Sylvia Plath: um poema, três traduções

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Por Mário Loureiro *

Este artigo tem por objetivo fazer um breve estudo comparativo: confrontar duas traduções realizadas a partir do poema Words (“Palavras”) da norte-americana Sylvia Plath, escrito no dia 1° de fevereiro de 1963, dez dias antes de seu suicídio. Buscarei identificar e comentar as escolhas estilísticas e soluções poéticas adotadas pelos diferentes tradutores. Em ambos os casos, a tensão poética, os recursos linguísticos e, neste caso em particular, metalinguísticos observados no texto original da poeta (sobretudo o uso da metáfora e a questão da sonoridade) foram respeitados no processo tradutório, porém — como não poderia deixar de ser — de maneiras distintas.

Segundo Barnstone, “since translation (…) depends on the two activities of reading and writing, each a variable, the translation will always vary with each translator”. Assim, defende o mesmo autor, “poetry translation lies in the freedom, in the variety of methods. All ways are permissible provided they lead to the good poem”

Desta forma, procuro contrapor as duas traduções e pensar sobre o fazer tradutório sob o ponto de vista da estilística. Podemos falar aqui em metalinguística uma vez que o tema deste poema é justamente o próprio fazer poético e o domínio do autor sobre as palavras.

A primeira tradução foi realizada por Ana Cristina Cesar e a segunda por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça. Ana Cristina propôs, ainda, uma segunda alternativa a sua própria tradução, sobre a qual também me debruçarei rapidamente. A terceira e última tradução é de minha própria autoria.

A tradução de um mesmo poema repetidas vezes justifica-se visto que a língua e a cultura na qual estamos inseridos e da qual somos produtos sofrem transformações ao longo do tempo. Barnstone novamente discorre acerca deste tema:

Whatever skills the translator brings to his or her invention, its style will be subject to the tradition and taste of the time. Since tradition and taste change from generation to generation, time will demand new poets to produce new versions. Insofar as the reading and interpretation of any text is never definitive — for texts change and live again (or die) with each new reading — so the act of translating a poem is never definitive.

O poema de Sylvia Plath

WORDS

Axes

After whose stroke the wood rings,

And the echos!

Echos traveling

Off from the center like horses.

The sap

Wells like tears, like the

Water striving

To re-establish its mirror

Over the rock

That drops and turns,

A white skull,

Eaten by weedy greens.

Years later I

Encounter them on the road —

Words dry and riderless,

The indefatigable hoof-taps.

While

From the bottom of the pool, fixed stars

Govern a life.

A construção da linguagem plathiana, como observaram seus tradutores, é marcada por ritmos e imagens, dois recursos estilísticos fundamentais em sua poesia. A unidade de seus versos livres é definida pela imagem e pelo ritmo da respiração — são versos modernos, orgânicos. Esta característica foi preservada em ambas as traduções, ecoando a música do texto fonte.

A importância que a poeta confere às imagens, assim como a maneira pela qual um mesmo significante pode evocar metaforicamente inúmeros significados, foi compreendida por todos os três tradutores. Talvez tenha sido este, aliás, o seu maior desafio. Seus versos são ambíguos e permitem diversas interpretações e associações. Para Lopes, suas “imagens se tornam ‘iscas’ para se compreender sua dinâmica poética. Um mesmo significante se abre a várias leituras, fazendo mais difícil a sua tradução’”. Barnstone observa nisto uma vantagem:

(…) to the translator poet the untranslatable poem yields the best poem.  One tests oneself according to the resistance encountered, and so the untranslatable incites one, forced one, into freedom and invention.

Ana Cristina defende também que o poema Words “é, basicamente, um poema de imagens e não de raciocínio” e que “implica uma crítica do significado, talvez a destruição do significado — mas não no sentido metalinguístico”, como colocou em seu Escritos da Inglaterra. A poeta nos fala sobre a dificuldade da comunicação, do próprio fazer poético, quando as palavras perdem o seu sentido e o poema precisa ser construído a golpes de machado. As palavras parecem ganhar vida própria e já não se deixam ser dominadas, saem pelo mundo desgovernadas, como cavalos selvagens (outra imagem constante em sua obra poética).

