* Por Bruno Inácio *

Mais do que uma obra literária grandiosa, O céu para os bastardos, de Lilia Guerra, é um retrato sensível e atento à realidade das pessoas que vivem às margens num país tão desigual quanto impiedoso. A obra, publicada pela Todavia, acompanha a história de Sá Narinha, uma mulher que vive no Fim-do-Mundo e trabalha longe dali, numa casa de classe média, como empregada.

Em meio a longos trajetos feitos de transporte público, a insensibilidade da patroa e a união das pessoas da comunidade em que vive, a protagonista mantém o olhar abrangente sobre sua realidade e faz uma leitura crítica e precisa a respeito das pessoas que compartilham vivências parecidas com as suas.

Ainda assim, a autora Lilia Guerra é bastante perspicaz ao evidenciar o que é próprio da personagem, a começar pela sua delicada situação: o filho, Júlio, está preso por ter agredido a esposa após uma crise de ciúmes. O fato marca uma ruptura tão dolorosa para a protagonista quanto para sua irmã, Valdumira, que também vê Júlio como um filho.

Apesar do trauma, Sá Narinha sabe muito bem que para os pobres não existe pausa para recuperação. Por isso, segue no trabalho indigesto como se nada tivesse acontecido. Tem como refúgio, por outro lado, o samba, as conversas com os vizinhos, a leitura e as anotações que faz em um caderninho, sonhando com o dia em que consiga publicar um livro.

Numa das muitas cenas emblemáticas da obra, inclusive, chega a expressar esse seu desejo a um renomado escritor para quem trabalhou por um período. A resposta do autor, no entanto, foi severa e bastante verossímil, afinal condiz com a arrogância de boa parte do meio literário: tudo que havia de útil para ser escrito já está escrito. Em seguida, completou “Há escritores medíocres aos bocados. Mas está cada vez mais difícil encontrar alguém com talento para passar uma camisa do jeito que você passa”.

Sá Narinha não se importa muito. Desde cedo, estava acostumada a lidar com gente petulante. Assim, segue com suas anotações e seus movimentos. Movimento, aliás, é algo presente na obra da primeira à última página. Existem muitos personagens com histórias próprias, de crianças a idosos, de cães a pássaros. Ocupam um lugar importante na narrativa e demonstram a importância da coletividade para uma vida ou uma obra literária.

Mesmo nos momentos em que Sá Narinha se encontra sozinha, há muito movimento. Afinal, como ela mesmo diz: “Eu penso demais. Demais”. E esses pensamentos vão de um ponto ao outro de forma rápida e coesa, como uma associação livre das mais bem-sucedidas. Assim, leitores conhecem o passado da protagonista, seus anseios e suas alegrias, como se estivessem sentados ao lado de Sá Narinha, com um samba de fundo.

O céu para os bastardos também é marcado por uma técnica literária bastante madura, capaz de construir diálogos marcantes, cenas memoráveis e personagens que se tornam amigos e cúmplices de quem lê a obra. Alguns deles, inclusive, já apareceram em excelentes trabalhos anteriores da autora, publicados pela Editora Patuá. A protagonista Sá Narinha, por exemplo, forneceu um depoimento no romance Rua do larguinho e outros descaminhos, de 2018.

Assim, em meio a tramas que se conectam e uma linguagem que, por vezes, se aproxima da crônica, Lilia Guerra demonstra que tem muito a dizer e deixa claro, desde o primeiro capítulo, que a literatura é, sim, uma importante ferramenta para a mudança social.

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Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e pós-graduado em literatura contemporânea. É autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e colaborador da São Paulo Review e do Jornal Rascunho.

 

 

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