* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Mudar de país e viver em uma outra cultura não é simples. Toda a lógica do cotidiano que se está acostumado muda de uma hora para outra. Os cheiros, a temperatura, as paisagens, os sons, as sensações, as pessoas, a língua. Por mais que se tenha preparado para enfrentar essas mudanças, há desafios que parecem pequenos e que durante as horas do dia se tornam imensos e aprender a digeri-los sem gosto forte é uma habilidade. Não foi a primeira vez que mudei de país, porém dessa vez, a estratégia de adaptação foi diferente. Talvez agora com mais experiência na vida eu tenha encontrado uma maneira mais agradável de aprender a “respirar debaixo d’água no novo aquário”. A estratégia dessa vez foi via amizade pela Literatura. Conhecer as principais discussões que estão acontecendo e quais livros eu poderia recorrer foi (e ainda é) fundamental para mim por aqui. Logo que eu cheguei na França busquei esse caminho e que tem que me ajudado muito nos processos complexos culturais que envolvem a imigração.

Vou enumerar oito títulos que conheci nesse primeiro ano e que recomendo para que possam conhecer quais foram as discussões que me meti por aqui para captar meu oxigênio nas novas águas. Há livros de literatura e outros de estudos sociais. Fui encontrando esses livros de forma aleatória durante 2022, tendo trombado com alguns pela livraria pela belezura da capa ou pela indicação da publicidade na loja ou ainda sequestrado instantaneamente pelo resumo da contra capa. Em um primeiro momento parecem absolutamente desconectados entre si, concordo. Porém, não me esquivo de pensar nas armadilhas do inconsciente prepara. Os livros que listo tocam temas importantes sobre gêneros, sexualidades, classe social, vida, saúde, relações afetivas e jogos de poder que são a base de qualquer sociedade, mas que são agudas por aqui. Para cada livro que cito, começo com algo que aprendi com eles nesse primeiro momento. Isso não significa que seja o mesmo para outras pessoas leitoras. Acredito que as indicações possam ser válidas, principalmente no engajamento de tomar a Literatura como uma parceira de viagem ao autoconhecimento e como podemos devolver o que aprendemos com ela ao mundo que nos convida sempre para mudanças e adaptações.

  1. Não há como controlar o acaso para a construção do nosso destino

Vivre vite, de Brigitte Giraud

Um casal realiza um grande sonho de comprar uma casa. Porém, três dias antes da mudança, a narradora é atingida pela morte do marido em um acidente de moto ao ir buscar a chave da nova casa. A partir de uma história trágica e real em sua vida, a narradora vai refletir sobre a questão do destino, acaso, determinismo e como as relações familiares e sociais podem influenciar nas nossas vidas e construir um destino inesperado.

  1. Não há vitória na vida sempre vencendo

Florida, de Olivier Bourdeaut (foto)

Elisabeth, desde muito criança, é submetida pela mãe aos cruéis concursos de mine miss para ser uma vencedora na vida. Vencer é o mesmo que ser alguém na cabeça da jovem garota. Dessa forma, a protagonista cresce permeada com o senso de competição e passa a vida entrando em diferentes concursos em busca de sanar sua sede de identidade como sendo uma “vencedora” até cair na maior tragédia da sua vida.

  1. Ser um homossexual no estrangeiro é sobre não fazer concessões

Le rouge du Tarbouche, de Abdellah Taïa

Um livro autobiográfico do escritor marroquino Taïa em que o autor narra seus primeiros anos como estudante de letras em Paris, imigrante de um país com tradição mulçumana e ao se assumir homossexual na capital francesa.

  1. Há sempre algo que foi empurrado para debaixo de um tapete…

En finir avec Eddy Bellegueule, de Édouard Louis

Um livro autobiográfico em que Louis constrói, via seu pseudônimo Eddy Bellegueule, as memórias e experiências das intensas violências de preconceito contra a homossexualidade na vida de um adolescente em uma cidade pequena da França. Édouard traz a imagem contraditória e colocando em jogo uma França dos discursos de liberdade e tolerância quanto às questões da sexualidade.

  1. O limite da vida está entre a liberdade individual e a vida coletiva

Antivax: la résistance aus vaccins du XVIIIe siécle à nos jours, de Françoise Salvadori & Laurent-Henri Vignaud

Não é um livro de ficção, mas sim um estudo histórico de fôlego sobre a questão vacinação na França. A pergunta base e que não se cala: como a nação de Louis Pasteur hoje comporta uma população em que 44% das pessoas se recusavam a tomar a vacina da COVID-19? Em uma perspectiva histórica, o estudo vai nos mostrando as origens do movimento anti-vacinas na França e como, pior do que os próprios microrganismos, contaminou a sociedade e outras ao redor do mundo.

  1. É nos emaranhados das desigualdades que se encena a igualdade

Qu’est-ce que l’intersectionnalité? : dominations plurielles, sexe, classe et race”, de Delanoë-Brun Emmanuelle, Bakshi Sandeep, Boussahba Myriam

A sociedade francesa tem como base os valores da igualdade, a fraternidade e a liberdade. Entretanto, no cotidiano como é na prática o emaranhado das relações sociais nessa sociedade? A teoria da interseccionalidade ainda tem pouca aderência por aqui. Nesse livro, as autoras vão trazer as perspectivas históricas da chegada dessa teoria no terreno francês e exemplos de como a penetração das discussões e estudos interseccionais estão aos poucos ganhando espaço e dando um significado as desigualdades sociais no país.

  1. Uma história individual é também a história da luta coletiva

King Kong Théorie, de Virginie Despentes

Um livro autobiográfico e visceral em que a narradora, sem pedir desculpa e sem desejo de agradar ninguém, expõe pela linguagem sua rebeldia e dilacera as perspectivas das teorias clássicas do feminismo. Em uma proposta metodológica de emergir uma teoria a partir da sua própria existência, Despentes parte do filme e da figura da personagem que leva o nome da produção, “King Kong”, para explicar seus pontos de partida sobre as questões de gêneros e sexualidades.

  1. Enfim, viver uma história de amor é o grande objetivo de uma vida.

Passion Simples, de Annie Ernaux

A autora nos convida ao mergulho no universo de uma mulher que está perdidamente apaixonada por um homem estrangeiro casado e que vivem cenas dilacerantes de paixão. Como a própria autora diz que sempre pensou que a grande realização de uma vida era o do objetivo financeiro; depois pensou que era o da vida intelectual, mas que no fundo o grande objeto da vida era viver uma grande paixão.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. danielmanzoni@gmail.com

 

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