* Por Rodrigo de Roure *

A consolidação do folhetim como gênero literário na França foi responsável por uma série de transformações nos seus hábitos. Tal acontecimento propiciou novas maneiras de leitura, assim como alavancou a expansão das livrarias-editoras. Escritores como Honoré Balzac, Alexandre Dumas e Gustave Flaubert presenciaram os impactos dos folhetins nos leitores, que, com o jornal nas mãos, consumiam avidamente histórias carregadas de técnicas para que sua atenção fosse capturada até o final. A literatura começava a fazer parte do cotidiano do povo, influenciava os costumes e apontava para o surgimento da cultura de massa nas décadas seguintes.

Trago esse acontecimento do folhetim, e de seus impactos na sociedade e na literatura de uma forma geral, para nos aproximarmos, aqui, da novela Conectados e Desconectados, terceiro livro de Daniel Manzoni. Ele nos presenteia com um projeto literário que aponta para uma série de possíveis reflexões acerca das relações sociais e da literatura do nosso tempo. Considerando que a forma produz sentidos, é a partir deste aspecto, dentre tantos, que procuro me debruçar.

O ponto de partida de Conectados e Desconectados é o relacionamento homoafetivo entre Serafim e Paulo. Às vésperas do seu casamento, Serafim é informado, através de Ângelo, seu amigo, que Paulo tem um caso. Acontece que, mais à frente, entendemos que Paulo, certa noite, em uma boate, desistiu de Ângelo para namorar Serafim, e que Serafim não teve nenhum cuidado com o amigo ao seguir seu relacionamento com Paulo. Serafim faz parte de uma classe estável economicamente, diferentemente de Ângelo, que precisa trabalhar para sobreviver e deseja obsessivamente ser como Serafim, ter seus privilégios e conquistas, e por isso amarga dentro de si um desejo de vingança latente – não só pelo fato da traição, julgo eu, mas pelo aparente embate de classes advindo de um sistema que se perpetua e se alimenta das tenebrosas desigualdades sociais. A trama evolui e nos prende em sua teia de expressões e caracteres de personagens muito bem desenhados, com seus desejos, quereres, obsessões, futilidades, o patético de suas atitudes e escolhas, assim como são atravessados pela solidão, abandono e pela busca de um amor idealizado.

A exemplo de muitos folhetins, a novela de Manzoni reproduz uma construção episódica e seriada de acontecimentos, publicados não num jornal, mas em uma rede social – o que é transposto para o formato do livro digital. A narrativa se desenvolve em 26 postagens, com direito a comentários dos seus ávidos e carentes leitores – esses que, além de terem a liberdade de acompanhar as reviravoltas das vidas dos personagens, ainda puderam compartilhar (e foram muitos os compartilhamentos até o desfecho) – passar a fofoca adiante – avidamente, como se houvesse uma necessidade que lhes fosse quase vital: a de julgar, condenar ou ter empatia, mesmo sem saber inteiramente sobre os antecedentes do drama de cada personagem ou do que ainda vai ser revelado na próxima postagem. Nessa engrenagem, o leitor, como num susto, pode começar a acompanhar a história de qualquer ponto, aquele que aparecer no rolamento ordinário do seu feed, e, ainda assim, ele sentirá a necessidade (e o direito) de dar seu veredito e compartilhar.

