* Por Ronaldo Cagiano *

 Em seu romance de estreia, com um título sugestivamente kunderiano – O lado imóvel do tempo –  Matheus  Arcaro não apenas confirma a maturidade de  sua  escritura como instância de afirmação     de seu profundo mergulho nas inquietações existenciais (já intensamente percebidos nos contos de Violetas e outras flores), como também consolida um estilo pessoal, em que delicadeza e intensidade dramática se relacionam simbioticamente, refletindo o pleno domínio da técnica narrativa e dos recursos da própria linguagem como expressão de um apurado olhar sobre os dilemas que dizem respeito ao ser.

Escrevendo sobre os conflitos vividos por um personagem atormentado pela obsessiva busca da perenidade de seu nome, o autor explora as idiossincrasias do bancário Salvador dos Santos, que alimentou o desejo frustrado de entrar para a história com a publicação de suas poesias, porém ao longo de  seu  percurso  somente  transitou  num cenário  de  paradoxos  e  impossibilidades,  lidando  com  uma existência burocrática e alienante que o fez se sentir um apartado tanto social quanto psicológico.

Na esteira desse ambiente interior carregado de desilusão e um relacionamento familiar com seus passivos afetivos, Salvador não é apenas o protótipo do homem almejando seu espaço, é, acima de tudo, um protagonista em busca de um lugar no mundo. E não é somente o grito pela fama ou notoriedade literárias, mas por ser reconhecido dentro de sua vida primária, já que não o era pelo próprio pai (que o desmerecia) nem no ambiente de trabalho, além de um amor que poderia ter sido e não foi. Essa negligência é raiz ancestral de toda a angústia que o acompanha, desencadeando um estado permanente de apartheid pessoal, culminando com a sensação tormentosa e desconfortável do avanço da idade, com o desgaste do envelhecimento e a proximidade da morte, sendo o tempo seu algoz diante da imutabilidade e inércia de uma vida inteira.

Matheus Arcaro arregimenta sua arte narrativa com uma sutileza estilística que confere intensidade dramática à trama, amalgamando o discurso cristalino e objetivo, sem excessos, à moda de um Graciliano e de um Tchecov, principalmente pela habilidade com que harmoniza o conflito com os recursos sofisticados de uma linguagem poética, em que a palavra está aí para dizer e não para enfeitar. Ressalte- se, na abertura de cada capítulo, a utilização de excertos de poemas do personagem, num diálogo entre a própria ficção e o mundo real de Salvador dos Santos. Na linha da intertextualidade que explica a alma do romance, outro exemplo, a escolha do nome de Pessoa para nomear o cachorro (uma relação verdadeira e fiel, de quem, inclusive, após sua morte usa a coleira para assassinar suas vítimas) e que, aqui, funciona como clara alusão ao poeta português, nesse extremo romance em que outras tabacarias íntimas deflagram visões de um mundo inusitado. Aliás, no decorrer do livro há um trânsito profundo com a própria literatura, instaurando uma sinergia filosófica e conceitual com temas e autores que já trataram do mistério existencial, quando a passagem do tempo e a morte são motivo de indagação literária.

Em Salvador dos Santos reside a metáfora do deslocamento e da insularidade, o homem perplexo e perdido (“Vivi o lado de fora da vida./ Quando arrombei o portão,/ vi que não passei/ de um prelúdio de mim.”), fenômeno que acomete grande parte das pessoas nesse mundo contemporâneo, nessa época coisificada pelo “ter” e fetichizada pela urgência da exposição e do utilitarismo, que acaba por transtornar o homem e transformá-lo em zumbi, se não consegue sucesso num tempo de tamanha competição. Assim, esse personagem foi (des)vivendo sua trajetória medíocre (como homem, como bancário, como filho, como poeta de dois livros sem repercussão) e só conseguiria dar o salto dialético por um viés antiético: virar um criminoso, um serial killer, a única forma de chamar a atenção para sua vida que chegava ao fim, essa vida apoucada, que nos remete, analogicamente, ao personagem de Drummond no poema A flor e a náusea: “Não, o tempo não chegou de completa justiça./ O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera./ O tempo pobre, o poeta pobre/ fundem-se no mesmo impasse”.

Salvador é figura especular dessa solidão, retrata a melancolia de alguém diante do mundo que (o) espreita, porque nele está a sentença que os versos do itabirano também o acusam e o movem: “As coisas./ Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.” e é contra esse status quo dilacerante que ele vai se insurgir no final da vida, com as mortes que executará. Afinal não estava eliminando  apenas gente como ele, mas o silêncio, a negligência e a indiferença com que foram condenados ele e seus versos. Ainda que torpe a razão para essa guinada, em seu íntimo persistia a necessidade de sair do ocaso, nem que fosse pela via inusitada do acaso, única forma de finalmente sair da vida para entrar na imortalidade e assim poder dizer, esterilizado todo o olvido: “Quero penetrar no universo/ e esconder o tempo/ para que o esquecimento/ jamais se lembre de mim.” E com isso a “a certeza de que seu nome, enfim, estava tatuado na face imóvel do tempo”.

Arcaro construiu um romance com rigor estético, calcado na subjetividade do discurso, escrutinando a psicologia e as contradições de um personagem que sempre se sentiu um estrangeiro dentro de si mesmo e que, por não ter glória e projeção em vida, sucumbiu ao peso das próprias circunstâncias. Situação que também remete a uma leitura sobre a própria realidade do ambiente criativo que afeta a muitos escritores, em que a vaidade, a ambição e a perseguição dos holofotes têm sido a grande tormenta, em detrimento do valor da própria obra.

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O texto do escritor e crítico Ronaldo Cagiano apresenta o romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 192 págs.), de Matheus Arcaro

 

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