De fato, a poeta lança mão da fusão metafórica ou do que Mendonça chamou de cluster de metáforas, uma de suas importantes inovações técnicas: a “superposição de imagens aparentemente desconexas que se fundem e refundem”. Esta técnica, conhecida no meio acadêmico como melting-fusion, é frequente na poesia de Sylvia Plath.

No entanto, esta problemática, em certa medida, não parece representar uma barreira para o trabalho de tradução de Ana Cristina; no seu entender, Words, “com seu grau de dificuldade moderna, abre caminho para a tradução”. Por tratar-se de um poema hermético, foi possível fazer com que surgisse “um poema em outra língua e não ‘apenas’ uma tradução”. O poema sobrevive mesmo sem o original. Deste modo, se, por um lado, a natureza do poema torna o processo de tradução mais difícil, por outro, isto confere ao tradutor maior liberdade de (cri)ação — nos mesmos moldes do pensamento de Barnstone.

Lopes e Mendonça depararam-se também com a questão da “cantabilidade” presente no poema. Os tradutores entenderam a forma pela qual “o ritmo insistente das machadadas do lenhador repercute pelo poema” e souberam reproduzi-lo a seu modo. “As palavras sugerem a própria ação do lenhar, quase onomatopaicamente. Esse retinir incessante dos machados, que representa as rimas, sugere simbolicamente as pancadas no metal intratável da poesia”, defenderam em sua notas à tradução. A sonoridade “original”, recurso tão valioso à poeta, foi mantida. Sylvia Plath costumava afirmar que seus poemas, sobretudo aqueles produzidos em seus dois últimos anos de vida (1962-63), deveriam ser lidos em voz alta: “A lucidez que possa emanar deles vem do fato de eu ter de lê-los para mim mesma, em voz alta”.

A tradução de Ana Cristina Cesar

PALAVRAS

Golpes

De machado na madeira,

E os ecos!

Ecos que partem

A galope.

A seiva

Jorra como pranto, como

Água lutando

Para repor seu espelho

Sobre a rocha

Que cai e rola,

Crânio branco

Comido pelas ervas.

Anos depois, na estrada,

Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,

Bater de cascos incansável.

Enquanto

Do fundo do poço, estrelas fixas

Decidem uma vida.

Ana Cristina conseguiu, em sua tradução, manter os aspectos sinestésicos presentes na poesia de Sylvia Plath, recriando “imagens que falam” e “versos visuais” — como podemos observar na tradução de “Echos traveling/Off from the center like horses”, que se tornou “Ecos que partem/A galope”. Em sua outra versão, talvez mais “fiel” ao original, a tradutora escreveu: “Ecos partem/Do centro como cavalos”. No entanto, Ana Cristina parece privilegiar as escolhas mais econômicas ou, como defendeu, menos “inflacionárias”. O mesmo aconteceu com o primeiro verso do poema, onde “Axes/After whose stroke the wood rings” foi traduzido, em uma das versões, para “Golpes/De machado que fazem soar a madeira” e nesta acima, mais concisa, “Golpes/De machado na madeira”. Mais importante do que buscar ser fiel às questões morfológicas do poema, Ana Cristina preocupou-se em ser fiel à essência das imagens plathianas, reproduzindo o universo semântico da poeta.

Constatamos também na primeira estrofe o emprego da epífora, na repetição da palavra echoes, recurso que foi preservado pela tradutora. Extrapolando, no entanto, a questão das ocorrências estilísticas, o texto de chegada transpõe o desespero e as referências à morte característicos dos últimos poemas da autora, fatores sem os quais a tradução perderia aquilo que o original possuía de mais intrínseco e subjetivo, seu sentido conotativo.

Outro mérito desta versão de Ana Cristina, a nosso ver, foi a solução poética encontrada para reproduzir uma rima que não foi incluída em sua outra versão: a primeira estrofe inicia-se com a palavra Axes e termina com horses. Em sua tradução, a estrofe em questão começa com “Golpes” e termina em “galope” — palavras que, além de formarem uma paronomásia, remetem a imagens e sentidos afins. Na outra versão, que a autora considerou mais “inflacionária” e que não reproduzimos aqui na íntegra, a estrofe começa também com “Golpes”, mas termina em “cavalos”: uma tradução também coerente, embora talvez menos poética.