O espaço das redes sociais talvez seja uma vida dos sonhos (a vida dos outros, nunca a nossa), onde tudo parece ser bonito, onde todos parecem (e podem) ter voz (para o bem ou para o mal), com a recompensa ilusória e imediata da curtida e, quiçá, poder lucrar com as possíveis viralizações. Dessa forma, a experiência da leitura da novela de Manzoni nos faz refletir sobre o que chamam de “engajamento nas redes” (o que é um dos sentidos da obra), mas refiro-me aqui ao engajamento diante de algo que nos é muito caro (não só a quem escreve): o ato de narrar, ouvir e fazer valer as histórias. É por nos serem caras e mesmo constitutivas que, nós, diante de toda espécie de narrativas (e elas são muitas) que brotam em nossas linhas do tempo, reagimos de tantas e tantas formas. Inclusive, nos questionamos sobre quem escreveu e publicizou as postagens de Conectados e Desconectados, sobre os “absurdos” de uma trama tão “rocambolesca” – fazendo com que seja cogitado por um usuário da rede social que se trate de uma espécie fanfic. Observo com interesse toda a estrutura apresentada pelo autor e não deixo de frisar sua aproximação com a estrutura folhetinesca, por, ao menos, duas características: a primeira, pelo consumo da vida alheia. A segunda, pela leitura coletiva. No caso do folhetim, pelo suporte midiático do jornal, do rádio ou da tv; no caso da novela de Manzoni, a evocação do ambiente da rede social em formato de e-book. Em ambos os casos podemos perceber os sentidos (ou efeitos) produzidos pela forma. Diante disso, é lícito questionar como o folhetim, como gênero burguês e heterocentrado, acolheu, como em uma luva, uma narrativa LGBT, já que ela não parece diferir das vicissitudes do modelo dominante.

O fato é que Manzoni foi muito exitoso em sua construção ao decidir partir da observação das interações no ambiente das redes sociais, fazendo com que seja ressaltada, em sua novela, a multiplicidade de vozes que contribui com o significado da sua obra, nos provocando a indagar sobre os entraves das relações do nosso tempo. Com seu projeto literário, o autor nos oferece muitas possibilidades para discutirmos as questões que nos assolam (nossas relações com as redes, nossas privacidades, o tanto que estamos expostos aos dentes vorazes do grande capital que lucra com nossas dores e alegrias). Entretanto, é válido discutirmos especialmente sobre as questões das pessoas LGBTQIA+, no caso desta novela, de homens gueis: o casório, a festa, o envolvimento da família diante da iminência do evento festivo, as regras da monogamia, o individualismo, as futilidades, a obsessão por uma vida “confortável”, rica, com posses – tudo o que concerne a uma captura de vidas gueis pelo modelo burguês heterocentrado. Talvez seja importante considerar essas questões para que pensemos sobre como reproduzimos os modos de ser de um modelo que tanto nos violenta. O folhetim pode ser observado como um gênero que nos apresenta acontecimentos extremos e emoções excessivas, potencializando-os praticamente ao absurdo, configurando o patético em que os personagens se encontram. Isso se dá porque o folhetim, em sua forma híbrida, evoca o melodrama, o romance, o conto e, no caso de Conectados e Desconectados, é somado a isso a complexidade do espaço digital, seus algoritmos e suas interações em suas fragmentadas e fugazes narrativas em postagens.

Ao final da leitura, acometido por muitas reflexões acerca das históricas lutas e conquistas do movimento LGBTQIA+ em consonância com as questões suscitadas pela obra de Daniel Manzoni, perguntei-me se muito em nosso mundo já está melhor ou se apenas o capitalismo está dando o seu jeitinho habitual de lucrar com nossas batalhas, vidas, dores e alegrias – e esta é tão somente uma pergunta. No entanto, essa e outras indagações sobre nossas vidas LGBTQIA+ saltam, pululam do livro de Daniel Manzoni. O autor joga-as muito perto de nós, generosamente. Conectados e Desconectados é livro que deve ser lido e estudado no ensino médio, nas universidades, nos movimentos, em todos os cantos.

À guisa do título dado a esta resenha, friso-o dizendo que, sim, nossas vidas LGBTs cabem num folhetim de jornal, numa novela de tv, num radio-drama ou em uma sequência de postagens de rede social, por serem gêneros que nos envolvem em massa – como deve(ria) ser a literatura. Tenho certeza de Daniel Manzoni é seriamente comprometido com essa ideia, atento à história e ao espírito de nosso tempo.

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Conectados e Desconectados, de Daniel Manzoni ([livro eletrônico]. ed. do Autor, 2021).

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Rodrigo de Roure é romancista e dramaturgo.

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Imagem ilustrativa: Lisa Lyon, 1982, Robert Mapplethorpe

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