico se abriram e meu pai apareceu coradinho, coradinho como quem volta da praia, vermelho como a melancia em pedacinhos miúdos que a Maria Juliana deu na boca dele dias depois lá no quarto do hospital, ele mastigando e triturando devagarinho, e devagarinho a gente andava dois passos e voltava um, e a boca dele suja de vermelho que agora não tinha gosto de ferrugem, mas sim de fruta doce com sementes que brotam vida. Agora, aos trinta anos, a Maria Juliana, que nunca tinha recebido sequer um beijo do meu pai, estava dando melancia na boca dele e ouviu, eu te amo, minha filha, e pela primeira vez na vida ela ouviu um eu te amo vindo dele, e pela primeira vez na vida ela ouviu meu pai chamá-la de minha filha. A Maria Juliana ficou segurando a colherinha com a melancia suspensa feito avião no ar enquanto, já balzaquiana, ganhava um pai que até aí nunca havia tido.

E então eu, minha mãe, a Maria Júlia e a Maria Juliana choramos. E a vida era tão simples.

*

Memória de ninguém (Editora Nós, 2022), de Helena Machado é sobre uma mulher em luto após a morte do pai. Prestes a completar quarenta anos, ela entra em crise profunda diante da passagem do tempo, de sua própria incapacidade de concretizar qualquer coisa. Ao retornar à antiga casa de infância, é atropelada por lembranças  para as quais tenta dar um sentido: a relação com a mãe e as irmãs gêmeas, os distúrbios alimentares, as tragédias familiares, os abusos sexuais, os relacionamentos abusivos. Do riso ao pranto, do grito ao silêncio, do cotidiano às questões existenciais, as memórias chegam em torvelinho. 

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