De qualquer forma, como bem demonstra Britto, nenhuma tradução de poesia pode ser avaliada de maneira totalmente objetiva — o que, no entanto, não invalida quaisquer esforços neste sentido:

A meta de uma avaliação de valor é ser totalmente objetiva: a ideia é analisar o mérito de uma tradução de poesia com base nos recursos utilizados pelo tradutor em comparação com os usados pelo autor original, sem a interferência de fatores subjetivos — os pressupostos teóricos tomados como ponto de partida, as simpatias e antipatias pessoais, as preferências emocionais por certas palavras em detrimento de outras, etc. Ora, é fácil demonstrar que nenhum juízo de valor é de todo livre de perturbações externas causadas por fatores que não os estritamente objetivos.

A tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruma Mendonça

PALAVRAS

Machados

Que batem e retinem na madeira,

E os ecos!

Ecos escapam

Do centro como cavalos.

A seiva

Mina em lágrimas, como a

Água tentando

Repor seu espelho

Sobre a rocha

Que cai e racha,

Crânio branco,

Comido por ervas daninhas.

Anos depois eu

As encontro no caminho —

Palavras secas, sem destino,

Incansável som de cascos.

Enquanto

Do fundo do poço, estrelas fixas

Governam uma vida.

Esta tradução, assim como a de Ana Cristina, procurou valorizar a estética e a sonoridade características da obra de Sylvia Plath. Lopes e Mendonça destacaram — em ambos os ensaios que acompanham a coletânea de poemas de Sylvia Plath que organizaram — a relevância da questão da estilística para a poeta, mesmo nos períodos mais difíceis que enfrentou ao longo de sua vida. Embora alguns críticos tenham defendido que sua poesia era a expressão desesperada de sua desordem criativa, Mendonça apontou que “Sylvia evitava o jorro desordenado das emoções que pudessem conduzir ao dramalhão, exigia de si um controle quase policial da escritura, dando-lhe forma” (p.129). Como a própria autora afirmou certa vez:

Penso que minha poesia seja fruto da experiência dos meus sentimentos e da minha emoção, mas devo dizer que não posso ter simpatia por aquele ‘grito do coração’ (…). Creio que se deva saber controlar as experiências, até as mais terríveis, como a loucura, a tortura (…). E se deva saber manipular com uma mente lúcida que lhe dê forma (…).

Assim, a forma (ou estilo) era, para a poeta, tão ou mais importante do que o conteúdo de seus poemas. A vida trágica de Sylvia, por vezes, fez com que as pessoas desviassem o foco de atenção para a sua biografia, comprometendo a interpretação de sua obra poética do ponto de vista estético. É evidente que sua poesia é produto de suas experiências pessoais, mas o que a tornou uma grande poeta foi a maneira pela qual ela soube transmitir ao mundo seus tormentos pessoais, o estilo que adotou, suas escolhas estéticas.

Gostaríamos de destacar aqui um verso em particular: “Over the rock/That drops and turns,/A White skull/Eaten by weedy greens.”. Neste caso, os tradutores optaram pelo verbo “rachar”, em vez de “rolar” (turns) como fez Ana Cristina, para, justificaram, “enriquecer a palavra ‘rocha’”. Embora esta aliteração não estivesse presente no original (uma vez que rock não rima com turns), ela reflete com perfeição o papel fundamental que a sonoridade exerce na estética plathiana. E, parece-nos, este tipo de sensibilidade é fundamental para o ato tradutório que busque resgatar os recursos de expressão do original e os mesmos efeitos de sentido no texto de chegada.

A minha tradução

PALAVRAS

Machados

Cujos golpes fazem gritar a madeira,

E ecos!

Ecos que disparam

Feito cavalos.

A seiva

Jorra feito pranto, feito

Água que luta

Para recompor seu espelho

Sobre a rocha.

Que cai e rola,

Crânio branco

Comido por ervas daninhas.

Anos depois eu

As encontro na estrada:

Palavras secas à deriva,

Incansáveis batidas de cascos

Enquanto

Do fundo do poço, estrelas imóveis

Conduzem uma vida.

*

Mário Loureiro é tradutor

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